Na vida é tão bom ter amigos. Assim cantaram Balão Mágico, Chitãozinho e Xororó e outros artistas que deram voz aos versos de Michael Sullivan e Paulo Massadas em Amigos do Peito, antigo tema do projeto Criança Esperança. A letra fala sobre a importância de poder contar amigos de fé, como os que encaram juntos escalar uma montanha de seis mil metros de altitude, e de ter amigos irmãos, como um grupo que há mais de 50 anos mantém o hábito de se encontrar pelo menos uma vez por semana.
Como uma família que ele mesmo escolheu, Matheus Salvadori, 39 anos, é o mais jovem e foi o último a ingressar para a turma que todas as sextas-feiras almoça no mesmo restaurante no centro de Caxias, e na sequência segue para uma cafeteria para seguir com as conversas que costumam passar por temas de filosofia, história e cultura. O decano é o professor Decio Bombassaro, 85 anos. Completam o time que encontrou a reportagem na última sexta-feira, véspera do Dia do Amigo, parceiros que somam mais de cinco décadas de convívio, como José Carlos Sehn Bassanesi, 79 e Rui Alberto Cassina, 76, além de Carlos Zinanni, de 48. Três gerações unidas pelo que Salvadori chama de gratuidade.
- Aristóteles dizia que a verdadeira amizade é a da virtude. Que não se dá por interesse, nem por utilidade, nem por nenhum motivo além de querer estar com as pessoas queridas - define.
Bassanesi acrescenta:
- A gente precisa manter o contato com os amigos, senão a vida começa a ficar muito monótona.
"As possibilidades que o mundo virtual oferece de se conectar com o outro são muito recentes, perto dos milhares de anos em que a sociedade evolui a partir do encontro entre as pessoas"
CARLOS ZINANNI
Músico caxiense, parte de grupo de amigos que se reúne toda semana para almoçar junto
Zinanni, ao recordar que a amizade entre eles é tão antiga que foram cultivadas ao redor de mesas de cafeterias que já deixaram de existir, ressalta que manter a rotina de encontrar os amigos nem sempre é fácil, especialmente para ele e Salvadori, que ainda não desfrutam da aposentadoria como os demais, mas que o esforço para estar junto vale a pena. E que nem se cogitem migrar as conversas para o mundo virtual:
- A vida é presencial, não tem nada que substitua. As possibilidades que o mundo virtual oferece de se conectar com o outro são muito recentes perto dos milhares de anos em que a sociedade evoluiu a partir do encontro entre as pessoas. Fora que o celular praticamente nos obriga a estar disponível o tempo todo, sem nunca estar realmente presente.
Antes de se despedir dos amigos, Matheus Salvadori resume o sentimento de cada sexta-feira, após mais um momento compartilhado com a velha guarda:
- Amizade é fonte de felicidade. Uma pessoa sem amigos é uma pessoa isolada, infeliz. Só temos esta vida para estar com as pessoas queridas.
A amizade também é uma aventura
Foi a mais de seis mil metros de altitude que os caxienses Jordano Bocchese, 33, Bruno Barea, 33, e Guilherme Carnesella, 38, solidificaram a amizade que nasceu do gosto por esportes de resistência e pelo contato com a natureza, entre corridas, pedaladas, trilhas e, finalmente, escaladas.
- Quando a gente é novo faz amizades na escola, no bairro. Depois de uma idade é mais difícil, porque a gente já está cheio de mania (risos). Mas se tu gostas de fazer uma trilha ou uma escalada, precisa valorizar o amigo que é parceiro para passar na tua casa às 5h de mochila nas costas para uma indiada - comenta Guilherme.
"Quando a gente é novo faz amizades na escola, no bairro...depois de uma idade é mais difícil, porque a gente já está cheio de mania"
Em junho deste ano, o trio partiu de Caxias do Sul rumo a Bolívia, onde escalaram quatro montanhas: o Pico Austria, com elevação de 5,3 mil metros; a Tarija, 1,8 mil metros); o Pequeno Alpamyo, (5,3 mil metros); a Huayna Potosi, com 6 mil metros, e a Illimani, segunda montanha mais alta da Bolívia, a 6,4 mil metros do nível do mar.
- Não dá pra levar alguém para escalar sem confiar 100% na pessoa. Se der qualquer problema com ela, tu vais ter de dar um jeito de levar ela contigo. E vice-versa. É um apoiando o outro. A montanha te faz esquecer e ultrapassar o teu limite muitas vezes, e nessa hora tu vê se aquele amigo está ali pra te ajudar ou não. É um trabalho em equipe - comenta Bocchese.
