A cremação como parte do ritual fúnebre foi validada dentro da Igreja Católica há quase seis décadas. A alternativa, que contribui para a redução dos impactos ambientais causados pela decomposição de cadáveres sepultados, foi concedida aos fiéis desde que sejam preservadas as cinzas. Isso porque o corpo humano, ainda que descaracterizado, não deixou de ser significado pelos fiéis como um "templo de Deus" ou "templo do espírito". No caso de mártires, beatos e canonizados, este corpo tem um valor simbólico ainda maior na religião que considera tais personalidades exemplos a serem seguidos e seus respectivos corpos, ainda que sem vida, um canal de aproximação com o divino.
Com sua maior igreja fundada sobre o túmulo do apóstolo Pedro, primeiro papa, a fé católica mantém o corpo do santo como relíquia e preserva a tradição de espalhar, por igrejas do mundo inteiro, pequenas frações de massa corpórea dos entes que são venerados por fiéis.
As relíquias católicas podem ser de primeiro grau, como micro pedaços de carne, ossos, pele ou fio de cabelo do ente venerável; ou de segundo e terceiro, incluindo desde amostras de roupas até tecidos e objetos de comprovado contato com o corpo de indivíduos que atuaram pela propagação das práticas que compõem os valores da Igreja. Quando o corpo inteiro, parte notável ou a totalidade das cinzas é preservada, essa relíquia é classificada como insigne.
— A relíquia não pode ter finalidade de lucro, é doada para que seja levada a local apropriado, que é a igreja, para que o povo possa venerar e pedir graças — explica dom Alessandro Ruffinoni, bispo emérito da Diocese de Caxias do Sul.
O religioso intermediou o processo que trouxe a mais recente relíquia à região: um fio de cabelo do jovem italiano Carlo Acutis, conhecido como o "padroeiro da internet", beatificado em 2020. A relíquia de primeiro grau do venerável — que tem o corpo inteiro exposto para visita de fiéis no Santuário do Despojamento, em Assis — está desde janeiro no altar do antigo Santuário de Nossa Senhora de Caravaggio, que fica ao lado do atual, em Farroupilha.
No mesmo altar são mantidas, desde 2020, micro pedaços de ossos, relíquias de primeiro grau, dos chamados Pastorinhos de Fátima. Os irmãos Francisco e Jacinta Marto integraram o trio de crianças portuguesas que afirmaram ter testemunhado as aparições do Anjo de Portugal e da Virgem Maria ocorridas em Fátima entre 1916 e 1917.
No caso da relíquia de Acutis, foi a própria mãe do jovem que entregou a peça ao bispo emérito, em uma viagem dele à Itália, em novembro de 2021. Dom Alessandro explica que neste e nos outros casos, o procedimento é feito com autorização da família e que o corpo é acessado por uma equipe encarregada da diocese na qual o venerável está enterrado, sob autorização do bispo responsável. A retirada, conservação e autenticação dos restos mortais segue normas publicadas pela Congregação para as Causas dos Santos.
Após remoção, os restos mortais são conservados em uma espécie de recipiente chamado de teca, selado com cera e, geralmente, guardado em um relicário. A peça também é acompanhada por um certificado emitido pela congregação que atua neste processo em nome do Vaticano.
— O valor (das relíquias) depende da fé de todos nós. Nossos corpos são templo de Deus e um santo, que viveu de uma maneira extraordinária esta união com Deus e com a Igreja, tem parte do corpo venerada pelo povo, para que peça intercessão. O santo intercede o milagre, quem faz é Deus — afirma dom Alessandro.
Em um paralelo com a crença de que a oração feita próximo aos restos mortais de familiares, cidadãos comuns, em cemitérios do mundo inteiro, é uma forma de aproximação com a pessoa que partiu, o religioso reitera que a denominação de relíquia é atribuída a pessoas que a igreja considera terem vivido o cristianismo mais fortemente. Ele reconhece, no entanto, que os títulos de beatos e santos não contemplam a todos que, eventualmente, tenham vivido nesta proposta:
— Alguns são escolhidos pela fama que criaram, como exemplo a ser imitado, mas tem muita gente que é santa sem ser proclamada santa, porque viveu bem a própria vida. Têm muitos pais e mães de família, por exemplo, que viveram a vida fortemente cristã e que não são santificados, mas estão no paraíso igualmente.
Questionado sobre a diferença da relíquia para as imagens, que também fazem parte da cultura católica, dom Alessandro afirma:
— A imagem ajuda a ter devoção, é um canal; e uma imagem antiga de um santo também pode ser uma relíquia. Um quadro ou uma pintura antiga, com valor artístico, é importante guardar e conservar. Mas a relíquia é diferente, é uma parte do corpo, suscita mais devoção.
