O projeto AABB Comunidade, desenvolvido por unidades da Associação Atlética Banco do Brasil (AABBs) em todo o país e, que oferece atividades educacionais e de lazer a crianças e adolescentes pobres, corre o risco de deixar de atender as cerca de 100 jovens em Caxias do Sul. O motivo seria um desacerto envolvendo um convênio entre a prefeitura e a entidade. O pacto viabiliza a realização do projeto e precisa ser renovado a cada quatro anos.
Em 2017, em diversas cidades os contratos se encerraram e, devido a transições nos governos, muitos demoraram para ser deliberados por receio de mudanças na Lei Federal 13.019, que regula convênios entre órgãos públicos e entidades civis e privadas. Ainda assim, a maioria das administrações reconheceu não haver impedimentos jurídicos e renovou o acordo. Situação diferente ocorreu em Caxias, onde a prefeitura se nega a dar continuidade à parceria.
De acordo com o presidente da AABB de Caxias, Vinicius Valdez, as tentativas de convencer a Secretaria Municipal da Educação e a Procuradoria-Geral têm se mostrado infrutíferas desde o início do ano. Segundo ele, em diversas ocasiões foram apresentados argumentos jurídicos que respaldam a legalidade da renovação do contrato.
– O município alega que a AABB não se enquadra nos critérios que dispensariam o lançamento de chamamento público (disputa pela realização de serviços semelhante à licitação) por apresentar características de organização da sociedade civil. Mas já comprovamos diversas vezes que somos uma entidade privada. Portanto, bastaria renovar o convênio, sem quaisquer problemas – justifica.
Ele relata estar protelando comunicar à Federação das AABBs (FENABB) sobre o rompimento do contrato, para evitar que o município perca a vaga para outra cidade.
– É gratificante ver o brilho nos olhos de crianças vendo uma piscina pela primeira vez ou recebendo uma refeição que pode ser a única que ela teve no dia. Sem contar o estímulo à cidadania. Alguns que entram sequer têm noções de higiene pessoal e, ao longo do ano, conseguimos ver àquela criança ressurgindo – justifica.
As atividades deveriam ter iniciado ainda em março. Porém, conforme Valdez, ainda não houve qualquer movimento da prefeitura para tentar resolver o problema.
– Chega a ser revoltante uma administração se ater tanto a receios técnicos. Parece, inclusive, que eles estão se aproveitando por ser uma legislação relativamente recente, que "admite" interpretações ambíguas. Esperamos que os vereadores pressionem, pois em outros municípios foi possível reverter essa resistência dessa forma – desabafa o presidente.
Todavia, na opinião da secretária da Educação, Marina Matiello, o temor jurídico é justificável:
– Se a procuradoria não está segura da viabilidade legal, não podemos correr risco de sofrer apontamentos posteriormente. Sem dúvida, é um projeto importante, mas nossa prioridade no momento é a preocupação em garantir a criação de vagas no ensino regular – afirma.
Projeto que vale a pena
De acordo com o presidente da AABB de Caxias, Vinicius Valdez, o acompanhamento do que se segue na vida dos jovens após a passagem pelo programa se perde. Ainda assim, quase sempre os casos são promissores.
Um dos exemplos é o de Gustavo Pedroso Gomes, 15 anos, que cursa o 9º ano na Escola Paulo Freire. Após quatro anos participando do programa, ele assegura que os resultados são efetivos, tanto na vida dele quanto na dos colegas:
– Eu perdi muito da minha timidez ao longo do tempo e percebi muitos outros mudando bastante o comportamento conforme se envolviam nas atividades. Todo mundo saía muito diferente.
A mãe dele, a empregada doméstica Neusa Pedroso Gomes, 48, diz que era um alento saber que o filho estava se ocupando no contraturno escolar, uma vez que não participa tão ativamente durante a semana da rotina familiar por trabalhar à tarde.
– Eu ficava tranquila porque lá eles (a filha dela também participou do projeto) ganhavam alimentação e sabia que estavam participando de atividades saudáveis. Agora, ele tá procurando até um estágio de jovem aprendiz ou alguma outra coisa para fazer, pois a AABB faz muita falta.
