— Tem criança que, quando chega na escola, a primeira coisa que faz é perguntar o que vai ter de lanche. Muitas vêm com necessidade de comida, de lanche da escola, que realmente precisam — relata Maria Terezinha Rochel Nunes, 55 anos, merendeira que atua há 13 anos em escolas da rede municipal de Caxias do Sul.
A ex-metalúrgica, com experiência também na rede hoteleira da cidade, sabe a importância da atividade que exerce no processo de formação dos cerca de 700 alunos da Escola Municipal de Ensino Fundamental Rosário de São Francisco, no bairro Charqueadas. Junto de suas colegas, dona Tere, como é conhecida, mantém a rotina de preparar e servir os alimentos previstos em cardápio elaborado pela equipe de nutrição da Secretaria Municipal de Educação. A soma de ingredientes diversos e saudáveis tem o objetivo de garantir uma nutrição mínima aos estudantes que, por vezes, têm a merenda como única refeição do dia.
Assim como toda merendeira, Tere ainda arca com a organização de estoque e a limpeza da cozinha e do refeitório, em cargas horárias que nem sempre garantem o tempo ideal para a plena realização do serviço. Mesmo assim, profissionais como ela, que tiveram a importância ainda mais evidenciada durante o recente desfalque registrado em transição de contratos na rede municipal, fazem questão de ir além de suas atribuições, servindo algo que não consta no cardápio, mas que nutre o coração de muitos alunos: o afeto.
— Pra mim é como se fosse minha casa, meus filhos; e eles me adotaram como se eu fosse uma mãe. Procuro fazer o lanche e a refeição deles como se estivesse fazendo na minha casa. Eu amo eles e, em troca, recebo carinho e gratidão — conta a merendeira, que chegou a ser eleita "funcionária do ano" pelos alunos, em 2018 e 2019.
— Creio eu que seja pelo carinho que tenho por eles e o modo que trato eles. Sempre respeitei e sou muito respeitada por eles. Converso, escuto o que eles têm pra falar... A gente não é "só" uma merendeira, acaba transmitindo todo esse carinho também — completa.
No momento em que a reportagem esteve na escola, uma turma do 5º ano do Ensino Fundamental era servida com o lanche do dia: sopa de lentilha.
— O lanche do colégio é muito bom, eu adoro! — exclamou uma das alunas, ao ver que a dona Tere estava sendo entrevistada sobre isso.
— É muito bom o lanche das merendeiras, eu amo elas — completou outra aluna da mesma turma.
Enquanto formavam fila para retirada do lanche a própria merendeira questionou em voz alta:
— Quem ama a tia da cozinha?
Sem titubear, os estudantes responderam em coro, animados:
— Eu!
A cozinha é o coração da escola
Dizem que "a cozinha é o coração da casa" e, provavelmente, este ambiente — e tudo que ele representa — cumpra um papel similar perante os estudantes da rede pública. A psicóloga Debora Frizzo explica que o ato de preparar a comida e alimentar está diretamente atrelado a emoções que, segundo ela, colorem a vida.
— A alimentação e tudo o quê está envolvido nela tem uma grande importância para a vida emocional dos humanos porque é através da alimentação que estabelecemos nosso primeiro vínculo de amor no mundo: com a pessoa que nos alimenta quando nascemos. Ao longo da infância, a importância desse vínculo é muito grande, pois os primeiros vínculos e as relações constroem uma espécie de “molde” para as relações adultas. A maneira como os adultos se relacionam com as crianças, e especialmente quando a alimentação está envolvida, ensinam maneiras mais ou menos saudáveis, de como se relacionar com o mundo e com as pessoas no futuro. Portanto, relações afetivas amenas, amistosas e positivas nos ambientes da criança são fundamentais para sua saúde psicológica na vida adulta — afirma a profissional, que coordena o curso de Psicologia da Uniftec.
