A desigualdade social agravada pela pandemia se reflete também na vida de crianças e adolescentes de Caxias do Sul. De outubro de 2021 a fevereiro deste ano, foram 86 novos acolhimentos em abrigos. Destes, 36 foram retirados do convívio familiar nos dois primeiros meses de 2022. Segundo informações da Fundação de Assistência Social (FAS), atualmente há 232 abrigados em instituições de Caxias.
Se comparados aos dados anteriores à pandemia, pode-se ter a noção exata do impacto social. De outubro de 2019 a fevereiro de 2020, 45 crianças e adolescentes haviam sido encaminhados para abrigos de Caxias. Isso significa que o aumento foi de 91%. Entre eles, há crianças e adolescentes que sofrem negligência, abusos, maus-tratos, todo o tipo de violência, dentro de casa, e são encaminhados para unidades de acolhimento do município.
A superlotação é atribuída ao período mais intenso da pandemia de covid-19, especialmente, quando as crianças e adolescentes não estavam na escola, nos serviços de convivência, e nem recebendo visitas domiciliares de agentes de saúde, assistentes sociais ou programas de saúde e assistência social. A pandemia provocou o empobrecimento e desemprego, muitas famílias ficaram isoladas em casa, e até mesmo sem alimentação, fatores esses que se refletem no aumento de casos.
— Quando o número ficou estático em 2020 e 2021 era porque as crianças de alguma forma não estavam sendo vistas. Começou a aumentar em outubro de 2021 com o retorno para a escola e a volta dos serviços da própria assistência social e da saúde quando as violências e negligências acabam sendo vistas e estando mais aos olhos da comunidade e dos serviços — destaca a presidente da Fundação de Assistência Social (FAS) Katiane Boschetti da Silveira.
A promotora Simone Martini da Promotoria de Infância e Juventude avalia que até 2016, a situação estava estabilizada. Depois foi registrado aumento, e a FAS ampliou o número de vagas. Em 2020, antes da pandemia, o cenário era considerado tranquilo. Ainda segundo ela, o aumento observado agora era previsível, uma vez que não estavam operando em sua totalidade as redes de apoio e proteção. Mesmo assim, a promotora ressalta que a demanda surpreendeu:
— Sabíamos que ia ocorrer, talvez não o volume que foi registrado e que nos surpreendeu, especialmente, no segundo semestre de 2021 e agora no início do ano. Esse número nos fez fazer um mutirão de atendimento dos processos para agilizar a tramitação e conseguir acelerar os processos daquelas crianças que não podiam voltar para casa. Se cumpriram todas as etapas de uma forma mais ágil. Antes tínhamos intervenção e quando o serviço deixou de ser diário as questões aconteceram.
De acordo com a promotora precisaram de acolhimento crianças que não eram atendidas pela rede, ou seja, que ainda não eram monitoradas. Mesmo assim, o número maior é de crianças e adolescentes que já eram atendidos e, com a pandemia, e a suspensão dos serviços, precisaram ser retirados de casa.
— Tivemos crianças que não eram referenciados na rede e sofreram abusos ou violência mais grave e precisaram ser acolhidos emergencialmente. Mesmo assim, o que mais impactou foi a falta desses serviços prestados nas UBSs e nos CRAS, que estavam voltados a pandemia. A falta de programas como o PIM, enfim de toda a atuação em rede, de trabalhos em grupos que são importantes para toda a família. Com o retorno, e se tudo der certo, vamos conseguir retomar o rumo e trabalhar as questões preventivamente como fazíamos, que é o ideal. Que a gente possa ajudar as famílias no início do problema e não quando acontece uma violação grave de direitos — pontua Simone.
Mudança de perfil dos acolhidos impacta o serviço
Há três abrigos em Caxias com 20 vagas cada. Há também 15 casas lares. O abrigo é a porta de entrada do acolhimento institucional. A maioria dos acolhidos são crianças e adolescentes que não estão em processo de adoção. De acordo com dados do Juizado da Infância e da Juventude (JIJ), repassados à promotoria, atualmente seis crianças e 11 adolescentes que vivem em abrigos estão aptos a adoção.
Para a presidente da FAS, há movimentos diferentes no acolhimento. Um deles é que aumentou o número de grupos de irmãos que são retirados de casa, o que exige adaptações já que nem sempre há vagas suficientes no mesmo abrigo:
— São grupos de irmãos de três, quatro, cinco, e a gente já chegou a acolher até seis irmãos. A lei nos diz que os grupos de irmãos permaneçam juntos, no mesmo lugar, para a gente manter o vínculo familiar e para que eles se sintam melhores e mais seguros. Isso é um desafio porque por vezes tem duas vagas em uma casa, três na outra e, quando chega um grupo de cinco ou seis irmãos, a gente precisa organizar toda uma logística — explica Katiane.
Contudo, um dos maiores desafios encarados pela rede é a mudança de perfil dos acolhidos. De acordo com Katiane, há mais adolescentes envolvidos com organizações criminosas ou crianças e adolescentes cujos pais ou familiares estão ligados ao crime.