Ela ainda se diz orgulhosa pelo esforço do filho, que no ano passado foi selecionado entre as 12 melhores redações em competição entre todas as AABBs do Brasil, ganhando medalha e um celular como reconhecimento.
– Além de tudo, eles ainda encaminhavam para estágios. Uma pena que esteja se encerrando. Esse tipo de iniciativa deveria ser incentivada pelo poder público público. São empresários que estão investindo e a prefeitura só precisa ajudar a acontecer. É um projeto muito bom que espero que retorne. Mesmo que meu filho já não possa ser contemplado, que outras crianças sejam beneficiadas – complementa Neusa.
A solução pode estar em exemplos próximos
Em diversos municípios, a renovação também exigiu análise jurídica. Entretanto, na maioria não houve o encerramento dos convênios. Em Antônio Prado, por exemplo, o novo acordo foi viabilizado por meio de lei, cujo projeto de autoria do Executivo foi sancionado em maio deste ano. A parceria renovada estabeleceu termo de cooperação e a garantia do repasse de aproximadamente R$ 900 mil para o período.
O texto da lei se baseia no item VI do artigo 30 da legislação federal, o qual prevê a dispensa de chamamento público para atividades a serviços de educação, saúde e assistência social, desde que executadas por organizações da sociedade civil previamente credenciadas pelo órgão gestor da respectiva política.
– Depois de uma certa pressão, obtivemos respaldo jurídico da procuradoria, que verificou a validade da dispensa do chamamento até por haver um vínculo estabelecido há vários anos nessa parceria – informa a presidente da AABB de Antônio Prado, Patrícia Scopel.
Situação semelhante foi verificada em Bento Gonçalves.
– Tivemos de pressionar um pouco, mas conseguimos o aval do prefeito. Acho que a única cidade que está tendo dificuldades neste processo é Caxias – afirmou Orlando Gonzatti, presidente da AABB de Bento.
Segundo a assessoria jurídica da Câmara de Vereadores de Caxias, somente a partir de projeto de autoria do próprio Executivo seria possível obter deliberação da Câmara para renovação do contrato.
Sobre o convênio
A última proposta orçamentária encaminhada à prefeitura prevê contrapartida de R$ 1,387 milhão para ser repassado de 2017 a 2020 em forma de prestação de serviços (alimentação, exames médicos e odontológicos, transporte e gás) e disposição de profissionais (merendeira, coordenador pedagógico, auxiliares administrativo e de serviços gerais). A média anual seria de cerca de R$ 350 mil caso as atividades começassem no segundo semestre.
Para a AABB, fica atribuição de dispor da estrutura, desde a sede até equipamentos de cozinha e materiais, entre outros.
O programa
Em funcionamento desde 2006 em Caxias, o projeto oferece atividades como aulas de dança, tênis, capoeira, música e natação para crianças de escolas localizadas em áreas de risco, destinadas pelos conselhos tutelares (como por exemplo, filhos de pais que estão em detenção).
O atendimento acontece três dias da semana no contraturno das aulas: 50 crianças e adolescentes dos sete aos 17 anos são atendidos no período da manhã, e 50 à tarde. Elas recebem ainda transporte gratuito e duas refeições.
O que alegam as partes
:: AABB: Conforme orientação da Federação das AABBs, a entidade local encaminhou em maio ofício apresentando elementos que supostamente conferem respaldo jurídico da entidade para renovação do convênio. No documento, são apresentadas as características contidas no próprio Estatuto da entidade que garantem a AABB como pessoa jurídica sem fins lucrativos. O caráter das ações do programa também são argumentados como enquadrados nas exceções da lei 13.019 (que prevê a possibilidade de renovação de convênios com entidades que desenvolvam atividades educativas e que já estejam cadastradas no município). Com isso, a entidade alega ser possível a dispensa do chamamento público.
:: Prefeitura: Por outro lado, em resposta remetida à AABB também em maio, o poder público, por meio da PGM, reiterou que as características da AABB também se enquadram na classificação de organização da sociedade civil contidas na lei 13.019. Em outro argumento, o ofício texto conclui que "em razão do caráter inovador da legislação federal e da conceituação de organização da sociedade civil por ela trazido, pode estar havendo, neste caso concreto, alguma confusão envolvendo conceitos jurídicos de associação.