Em um tempo em que amores vem e vão na mesma velocidade com que se troca mensagens por aplicativo de celular, é motivo de orgulho um casal celebrar 74 anos de casamento. Esse romance, que iniciou por causa de um evento trágico, se transformou em uma linda história de vida. Em 1945, depois do fim da Segunda Guerra Mundial, Antônio Rodrigues de Souza levava seu cunhado, que havia lutado na Itália contra o nazismo, de volta para casa. A viagem longa era feita a cavalo e foi durante o percurso que seu destino cruzou com Helena Vieira de Souza.
Helena e Antônio logo notaram que o futuro dos dois seria junto um do outro. Assim, começaram a namorar e, em seguida, se casaram. Os dois eram de famílias pobres, nascidos no Rincão do Lourenço, conhecido na época como 10º distrito de Pinhal da Serra, pertencente ao município de Vacaria.
Seu Antoninho nasceu no dia 11 de julho de 1927 e dona Helena veio ao mundo em 25 de setembro do mesmo ano. Como conta seu Antônio, "a diferença é pouca". O casamento foi realizado no dia 31 de julho de 1947, Antônio estava com 20 anos recém completos e Helena, ainda com 19, prestes a completar 20 anos também.
Poucos anos após o casamento, em 1950, o casal foi morar em uma chácara. Na propriedade de 15 hectares, eles começaram a construir uma vida juntos, cujo ganha pão era a agricultura.
— Esse chão que estou agora, eu vim para cá no dia 25 de janeiro de 1950, eu tinha 23 anos, criei minha família plantando arroz, milho, mandioca, trigo, feijão, as “miudezas de horta”, criando um porquinho. Demoramos muitos anos para conseguir uma rés de gado para ter leite, faz mais ou menos uns 30 anos — relembra Antônio.
Foi nessa propriedade que o casal começou a família. Eles tiveram 11 filhos, mas desses, 2 morrerem quando crianças e a última gestação resultou em um aborto. Dos 9 filhos que chegaram à idade adulta, 8 ainda estão vivos. Salete, uma das filhas mais novas, faleceu há 5 anos de um tumor na cabeça.
— Dois eram doentinhos e faleceram. A vida era rústica e braba. A gente pobre aqui do interior quase não havia remédio, não tinha estrada e nem carro — relata ele.
Os 9 filhos (Soledade, Adão, Odila, Deusina, Verônica, Vitório, Salete, Luciano e Nair) deram aos pais 21 netos. Seu Antônio e Dona Helena também têm a alegria de terem 27 bisnetos e 5 tataranetos.
Quase não havia estradas e, as que existiam, eram feitas manualmente, na base do arado. Segundo Antônio, era difícil até mesmo passar com as carroças pelo caminho. Apesar de todas as dificuldades, inclusive por morarem em um local distante das grandes cidades, Antônio e Helena, superaram diversos desafios.
Métodos alternativos para curar picada de cobra
Entre as dificuldades da lida no campo, Antoninho conta que Helena foi picada por uma cobra, um ano antes de se casarem, e não pode ser tratada corretamente. Algumas pessoas foram a cavalo até Esmeralda, que fica a 24 km de distância, mas a agulha do frasco que continha o soro se rompeu e o líquido se perdeu. Helena precisou ser tratada com “erva do mato”.
Os dois são semelhantes até mesmo na má sorte. Em 1960, seu Antônio também foi atacado por uma cobra e precisava ser tratado rapidamente. Entretanto, Pinhal da Serra possuía apenas um carro e, por coincidência, o veículo estava quebrado. O agricultor também precisou se tratar com o que chama de “água do mato”.
Outro perrengue que passaram juntos foi um ataque de abelhas, quando estavam indo visitar um genro depois do casamento. Nas palavras de Antônio, um senhor “malandro” decidiu extrair o favo de mel de um ninho de abelhas com pedaço de madeira e acabou provocando a ira das abelhas. Quando passavam pelo local, o casal foi atacado pelos insetos.
— O cavalo da minha esposa se abaixou, ela caiu e se machucou bastante. Eu, quando me vi mal, larguei o cavalo sem encilhar e nos escondemos em uma valeta. E, por uma coincidência, achei um fósforo no bolso, fiz uma fumaça e foi o que nos salvou de morrer com o ataque daquelas abelhas — ele descreve.
Em 1980, seu Antônio conseguiu instalar luz na casa e com isso puderam começar a ter acesso a algumas facilidades do mundo dito moderno.
