O caso recente de trabalho semelhante à escravidão descoberto em Bento Gonçalves fez o país voltar suas atenções para a Serra gaúcha. Nesta sexta-feira (10), diversas autoridades debatem a situação em um seminário na Câmara de Vereadores de Caxias do Sul a partir das 14h. O encontro Em Defesa do Trabalho Decente e Combate ao Trabalho Análogo ao Escravo, promovido pelas centrais sindicais do Rio Grande do Sul, terá a presença do presidente do TRT-4, desembargador Francisco Rossal de Araújo. Em entrevista à Rádio Gaúcha Serra nesta sexta, durante o Gaúcha Hoje, ele falou sobre a precarização do trabalho, terceirização e formas de combater o trabalho análogo à escravidão.
Araújo destacou que o Tribunal Regional tem acompanhado o caso de Bento com preocupação e que além das medidas que o poder público deve tomar, a sociedade precisa refletir sobre esse fenômeno pra que ele não volte a acontecer.
Confira trechos da entrevista:
Trabalho
A Constituição Brasileira garante a liberdade de trabalhar. Todo cidadão é livre pela norma constitucional para escolher o seu ofício ou a sua profissão. Ele pode trabalhar de forma autônoma ou pode trabalhar de forma subordinada, que é a forma que nós mais conhecemos, que é a com carteira de trabalho assinada. Ele tem que cumprir determinadas normas. O empregador vai dizer para o empregado: tu tens que fazer tais e tais tarefas, o teu horário de trabalho é este aqui, o local onde tu vais trabalhar é este, etc. Isso nós chamamos de subordinação, que dá alguns poderes para o empregador em relação ao empregado, o poder de direção, o poder hierárquico e, em alguns casos, também o poder disciplinar. Por exemplo, um empregado que chega muitas vezes atrasado ao trabalho pode ser advertido, pode receber uma suspensão e até mesmo uma justa causa. Só que esses poderes têm limites e esses limites são expressos na própria Constituição e na lei. O empregador tem uma série de limites. O empregado, quando trabalha para uma empresa, não deixa de ser cidadão. Ele tem direito a sua liberdade, a sua identidade, a sua privacidade. Dentro dos limites da lei e da Constituição é que se desenvolve uma relação livre de trabalho. O empregador tem uma série de obrigações, tem que fazer o registro, pagar férias, o décimo terceiro, o repouso semanal. São direitos previstos na Constituição e na CLT.
O que é trabalho análogo à escravidão
Um trabalho análogo à condição da escravidão retira a liberdade das pessoas. Nós não estamos aqui diante daquela escravidão do século 19, do fenômeno do mercantilismo, dos navios negreiros e de um trabalho com castigos físicos, mas por que se diz que é análogo? Porque algumas daquelas características aparecem. Esse caso aqui (de Bento) é emblemático. Trabalhadores fugiram do local de trabalho porque estavam proibidos de sair. Portanto, não tinham o direito de locomoção, de ir e vir, que é um direito constitucionalmente assegurado. E mais do que isso, não tinham para onde ir, perderam a sua conexão com o passado, de onde eram e não tinham para onde ir porque estavam com dívidas. Nesse caso fica muito claro um sistema que na área trabalhista nós conhecemos pela expressão em inglês truck system, a "prisão por dívidas". A pessoa começa a consumir no armazém, o armazém faz preços acima do mercado e no final todo o salário que ela tem perspectiva de ganhar já está sob a forma de dívida que ela usou para poder sobreviver durante o tempo que está trabalhando. Ou seja, não se apropria de nada. Claro, evidentemente que isso tem que ser comprovado, nós temos que ter muita cautela, analisar isso dentro de um processo judicial, que é o papel do Poder Judiciário garantir o direito de defesa do devido processo legal, mas neste caso específico ainda há denúncias de castigos físicos em pleno século 21, o que é repugnante, repulsivo e absolutamente condenável. Nós usamos essa expressão para diferenciar daquele caso que foi extinto lá com a com a Lei Áurea no Brasil em 1888.