A aventura envolveu rapel, escalada e longas e desafiadoras caminhadas, passando por geleiras e crateras, onde o trio só tinha apoio de dois guias de uma agência local. Mais do que contar com colegas de aventura, os amigos tinham de ser verdadeiros portos seguros para ajudar a atravessar os momentos de desgaste mais intenso.
- Eu sou o menos experiente do trio, só tinha feito escaladas aqui na nossa região. Teve momentos em que eu me perguntava: "o que estou fazendo aqui?!". São pensamentos que ocorrem quando a gente está esgotado porque começou uma caminhada à meia-noite, mas quando o sol começa a nascer a gente se sente reenergizado e segue em frente - relata Barea.
Enquanto ainda absorvem a experiência e se reacostumam com a rotina longe da montanha, onde compromissos profissionais e familiares trazem outras exigências, intimamente cada um já imagina quando será a próxima aventura e qual será o próximo destino. Mas vamos manter esse mistério, porque spoiler não é coisa que se dê para um amigo.
Amizade traz autoconhecimento e longevidade
Não importa em que fase da vida, tampouco se os laços irão se renovar toda semana na mesa de um restaurante ou a cada dois anos no alto de uma montanha, manter amizades é fator imprescindível para uma vida plena. Para a psicanalista caxiense Camila Scheifler Lang, quando ingressamos no mundo fraternal da amizade, aprendemos melhor quem somos, e assim aprendemos também a amar o outro na igualdade:
- Esse jogo da amizade, de encontrar alguém tão igual e ao mesmo tempo tão diferente, nos provoca ao longo de toda a vida a desvendar quem somos. Por isso o exercício dos papéis que exercemos em nossos círculos de amigos envolve essa ruptura identitária permanente e complexa, em que os outros funcionam para a gente como se fossem micro espelhos, que nos devolvem nossa imagem refletida. Nem sempre gostamos, nem sempre queremos, mas sempre precisamos. Quando um amigo nos devolve a nossa imagem, nos projeta para o mundo e nos ensina também quem somos.
"Esse jogo da amizade, de encontrar alguém tão igual e ao mesmo tempo tão diferente, nos provoca ao longo de toda a vida a desvendar quem somos"
CAMILA SCHEIFLER LANG
Psicanalista
Camila ressalta ainda que um bom amigo, enquanto testemunha ocular de nossa história, não apenas irá encher de significado nossos momentos felizes, mas também será alguém que irá contribuir para que atravessamos os momentos mais difíceis:
- Em diferentes etapas da vida os amigos cumprem com papéis essenciais, mas que são diferentes na adolescência, na vida adulta ou na terceira idade, porque os sociais vão se alternando assim como os ciclos de vida que trazem diferentes crises existenciais. Quando há o adoecimento, às vezes um amigo pode reinventar a significação simbólica justamente por estar ali, no momento mais difícil da vida da pessoa.
A psicóloga caxiense Patrícia Prigol define o papel da amizade como um "apego seguro" no mapa da vida, que envolve desafios familiares, profissionais e de realização pessoal, entre outros. Porém, é igualmente desafiador se permitir ter o tempo necessário para desfrutar da amizade:
"O amparo emocional produzido por esses vínculos seguros (de amizade) traz o sentimento de pertencimento, de inclusão, e aumenta a potência de vida da pessoa"
PATRÍCIA PRIGOL
Psicóloga
- É comum encontrarmos pessoas que vão permanecendo numa escassez de vínculos sociais na medida em que esses papéis vão sendo diluídos. Filhos crescem, resolvem seguir suas vidas nas suas direções, a aposentadoria chega, o ninho vazio se apresenta. Nessa hora as pessoas podem se perceber isoladas do contexto social por terem vivido anos a fio alimentando tão somente os seus papéis na família e na carreira. Mas sempre é hora de recomeçar. A amizade produz longevidade e exerce um efeito terapêutico, além de ser um espaço de entreajuda.
A profissional diz ainda que costuma propor, em seus atendimentos, a formação de grupos de apoio baseados em amizades:
- Mesmo que em pouca quantidade, o amparo emocional produzido por esses vínculos seguros traz o sentimento de pertencimento, de inclusão, e aumenta a potência na vida da pessoa. As pessoas se sentem motivadas para a superação das dificuldades, além de cultivar a alegria que é tão necessária para se ter uma vida gratificante. Mantêm-se atualizadas, exercitam suas mentes, cultivam as memórias afetivas e desenvolvem inteligência emocional.