Eu queria convidar todos para comemorar o absurdo, o abuso, a estupidez, para comemorar a falta de diálogo, a falta de amor, a falta de comida. Comemorar o desrespeito, a profanação das coisas boas, o leite talhado, o pão abatumado, comemorar a fruta podre ainda no pé e todo o desperdício até o lixo novamente. Queria convidar todos para celebrar nossa falta de esperança, nossa indignação, nossa resignação, às vezes ou sempre, frente ao roubo, ao assassinato, nossa passividade, nossa incoerência. Celebrar o que está entalado na goela e não sobe nem desce, porque não tem água, não tem ar, não tem óleo que faça o nó se mover. Celebrar o poder que não é nosso, o poder sob o qual nos ajoelhamos, para o qual trabalhamos, para quem nos domina. Como disse celebrar o absurdo, a falta de alegria, a impossibilidade de criar, o assédio, a insolência, o linchamento, a não abertura.
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Depois, bem depois que ficarmos loucos e loucas, depois que nos percebermos com as mãos cheias de sangue, de lodo, com os olhos cheios de raiva, com o corpo trucidado e preso, depois que percebermos que nem os animais foram tão irracionais, desrespeitosos, incoerentes, inconsequentes, depois de tudo isso, quando pararmos para olhar novamente o mundo, o céu, as coisas, os outros, os nossos, depois, quando for possível nos reconhecermos novamente como seres mais que pensantes, seres afetuosos, criaturas recriadoras, capazes de curar, depois que essa era de ódio passar, bem depois, vamos comemorar de novo?
Aí, no meio dos escombros da nossa tentativa de humanidade, quando percebermos, talvez tarde demais, talvez em demasiada frustração, que só juntos e juntas poderemos mais, aí será difícil celebrar. Talvez celebraremos a tristeza, a melancolia, a nostalgia do que imaginamos que fomos em algum momento talvez. Talvez celebraremos a própria tentativa, o ato falho, celebraremos a vontade sincera de sermos um pouco melhores. Aí, plantaremos alguma flor na terra seca e devastada, como no poema, e olharemos para ela tão só e tão frágil, e aquilo que será símbolo e corpo estranho, e quem sabe será até amor. E talvez valha a pena.
Talvez valha muito a pena tentar.
Opinião
Natalia Borges Polesso: celebração
Talvez celebraremos a nostalgia do que imaginamos que fomos em algum momento talvez
Natalia Borges Polesso
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