Como combater o trabalho análogo
A primeira é a que está funcionando agora, é a frente institucional. Nós precisamos ter na sociedade os poderes públicos atuando. Neste caso aqui começa desde um policial. Eles fugiram e foram até um posto da polícia, que avisou a fiscalização, o Ministério Público e no momento em que isso for judicializado o Poder Judiciário, neste caso, a Justiça do Trabalho. Mas também há outros fatores do poder público que precisam entrar nesta nestas medidas, por exemplo, o poder público municipal. A prefeitura e a comunidade precisam fazer a reflexão e promover programas de readaptação e de prevenção, de conscientização daqueles que usam essa mão de obra das condições de trabalho, porque os efeitos são drásticos. A cultura que se forma na pessoa média é de repulsa a qualquer produto que a gente sonhe que tenha algum tipo de trabalho escravo. A gente tem uma repulsa natural e isso acaba afetando não só o setor vitivinícola, mas todo um setor produtivo. Por trás disso vai afetar o turismo, afeta os produtos.
Confira a entrevista:
Falas preconceituosas
Acho que também precisa ser dito que tivemos um comportamento condenável de um determinado político local que fez um discurso xenófobo, um discurso repulsivo também carregado de uma ideologia preconceituosa (se referindo ao vereador Sandro Fantinel), então, isso é uma coisa. O poder público atua, as instituições têm que atuar, a fiscalização do trabalho, o Ministério Público do Trabalho, a Justiça do Trabalho e cada um fazer o seu papel. E a comunidade também precisa parar e refletir sobre isso, sobre os motivos e os efeitos. Esse debate tem que ser um debate social. Nós não podemos viver numa sociedade que admita este tipo de trabalho.
Terceirização
Se a legislação é branda, se a legislação é suave em relação à responsabilidade das empresas terceirizadas, isso abre a possibilidade de que nós tenhamos casos semelhantes a esse. Eu acho que é preciso deixar bem claro: a terceirização, por si, só não é ruim. Ela é de um movimento no mercado de trabalho que já ocorre há bem mais de duas décadas no Brasil. Mas este tipo de terceirização que "não, eu lavo as minhas mãos, isso é problema da terceirizada, não é comigo", o problema é a irresponsabilidade. Além da lei ser branda, tem que entrar as instituições, e é por isso, por exemplo, que o Poder Judiciário é importante no sentido da formação da sua jurisprudência a partir desses casos. Na jurisprudência. que é a decisão dos tribunais num determinado sentido, não é só no sentido de punição, mas também no sentido didático. Ao se reprimir um caso emblemático como este das vinícolas de Bento Gonçalves, ele também serve como uma atitude pedagógica para que não volte a se repetir.
Soluções para a falta de mão de obra
Nós vivemos num Estado que os índices demográficos estão diminuindo, ou seja, estão nascendo menos pessoas. Entraremos numa fase de escassez de mão de obra. O Rio Grande do Sul, para ser bem didático, a nossa população está envelhecendo e falta mão de obra. E a falta de mão de obra, não é só na região da Serra Gaúcha, eu tenho viajado o Estado inteiro, conversado com os trabalhadores, conversado com os empresários e em vários setores da economia faltam em trabalhadores. Como é que você compensa isso? Ou nós fazemos aumentar os índices de natalidade porque têm certas tarefas que a máquina não substitui o ser humano... Mas isso leva muito tempo, fazer a população crescer leva décadas, ou se compensa isso com migração, trazer trabalhadores de fora. Nós vemos isso, por exemplo, em vários setores da indústria, em São Paulo, que tem gente de fora. Nós tivemos casos de terceirização, combate a trabalho análogo à escravidão, no setor têxtil, um boliviano que vem em condições precárias. Temos o caso dos trabalhadores que vem do Haiti, do Senegal, para compensar essa falta de mão de obra. Para isso é preciso uma política de trabalho. Isso é responsabilidade do Ministério do Trabalho e da Secretaria Estadual do Trabalho, da Secretaria Municipal de Trabalho que precisam pensar a solução deste problema a longo prazo, que é pra evitar essas formas precárias de trazer trabalhadores ou como vão receber esses trabalhadores. Ou seja, a sociedade precisa olhar para frente e saber que por trás da terceirização e deste caso há um fenômeno do mercado de trabalho que está motivando isso e que vai continuar presente.