Para quem vê a população de rua, muitas vezes sem ter como reagir dentro da própria existência, pode até parecer improvável uma mudança, um renascimento. Improvável, no entanto, é diferente de impossível. Histórias de pessoas que chegaram a um estado difícil e encontraram acolhimento em casas de passagem de Caxias do Sul são mais uma prova de que é possível, sempre, retomar o rumo da própria vida.
Ao serem encaminhados para um desses espaços, nem todos aceitam a ajuda, que pode significar um recomeço. Alguns ficam acolhidos por poucos dias e voltam para a incerteza de viver embaixo de marquises, na chuva e no frio. Os que ficam são tomados por outro sentimento. Então, as palavras que surgem são esperança, superação e alegria. Mas também há histórias tristes, que inspiram e mostram que tudo realmente é passageiro.
Na cidade, há três casas destinadas aos moradores em situação de rua: a Carlos Miguel, a São Francisco de Assis e a Santa Dulce. São 120 vagas para acolhimento e há ainda espaço para quem quer apenas pernoitar. Para quem fica abrigado, além de alimentação e acomodação, há assistência médica e psicológica e ajuda para voltar ao mercado de trabalho. As três casas são coordenadas pela Associação Mão Amiga com repasse de recursos da Fundação de Assistência Social (FAS).
Casal se conheceu em casa de passagem
Dionésio Moacir dos Santos Marques, 39 anos, e Raniele de Almeida Rodrigues, 25, dividem uma história de vida que nem sempre foi fácil. Eles se conheceram no Residencial Santa Dulce, onde passaram seis meses. Foi lá que ele refez toda a documentação, resolveu questões com a Justiça e conseguiu recolocação no mercado de trabalho. Marques atua no ramo da construção civil e Raniele está à procura de emprego.
O casal teve ajuda com aluguel social por cinco meses e mobiliou a casa com doações. Há cerca de um ano, eles recomeçaram a vida juntos. Hoje, ele tenta oferecer a quem vive na rua o mesmo cuidado que recebeu, pois sentiu na pele o sofrimento de passar frio e fome e se sentir excluído da sociedade:
— Cada uma das pessoas que trabalha lá pega um pedacinho da vida da gente e constrói uma nova chance. Eles nos ajudam e tem muita gente ali que se recupera. É o lugar para recomeçar. Muitos voltam para casa, constroem uma família e recuperam a vida. Quando vejo as pessoas na rua é como se me visse no espelho. Eu vou e digo para essa pessoa ir para a Santa Dulce porque é uma oportunidade. Graças a Deus e a todos que trabalham lá, hoje sigo trabalhando e estamos bem, tocando nossa vida para a frente — conta Marques.
Raniele também se emociona:
— Sou grata aos educadores porque recebi carinho, atenção, conselhos e força para seguir em frente. Hoje, temos nossa casinha e nem tenho como descrever o que sinto pelo meu marido. Agradeço todos os dias para Deus por termos nos encontrado — afirma ela.
Encontrei uma família, conta ex-abrigado
Natural de Pelotas, Gilson Roberto da Silva Pinto, 51, chegou a Caxias do Sul depois de ter sido espancado. Machucado, ele foi acolhido na Casa Carlos Miguel:
— Eu pensei que ia encontrar um lugar para passar a noite, mas encontrei muito mais do que isso. Achei uma família. Eles cuidaram do meu ombro, me encaminharam para atendimento — destaca Pinto.
Ele conta que depois de conseguir emprego e deixar a vaga na casa de passagem a quem precisa, ainda vai até a Carlos Miguel quando está de folga. O carinho pela equipe é tanto que ele fez questão de receber a reportagem no espaço onde foi acolhido:
— Fiquei um ano morando lá até me curar e encontrar um emprego. Hoje, trabalho em um mercado e estou tocando a minha vida.
"Pensei que minha vida tivesse chegado ao fim e hoje recomecei"
A dependência em álcool e drogas levou Marcelo — nome fictício — a morar nas ruas. Aos 48 anos, ele já foi internado muitas vezes para superar o vício. O problema do alcoolismo começou na família, quando ele ainda era um bebê. O homem foi criado pelos irmãos, após perder a mãe e deixá-los.