— Tivemos dias de alegria e de tristeza. A gente trabalhou muito e levantou muito peso que não deveria erguer. Foi uma vida um pouco pesada, mas vencemos. A gente vai “peleando”, quando aparece alguma dificuldade, a gente vai indo, vai levando a vida — analisa Antônio.
Engajamento político
Das conquistas que leva na memória, Seu Antônio destaca seu engajamento nos direitos dos agricultores e sua luta pela emancipação da sua comunidade. Ele ajudou a emancipar o município de Esmeralda, em 27 de novembro de 1963 e, Pinhal da Serra, em 1 de janeiro de 2001. Trabalhando como membro do conselho do sindicato de Esmeralda, seu Antônio viajou para Porto Alegre, em 11 de fevereiro de 1992, juntou-se a outras 10.600 pessoas e ajudou a pressionar o governo para que os agricultores pudessem se aposentar com 65 anos e as mulheres com 60 anos no meio rural.
— Já me conto feliz que ajudei a fazer algo pela comunidade como um homem pobre e só com a 5ª série. Graças a Deus, criei minha família, tenho boa amizade com todos e aquele pouquinho que eu pude ajudar na minha comunidade, eu ajudei — pondera.
Um dos motivos de orgulho e que refletem as lutas do Seu Antônio, é ter o neto José Robison Rodrigues Duarte como prefeito de Pinhal da Serra.
— Pra mim, é uma grande honra, um grande prazer, uma família pobre, criada nas encostas do Rio Pelotas, ter alguém na administração pública — conta orgulhoso.
A infância de Antônio é o retrato de um conjunto de dificuldades que tinham tudo para tornar ele alguém diferente. Aos 11 anos, seu Antônio ficou órfão. No dia 12 de janeiro de 1939, na sua frente, o pai de Antônio cometeu suicídio ao se disparar um tiro no peito. O pequeno Antônio assistiu tudo e pode apenas pedir a benção e se despedir do pai com um beijo na mão. Depois disso, ele viveu 8 anos de casa em casa.
— Uma vida braba, mal de roupa, pés no chão, comendo mal, isso quando lembravam de mim. Às vezes, eu passava vontade de pegar um pedaço de pão, mas não pegava porque precisava da permissão do dono da casa. Eu morei em apenas uma casa onde me davam roupas limpas e uma cama para dormir, nas outras era tipo um peregrino, me davam comida em um canto, sem comer na mesa, sem colégio — relata.
Dessa vida sofrida, o único arrependimento que seu Antoninho carrega nesta vida é não ter conseguido estudar. Por ter vivido sem rumo, ele não frequentou a escola e somente conseguiu realizar o seu desejo de aprender depois de adulto ao pagar um professor para poder aprender o básico e se alfabetizar.
"Nós temos amor, mas o problema de saúde fez a gente ter que morar longe"
A vida de Dona Helena também se deparou com diversas dificuldades, entre elas um câncer no intestino há 18 anos que a obrigou a passar muito tempo em tratamento no Hospital Geral de Caxias do Sul, além de uma cirurgia na vesícula.
Hoje, aos 94 anos, o tempo, aquele que chega para todos trazendo o peso da idade, trouxe um complicador ainda maior para Seu Antônio e Dona Helena. Atualmente, eles estão morando em casas separadas por cerca de 2km. Depois da morte da filha Salete, Dona Helena não foi mais a mesma. Ela está com Alzheimer e está sendo cuidada por uma das filhas há mais de 6 meses.
— Vou a cada três ou quatro dias ver minha patroa. Agradeço a Deus por ter tido uma infância assim, uma vida comprida e com muita dignidade, muito amor familiar. Não fico nem 8 dias sem ver ela. Ela melhorando, ela vem para casa. Nós temos amor, mas o problema de saúde fez a gente ter que morar longe — conta.
Para Seu Antoninho, como é conhecido pela família e amigos, o segredo de tanto tempo juntos é o companheirismo. Ele avalia que hoje tudo está diferente e os casais se divorciam rapidamente.
— Nós tivemos nosso amor de novos e, hoje, nós precisamos manter a tendência de um atender ao outro nessa velhice que estamos caminhando para nossos 94 anos. Não tenho nem como agradecer a Deus por ter nos dado força para vencer isso — agradece ele.
A fé é o que move o Seu Antônio. Todos os dias, fielmente, ele faz duas orações, uma às 6h e, a outra, às 18h, para agradecer a Deus.
— Deus é quem sabe quantos anos ainda vamos estar juntos, mas eu tenho uma fé pura em Deus que nós vamos lidando — finaliza.