A psicóloga destaca, ainda, que a presença de profissionais acolhedoras e carinhosas na escola, incluindo os momentos de alimentação, contribui para uma infância tranquila e, consequentemente, contribuem para a construção de uma vida melhor.
Agentes da educação nutricional
Em Caxias do Sul, são 163 merendeiras atuando somente nas escolas municipais. Não há dados sobre a rede estadual. As cozinheiras cumprem normas do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), seguindo cardápios elaborados por nutricionistas que atuam para as mantenedoras — Secretaria Estadual de Educação (Seduc) e Secretaria Municipal de Educação (Smed).
A nutricionista Heloísa Theodoro, que já atuou como servidora pública na área em Caxias do Sul e Flores da Cunha, explica que a formatação das refeições a serem servidas nas escolas busca oferecer a quantidade mínima necessária de carboidratos, proteínas, lipídios e outros nutrientes aos estudantes. A garantia de alimento saudável na escola, segundo ela, impacta diretamente no rendimento em sala de aula, contribui para o desenvolvimento físico do aluno e também exerce uma função educativa.
— A merendeira tem um papel fundamental neste contato da criança com o alimento saudável. Ela tem a responsabilidade pelo preparo seguro e adequado do cardápio, para nutrir o aluno de forma adequada, e também faz essa mediação daquele que, muitas vezes, é o primeiro contato da criança com determinados alimentos — explica a nutricionista, doutora em Saúde Coletiva, que leciona para o curso de Nutrição da Universidade de Caxias do Sul e que falou ao vivo sobe o assunto no Gaúcha Hoje desta sexta-feira (5).
A cada semestre, cerca de 400 quilos de feijão, 300 quilos de lentilha, 300 quilos de arroz e 1,2 tonelada de frutas estão entre os alimentos servidos aos 1.030 estudantes matriculados no Colégio Estadual Henrique Emílio Meyer. Localizado no bairro Exposição, o educandário atende a crianças, adolescentes e adultos de diferentes regiões da cidade, com merenda nos três turnos sob responsabilidade de três servidoras: duas que cumprem 40 horas semanais e uma que cumpre 15. Segundo a direção, pela quantidade de alunos a escola teria direito a quatro profissionais de 40 horas semanais. A situação acaba sobrecarregando as merendeiras que assumem hoje o preparo do lanche — a Seduc diz ter autorizado o envio de mais duas servidoras terceirizadas que iniciarão o trabalho nas próximas semanas.
— Seguimos o cardápio da Seduc e nosso "carro-chefe" é a comida de sal: polenta com molho, massa com molho, risoto, feijão e arroz, lentilha. Algumas coisas começamos ainda no dia anterior e depois de servir também lavamos a louça e limpamos o refeitório. A gente também recebe as mercadorias e tem que armazenar da forma correta, etiquetado. É bem puxado, chego em casa quebradinha — relata Roselei Tomazoni, 57, que integra a equipe há seis anos.
Antes disso, Roselei chegou a lecionar na própria escola Emílio Meyer. Afastou-se para dedicar-se à maternidade e, pelo gosto da convivência com os alunos, retornou como merendeira.
— Eu tinha experiência só de casa, com minhas filhas, e fui aprendendo tudo aqui. A essência é a mesma, só aumenta as quantidades. Claro que não tem todo o tempero que tem em casa, mas dá pra fazer uma comida saborosa e gostosa tendo carinho, gostando do que se faz. Me sinto feliz aqui, valorizada por toda equipe, pelos alunos, eu sinto a reciprocidade deles — conclui.
Impacto
A importância da merenda escolar e dos profissionais responsáveis pelo preparo pode ser mensurado por números da infância. Segundo dados do Cadastro Único, Caxias do Sul tinha, em junho, 16.914 crianças vivendo em pobreza e extrema pobreza. Como muitas estão em idade escolar, a refeição servida na escola tem um grande impacto no cotidiano delas.