Ter uma certidão de nascimento é um direito de toda criança ao nascer. Mas nem sempre o documento é completo. Dados inéditos disponibilizados pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) mostram que 2020 e 2021 tiveram os maiores índices percentuais de crianças registradas apenas com o nome da mãe em Caxias do Sul nos últimos cinco anos. Ao todo, são 1.085 certidões com o nome paterno suprimido, o que representa 3% dos 36.133 nascidos entre 2016 e 2021.
O levantamento ainda revela que 2020, o primeiro ano de pandemia, foi o que teve maior registros de nascimentos de crianças sem o nome do pai, totalizando 241 casos em 12 meses. O número representa 22% a mais do que o ano anterior, quando 197 meninos e meninas tiveram apenas o nome da mãe em suas certidões de nascimento. Já no ano passado, conforme dados do portal, 225 casos semelhantes foram registrados pelos Cartórios de Registro Civil caxienses. Em 2022, de 1º de janeiro a 31 de março, 67 certidões já foram emitidas sem o nome paterno.
Embora os números pareçam ter pouco significado perante o todo, cada criança que não carrega o nome do pai em sua certidão de nascimento é uma pessoa que pode ser privada de direitos legais.
— Trata-se de um direito fundamental da criança, garantido pela nossa Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Este reconhecimento, além do caráter psicológico e afetivo, ensejará direitos ao menor, tais como pensão alimentícia e herança — aponta o advogado especialista em direito de família e sucessões Alexandre Atti.
Uma boa notícia é que mesmo sem a iniciativa do pai biológico, a criança pode ter a certidão de nascimento completa. Desde 2017, o reconhecimento da paternidade socioafetiva pode ser realizado diretamente em cartório. Neste caso, a criança precisa ter 12 anos ou mais e o pai socioafetivo tem que ser maior de idade. Outra regra é a obrigatoriedade da diferença de mínima de 16 anos entre os envolvidos. Também é preciso comprovar o vínculo de afeto, por meio de testemunhas e documentos.
— O pai socioafetivo, também chamado de adotivo, tem o mesmo status do pai biológico no registro civil de uma pessoa. O reconhecimento deste vínculo poderá ser voluntário e amigável em qualquer cartório do país, desde que haja consenso entre as partes envolvidas. Caso não seja esse o caso, necessário buscar esse reconhecimento através de ação judicial própria, normalmente Ação de Investigação de Paternidade, que poderá ser cumulada com pedido de alimentos provisórios — detalha Atti.
Sem registro, sem suporte: os desafios de uma mãe solo
Para além de um nome em um documento, o não reconhecimento da paternidade desdobra-se, em boa parte das vezes, em outras situações, que vão desde a falta de vínculo e afeto com a criança à inexistência do suporte à mãe e todas as demais responsabilidades que deveriam estar associadas à figura paterna.
Uma mulher de 32 anos, moradora de Caxias do Sul, recorreu à Justiça para que o pai do seu filho fizesse o reconhecimento da paternidade. Como o processo ainda está em andamento e para proteger a criança de dois anos da exposição, ela preferiu contribuir com a reportagem sem se identificar.
A relação entre Maria (nome fictício) e o pai da criança terminou quando ela ainda estava grávida. Desde o nascimento do menino até hoje, cabe a ela suprir todas as necessidades do filho, seja por meios afetivos ou financeiros. Uma carga solitária que, segundo Maria, torna-se ainda mais difícil a partir de julgamentos de terceiros que desconhecem sua história.
— As pessoas pegam a certidão (de nascimento) e não te falam nada, mas o olhar delas quer dizer muito. Ficam aqueles questionamentos "e o pai da criança?" "Por que (não registrou)?". A gente enfrenta o olhar de pena e o julgamento — conta a mãe.
Para ela, fica a sensação de que as responsabilidades da mãe são obrigatórias, enquanto para o pai é opcional cumprir com seus deveres:
— O João (nome alterado pela reportagem) foi uma criança prematura, que ficou 52 dias no hospital, ele dependia muito de pai, mãe... E só tinha eu. São situações como essa que nós, mães solo, sofremos. Tem que se virar, fazer o dinheiro dar pra tudo. Eu tive e tenho que ser forte. Matamos um leão por dia pelos nossos filhos e para poder viver — desabafa Maria.
Agora, ela e o filho aguardam o resultado de uma audiência marcada para o mês de maio. A expectativa é garantir que o menino tenha acesso à pensão alimentícia a partir da conclusão do processo — enquanto a ação segue em andamento, segundo Maria, ficou determinado que o homem arque com um valor mensal no que é chamado de "alimentos provisórios".
COMO FAZER O RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE
:: O procedimento pode ser feito diretamente em qualquer Cartório de Registro Civil do país, não sendo necessária decisão judicial nos casos em que todas as partes concordam com a resolução.
:: Nos casos em que iniciativa seja do próprio pai, basta que ele compareça ao cartório com a cópia da certidão de nascimento do filho, sendo necessário o consentimento da mãe ou do próprio filho, caso este seja maior de idade.
:: Em caso de filho menor de 18 anos, é necessário o consentimento da mãe.
:: Caso o pai não queira reconhecer o filho, a mãe pode fazer a indicação do suposto pai no próprio Cartório, que comunicará aos órgãos competentes para que seja iniciado o processo de investigação de paternidade.
:: Em Caxias, os reconhecimentos de paternidade sofreram queda em meio à crise sanitária, passando de 33 atos realizados em 2019, para 10 em 2020 e quatro em 2021.
Fonte: Arpen/RS