Há as pessoas de cima e as pessoas de baixo... O Poço, filme espanhol produzido e disponibilizado pela Netflix, não poderia ser mais claro na representação da sociedade que propõe. Os que estão acima têm poder de decisão, enquanto aos que estão abaixo, só resta a revolta e a tentativa de sobrevivência. Essa metáfora direta do mundo capitalista é a mais presente na história, mas nem de longe é a única. As camadas (ou os andares) de O Poço vão além ao escancarar características nada edificantes da condição humana.
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A história do filme, dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia, se desenrola no interior de um enorme e escuro poço composto por incontáveis andares, cada um deles habitado por duas pessoas. Não fica muito claro ao espectador o que o local é, de fato, já que é apresentado como instituição tanto penal quanto educativa. Os internos só têm acesso a uma torneira com água e à comida que diariamente estaciona por alguns minutos em cada andar, descendo por uma plataforma. Assim, quem está mais acima tem direito a uma alimentação farta, enquanto os que estão mais abaixo agonizam de fome. No poço, a linha da miséria não é estática, quanto mais esbanjam os de cima, maior é o número de pessoas que passarão fome.
Entre os inúmeros paralelos que a obra traça com a realidade, um deles parece se referir à tão discutida meritocracia. Na lógica do poço, ninguém está num andar ou em outro por "merecimento", os internos simplesmente acordam num lugar diferente e precisam se adaptar àquela realidade, seja ela de fartura ou de miséria. Sendo assim, poderíamos imaginar que, por conhecer realidades diferentes, os internos se preocupariam em organizar uma lógica de distribuição de comida que beneficiasse a todos. Mas não é o que acontece. Ao primeiro impulso do protagonista Goreng (Ivan Massagué) de se preocupar com uma divisão mais justa, seu colega de andar rebate: "Você é comunista? Os de cima não escutam os comunistas".
O Poço é sufocante para o espectador de diferentes maneiras. Primeiro, por sua estética majoritariamente fria, cinza _ com alguns escapes em vermelho, que poderiam representar a rebeldia do protagonista. Entra aí também o caráter claustrofóbico das paredes de cimento que circundam/prendem os personagens naquele lugar. Mas talvez o que mais angustie seja mesmo o retrato cruel e animalesco da humanidade. Individualismo, violência, racismo e intolerância são apenas alguns habitantes do universo (distópico?) de O Poço.
Em comparativos breves, poderíamos relacionar o filme a dois sucessos recentes do cinema. Em Parasita, coreano vencedor do Oscar 2020 de melhor filme, o comparativo entre os que vivem socialmente acima e abaixo é muito explícito também. Já a comunidade heroica retratada no longa nacional Bacurau é orgulhosa de sua cultura, de seu museu e de sua biblioteca. Em O Poço, o protagonista carrega um livro (Dom Quixote) enquanto os demais se mostram "armados" de outras formas.
Muitos elementos podem ter causado o enorme sucesso que o filme tem alcançado no Brasil. Recentemente, o historiador e escritor Leandro Karnal relacionou a popularidade com o momento atual de pandemia e reclusão social: "O filme é anterior ao coronavírus mas serve perfeitamente ao momento. Tenho de me salvar, comprar o máximo possível, salvar a mim. Pouco ou nada me importam os outros".
O falatório em torno do longa espanhol também levou muita gente para as redes sociais discutir o desfecho aberto da obra. Mas a lição final não parece ter sido exatamente uma preocupação do diretor. Aliás, ele parece brincar com esse conceito ao colocar personagens, em diferentes momentos, a sentenciar: "a mensagem é isto" ou "não, na verdade, a mensagem é aquilo". Talvez estejamos todos buscando sentido final a algo que não terminou, algo que está em pleno curso, e conta com a participação de todos nós.
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