Em Caravaggio, onde está morando desde o final de 2020, quando retornou do Paraguai após deixar o comando da Diocese de Caxias do Sul, o bispo emérito também fala de outras relíquias que são preservadas no Santuário. Segundo ele, as peças foram retiradas durante a reforma pela qual o prédio ainda passa e a ideia é que o material seja reorganizado e volte a ser disponibilizado aos fiéis e peregrinos.
Dentre as que puderam ser identificadas pelo vidro do antigo móvel onde ficam guardadas, na moradia dos sacerdotes, estão relíquias do beato dom Bosco, São Luiz Gonzaga, São Domingos Sávio, São José de Anchieta, São Filipe Néri, Santa Catarina de Sena, além dos papas Pio X e Pio XII.
A Diocese de Caxias do Sul não possui um inventário que oficialize quantas e quais são as relíquias veneradas hoje em igrejas da região de abrangência. Estima-se que estejam especialmente em igrejas antigas, as quais tradicionalmente tinham os altares construídos sobre restos mortais de mártires da religião.
A pedido da reportagem, um levantamento parcial foi realizado pela assessoria da Diocese, baseado na importância histórica ou de peregrinação dos locais. Somente em Caxias do Sul foram elencadas relíquias que estão em cinco diferentes templos: na Catedral, que desde 2003 tem a relíquia de Santa Teresa no altar-mor (um pedaço de pele); na Igreja São Pelegrino, a relíquia de dom João Batista Scalabrini, religioso que tem relação com a cidade e será canonizado neste domingo (9), em Roma (não foi informado o que é a relíquia); na Igreja Santa Catarina, que desde a criação da paróquia, em 1954, conta com um pequeno pedaço de osso de Santa Catarina de Alexandria; na Igreja Nossa Senhora de Lourdes, a relíquia de São José de Anchieta (um pedaço de osso), que é padroeiro oficial do país ao lado de Nossa Senhora Aparecida; além da comunidade católica de Fazenda Souza, onde o corpo do padre João Schiavo foi sepultado, com exumação para confecção de relíquias em 2017 — ano em que o religioso foi beatificado.
"É como estar em contato com a santidade", diz devota de Santo Antônio
A festa em honra ao padroeiro Santo Antônio, que neste ano chegou à 144ª edição, é tradição no município de Bento Gonçalves. A cidade, que chegou a registrar 83,65% moradores declarados fiéis à Igreja Católica Apostólica Romana em 2010, levantamento mais recente que se tem do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), conta com uma relíquia do santo desde 2015 e, por lá, a peça ganha destaque no dia 13 de cada mês, quando são realizadas missas alusivas ao santo celebrado no dia 13 de junho. Durante o período festivo, o relicário que guarda um pedacinho de massa corporal do religioso morto em 1231, e sepultado em Pádua, na Itália, percorre todas as comunidades da paróquia.
— Neste ano eu fui a responsável por carregar o relicário e pude ver o quanto as pessoas se emocionam ao tocar, beijar, fazendo seus pedidos e agradecer. É algo muito real, é como estar em contato com a santidade — relata a fiel Carla Roberta Da-Ré Trivelin, 53 anos, que atuou como festeira e também integra a equipe de liturgia e elaboração das missas.
Para ela, a presença da relíquia reforça o exemplo deixado pela santidade venerada:
— Estar presente com a relíquia é saber que tem um pedacinho de um santo que trabalhou e gastou sua vida em prol das coisas de Jesus. Ele que, provavelmente, teve todas as dificuldades, como nós, porque foi uma pessoa, um ser humano, e levando isso pro contexto das nossas vidas, é algo que nos impulsiona.
A relíquia de Santo Antônio, que na festa deste ano chegou a sobrevoar a cidade de helicóptero, em uma bênção aos fiéis, é mantida guardada no restante do ano, mas há planos de que seja permanentemente exposta após reformulação que está sendo pensada pela paróquia para o altar do Santuário do padroeiro, que fica no centro de Bento.
A administração do templo que homenageia o "santo casamenteiro" também mantém guardadas as relíquias de madre Assunta, religiosa italiana que atuou e morreu no Brasil, mas não informa o que é a relíquia; e de dom João Batista Scalabrini, que visitou comunidades da diocese local no início do século XX. Ele morreu e foi sepultado na Itália.
— Nós não podemos todos viajar mundo afora, então é uma forma de aproximar, de tocar, de sentir, de lembrar. O culto, que é a Deus, não é uma ilusão, e temos certificação de que essa pessoa existiu, que tem todas as virtudes religiosas. Uma aproximação não apenas com o lugar, mas com as pessoas. Uma oportunidade pra pessoa crer e não desanimar, aconteça o que acontecer — avalia o padre Volmir Comparin, pároco do Santuário.
Segundo ele, igrejas antigas do município têm seus altares sobre restos mortais de mártires, santos e beatos. No bairro Maria Goretti, a igreja apadrinhada pela santa que dá nome ao bairro também conta com uma relíquia, um pedaço da carne da personalidade canonizada em 1950.