A Bíblia Sagrada conta a história de que Jesus Cristo passou 40 dias no deserto em jejum como preparação para uma das passagens mais importantes da história dele: a crucificação e, depois, a ressurreição. Da passagem bíblica surgiu a Quaresma. O período que antecede a Páscoa geralmente é mais lembrado na Quarta-Feira de Cinzas, no início dele, quando muitos religiosos não comem carne como forma de penitência. Porém, há muitos fiéis espalhados pelo mundo, inclusive em Caxias do Sul, que vivem esse tempo a partir dos princípios católicos, como um momento de reflexão, doação pessoal e purificação antes da Páscoa.
É o caso da família de Sandra e Maicon Menezes, 45 e 42 anos. Junto há 15 anos, o casal decidiu novamente vivenciar o período próximo aos ensinamentos de Jesus. Para eles, é uma forma de trazer lições para as filhas Letícia, 12, e Larissa, sete, e, ao mesmo tempo, continuar uma jornada pessoal para Sandra. Ela trabalhou 20 anos no ramo de seguros e, em 2023, decidiu ter um período sabático para que pudesse cuidar da família.
— Então, estar próximo, poder acompanhar as filhas, cuidar do lar, das tarefas, tem sido um presente de Deus para nós. E na Quaresma, na verdade, a nossa caminhada como casal, como família, a caminhada espiritual, vem crescendo muito desde que entramos há sete anos no Movimento de Casais Jovens (MCJ) — descreve Sandra.
O MCJ faz parte da Paróquia São José e, como explica Sandra, é um grupo católico que busca viver o evangelho. São cerca de 70 casais que participam do movimento atualmente. Com essa comunidade, a família Menezes vive a Quaresma seguindo especialmente a oração, um dos três princípios do período. Como conta Sandra, para rezar não é necessária uma preparação, como colocar velas ou esperar por um momento. Ela e o marido oram já ao acordar, agradecendo pelo "dom da vida". Outros momentos de prece são nas refeições.
— E aí, durante o café, a gente aproveita que está a família sentada. Hoje existem aplicativos com muitos evangelhos do dia que podem ser escutados. Então, ali, a gente coloca o evangelho do dia no café da manhã. Isso traz uma meditação, né? Faz com que a gente já escute os ensinamentos da palavra de Deus — conta Sandra.
Os momentos de oração também tornam-se oportunidades para dialogar com as filhas e conversar sobre o que pode ser melhorado.
Ensinamentos e caridade
Dentro da Quaresma, Sandra e Maicon também aproveitam para ensinar as filhas sobre a religião. A mãe explica que atividades lúdicas são feitas para que as crianças consigam entender, o que é feito em conjunto com o MCJ. Por exemplo, desenhos infantis da Via Sacra foram distribuídos para as crianças para que elas pintassem. Depois, um mural foi montado. Outra ação foi recriar a coroa de espinhos usada por Jesus com massa de modelar e palitos, com o objetivo de conectar à rotina das meninas.
— Colocamos os palitos ali como uma forma de serem todos os pecados. Então, assim, quando faz um bem, não briga com a irmã, ajuda sem reclamar, vai lá e tira o espinho. Não estou espetando, não estou cometendo os pecados, estou aliviando a dor de Jesus. Então, essa coroa de espinhos que se torna dolorida pode ser mais leve, eu posso aliviar quando eu amenizo os meus pecados — relata Sandra.
Junto com as crianças, os adultos também participam de momentos de cuidar da Igreja. As filhas de Sandra e Maicon também são coroinhas nas missas. Como nota a mãe, é uma forma de caridade à comunidade.
O movimento também tem momentos de partilha, em que as famílias reúnem-se para jantar. Em uma das jantas na Quaresma, os adultos saíram para doar alimentos aos moradores de rua. No período, também nasceu outra ação do MCJ: um casamento gratuito está sendo organizado na paróquia para ocorrer em 25 de maio, no mês das noivas.
— Estamos ajudando a organizar esse casamento de forma 100% gratuita dentro da Igreja porque muitos casais acabam não recebendo o sacramento do matrimônio porque às vezes não tem condições, ou às vezes é distante — percebe a fiel.
Os princípios da Quaresma
De acordo com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Quaresma é um tempo de preparação, que consiste nos princípios da oração, conversão e audição mais frequente da palavra de Deus, além da caridade e o jejum. A CNBB cita a abstinência da carne como parte do jejum, além de que os fiéis devem evitar excessos.
Momento de purificação
O padre Leonardo Inácio Pereira lembra que a Quaresma é um tempo de purificação no catolicismo, assim como também existe em outras religiões — os muçulmanos, por exemplo, têm o Ramadã. O período termina nesta quinta-feira (28) com a Missa de Lava-pés, mas a ideia é que a experiência melhore a vida daquele que realiza as atividades quaresmais.
— Purificação dos pensamentos, dos sentimentos, das vontades, dos desejos. Isso é muito importante, porque quando a gente decide fazer um período intensivo de algum exercício vamos nos dando conta de que temos autodomínio sobre o nosso corpo, o nosso sentir e o nosso agir. Podemos nos tornar pessoas melhores. A ideia da Quaresma é essa. É um período de purificação para nos ajudar a percebermos que podemos ser melhores — reflete o padre Leonardo.
Por isso, o importante é a vivência do período, mesmo que a forma de fazer possa ser "modernizada". Por exemplo, hoje as pessoas podem fazer jejum de doces, redes sociais ou outras coisas que podem fazê-las cair em tentação.
— Cada ser humano é situado em um tempo. No tempo de Jesus naturalmente não tinha redes sociais, não tinha essas coisas. Porém, eles tinham também elementos da vida cotidiana que deveriam ajudá-los a perceber o que eles deveriam evitar. Eles tinham, imagino que deviam ter algumas coisas que poderiam os ajudar a cair em tentação. Então, provavelmente, eles também faziam abstinência dessas coisas. Nós vivemos 2024, tempo de inteligência artificial, então tem tantas coisas que acontecem, tanta tecnologia que está no substrato da nossa realidade e que a gente precisa dar conta de tudo isso — comenta o padre.
Conexão maior
Motivado a conectar-se mais com os momentos ao redor dele, o seminarista Samuel Cavalli, 23, decidiu que nesta Quaresma realizaria um jejum de redes sociais, especialmente Instagram. No fim dela, o estudante de filosofia percebe uma melhora na rotina e até mesmo uma conexão maior consigo mesmo. Antes, a vibração do celular ou notar uma notificação o tiravam da realidade para colocá-lo na tela, o que não é mais o caso:
— Eu percebi que estava perdendo muito tempo e isso estava me fazendo, de certa forma, mal porque eu não estava mais vivendo em comunidade, né? Eu estava perdendo muitos momentos bons e bonitos e deixando de fazer coisas boas porque eu ficava perdendo meu tempo no Instagram.
É claro que há pontos positivos nas redes sociais, como acompanhar parentes distantes e até conversar com eles. Mas, após a Quaresma, Cavalli já vê que conseguirá se policiar e ter uma relação mais leve com a plataforma. Muito disso também se deve aos momentos que foram proporcionados enquanto o jovem estava desconectado da rede social.
— Eu percebi que, com esse jejum, a oração também se intensificou. Eu tive momentos mais "orantes", propriamente dito, sabe? De relaxar, de se encontrar com Deus. Então, tem sido um tempo muito bom — relata o seminarista.