— Isso gera um grande trabalho, é um desafio e tem sido um movimento registrado também nas outras cidades. Nós buscamos uma conversa, inclusive, estadual, porque é um perfil novo. Quando uma criança ou adolescente está envolvido com facção, a gente sempre vai prezar pela vida desse acolhido, por isso, ele precisa ser protegido, mas também precisamos prezar pela vida dos outros acolhidos e dos funcionários.
Os abrigos funcionam 24 horas e estão em pontos não identificados da cidade. No entanto, ela esclarece que, às vezes, as famílias sabem onde eles ficam:
— Às vezes alguém do mesmo núcleo familiar já esteve acolhido naquele lugar, e isso se torna perigoso. Já tive que interceder junto com a Brigada Militar e a Policia Civil para pedir para trocar crianças e adolescentes de casa, com carro à paisana. A gente já teve que fazer escolta para outra cidade, encaminhar adolescente para programa de proteção à vitimas ou de proteção a testemunhas que estão em outras cidades, com outros nomes —revela Katiane.
Adaptações para driblar a falta de estrutura
A reportagem esteve na Casa de Acolhimento Sol Nascente na primeira quinzena de abril. Por lá, a demanda fez com que a equipe improvisasse. Colchões foram colocados no chão do quarto dos meninos e também na sala de televisão para acolher três adolescentes. No abrigo, as crianças e adolescentes são atendidos por uma equipe multidisciplinar. A família também recebe suporte para que a rede possa identificar se há condições desse abrigado voltar para casa.
— A volta em alguns casos é possível, porque não falta o afeto, mas falta a organização. Muitas vezes a família não conhece os serviços da rede, de assistência, saúde e educação, como por exemplo, o contra turno que é muito importante para que a criança tenha onde ficar enquanto os pais trabalham. A assistência dá esse suporte. Às vezes não tem como voltar e eles vão para uma casa lar. No abrigo, trabalhamos a emancipação e a autonomia dessas crianças e adolescentes — afirma a diretora do abrigo Taísa Alves da Silva.
Ela ressalta que em um contexto de superlotação se torna mais difícil desenvolver algumas atividades. Atualmente a casa abriga 37 pessoas, entre crianças e adolescentes:
— No contexto geral sentimos a diferença do nosso trabalho porque eles chegam tristes, e passa o tempo eles começam a sorrir, fazer piada e cada sorriso não tem preço. Os bebês que não sabem se expressar, eles chegam aqui pequeninhos, sem estímulos, com os braços e pernas molinhos e logo vemos eles correndo. Hoje vivemos um dos momentos mais difíceis nos pós pandemia. Estamos dentro de uma casa sem estrutura para o número de acolhidos hoje, mas seguimos trabalhando e buscando soluções para melhorar a situação das crianças — conta Taísa.
Uma das crianças acolhidas conta que ainda está se adaptando ao ambiente:
— Estou me acostumando e fiquei amiga de todo mundo aqui da casa. É legal ficarmos conversando um pouquinho antes de dormir — disse sorridente.
Alternativas para atender a demanda
Entre as alternativas avaliadas pelo poder público está a abertura de um novo abrigo para atender a demanda ou ampliação de vagas em casas já existentes. No entanto, a presidente da FAS também entende que é preciso fortalecer a atuação em rede, investir em programas e ações de prevenção e em capacitação dos profissionais para buscar outras estratégias.
— A gente está buscando aumentar o número de vagas para sair da superlotação, sim, mas não apenas isso. É preciso fortalecer o serviço Famílias Acolhedoras, para que as famílias possam se habilitar e se qualificar para receber as crianças, porque o tempo que ela ficaria dentro de um abrigo ela passaria em uma casa —afirma Katiane.
Ela ressalta que os ganhos não são apenas financeiros, mas refletem no emocional dos acolhidos:
— Uma criança ou adolescente em uma casa de acolhimento da FAS custa em média R$ 10 mil e quando vai para uma família acolhedora a gente consegue um subsídio de um salário mínimo para ajudar nos custos dessa criança. Fora isso, e mais importante, tem toda a questão dos traumas quando elas vivem em abrigos porque por mais que sejam espaços onde elas são muito bem cuidadas, os educadores e a equipe são muito amorosos, cuidam e encaminham, e busca todo um entendimento, é um espaço que não proporciona individualização.
Para a promotora Simone ampliar o programa Famílias Acolhedoras é o ideal para as crianças e adolescentes:
— Estávamos migrando para ampliar o programa antes da pandemia, e agora temos que retomar essas intervenções nas famílias, para reduzir o número de acolhimentos. Precisamos sensibilizar as pessoas para se tornar um lar acolhedor porque faz a diferença na vida dessas crianças e adolescentes, e é necessário ampliar esse serviço — enfatiza.
Dados mais recentes
De outubro de 2021 a fevereiro deste ano foram registrados 86 novos acolhimentos em Caxias.
Destes, 36 foram retirados do convívio familiar nos dois primeiros meses de 2022.
De outubro de 2020 a fevereiro de 2021 haviam sido registrados 41 novos acolhimentos.
Antes disso, de outubro de 2019 a fevereiro de 2020, 45 crianças e adolescentes tinham sido encaminhados para abrigos no município.
Atualmente há 232 acolhidos em Caxias.