— Colocavam meu bico na caipirinha e davam a espuminha da cerveja para experimentar. Quando eu tinha cinco anos, tomei o primeiro porre. Deitei na cama e via o teto rodar. Na adolescência, experimentei drogas de todos os tipos, até medicamentos. Na vida adulta eu parei de usar drogas quando casei e, depois de um tempo, voltamos a ir às festas e voltei a usar. Perdia o controle. Tanto que até agredi minha ex-esposa. Depois, não lembrava de nada.
Com o tempo, ele se separou e se afastou do filho, o que o levou ao uso de crack e fez com que a rua fosse a moradia por dois anos. Marcelo conta que buscou ajuda em diversos lugares, mas se afastou de Deus e, sem essa espiritualidade, não conseguia se reencontrar. Isso até chegar na Carlos Miguel. Lá, ele conseguiu voltar ao mercado de trabalho e mobiliar a casa com móveis comprados pela internet.
— Não posso me afastar de Deus e não quero mais viver como um mendigo na rua, revirando lixo para ter o que comer. Vi de tudo, quase congelei no frio e vivia no submundo das drogas. O vício só me trouxe tragédia. Não dava mais para viver daquele jeito. Tinha momentos em que eu pensava que minha história tinha chegado ao fim. Hoje, eu recomecei e quero continuar trabalhando, me reerguer e viver uma vida normal em sociedade.
Trabalhar com o coração é essencial
Quando os moradores de rua chegam às casas de passagem muitas vezes precisam de documentação, serviços de saúde, encaminhamento para comunidades terapêuticas, consultas com psicólogos, mas, também, de acolhimento. Para a coordenadora da Carlos Miguel, Alda Lundgren, é essencial trabalhar com o coração e ver a pessoa como um todo. Para isso, é preciso conhecer a história de cada um dos moradores para atendê-los da melhor maneira possível.
— Quando eles chegam a gente precisa fazê-los deitar e dormir porque a situação de rua é grave. Eles sofrem violência, usam drogas e álcool. Chegam com autoestima muito baixa, sem perspectivava de mudança e precisam ser ouvidos e acolhidos com amor e carinho — afirma Alda.
Do portão para dentro, ela ressalta que o lema é entrar para um nova vida. Alda destaca ainda que, com os cursos profissionalizantes disponíveis no espaço do Restaurante Popular, os moradores se sentem capazes de voltar ao mercado de trabalho formal, o que ajuda a mantê-los longe de recaídas:
— Infelizmente, a gente não consegue fazer esse resgate de todos, mas muitos reaproximamos da família e fizemos com que enxerguem que há possibilidade de uma outra vida, que não é só a rua. Temos uma oficina chamada De Volta Pra Casa, porque eles não têm que procurar um canto. Canto é onde eles vão para usar drogas. Eles têm que encontrar uma casa, um lar — diz ela.
Autonomia para recuperar autoestima e dignidade
A maioria dos abrigados são pessoas em situação de rua, entre os que perderam o emprego e os dependentes químicos. Também há os que vêm para Caxias do Sul em busca de oportunidades ou estão apenas de passagem. Ainda há aqueles que vão para o local apenas à noite, em busca de banho, janta e um local seguro para dormir. A porta de entrada para o serviço é o Centro Pop Rua.
A coordenadora do Santa Dulce, Adriana Maria Dani Debastiani, explica que o serviço busca ajudar os abrigados para que tenham autonomia e recuperem a autoestima. Tanto que, em dois anos, as 638 pessoas que passaram pelo espaço foram reinseridas no mercado de trabalho:
— O serviço não é só de acolhimento. Nós providenciamos tudo o que eles precisam para recuperar a autonomia e a dignidade, com a reinserção no mercado de trabalho. Transformamos essa situação de rua com muito amor e carinho, para que saibam que não são mais um, são únicos. A gente não pode desistir nunca de lutar pelas pessoas e de acreditar.