Dia a dia, os moradores da Rua Vico Parolini Thompson, no bairro Cristo Redentor, em Caxias do Sul, viram vizinhos de décadas desaparecerem do convívio diário. Em 20 dias, sete pessoas perderam a luta contra a covid-19, deixando seis famílias enlutadas e a vizinhança assustada. Os parentes das vítimas não sabem como se deu o contágio e se existe alguma relação com o convívio no local, mas a sequência de mortes e de doentes mobiliza quem vive no lugar a procurar notícias para saber como está a saúde dos outros vizinhos.
Maria de Lourdes Alfonso da Silva, 83 anos, foi o primeiro caso da sequência de óbitos na rua. A neta, Cassiane da Silva Rolim Leão, 33, conta que a idosa tinha doença de Alzheimer, foi ao médico e recebeu o tratamento para o início de uma pontada de pneumonia. Fez nebulização na unidade de saúde do bairro. Mas, com o passar dos dias, ela foi ficando mais debilitada. Até que, em 7 de março, foi levada à UPA Central. Recebeu oxigênio para ajudar na respiração, mas não resistiu e morreu na madrugada do dia 8. O atestado de óbito traz o caso como suspeita de covid-19, mas a família ainda não teve a confirmação. Segundo Cassiane, apenas um neto teve a doença e ele ficou em isolamento e não teria tido contato com a avó.
– Por mais que ela tivesse Alzheimer, estava sempre ativa, lavando louça, secando, olhando TV, contando as histórias dela. Essa era a vida dela – lembra a neta.
Tibúrcio Borges Maciel, 73, não teve muitos sintomas. Os filhos Marciano, 43, e Marcelo, 49, contam que o pai sentia cansaço e, quando perceberam que o quadro estava se agravando, levaram-no na unidade de saúde do bairro, dia 23 de fevereiro. De lá, ele foi para a UPA Central, onde permaneceu até o dia seguinte, quando foi encaminhado ao Hospital Virvi Ramos. Teve piora do quadro e, no dia 1º de março, foi para a UTI. Ele morreu no dia 14.
– Ele andava sempre de máscara – completou a viúva, dona Marilene, 69, que também teve a doença, assim como a maioria do núcleo familiar.
– Saía, mas ia conversar com os amigos na esquina. Dava uma voltinha no bairro e vinha para casa. Ia no mercado. Aqui é todo mundo amigo, conhecidos de 40 anos. Nos criamos aqui. Faltava um mês para a vacina – comentou Marciano.
Uma foto descontraída de Maciel foi entregue como lembrança aos amigos. Nela, a família escreveu: "A morte nos separou, mas o sentimento para sempre manterá você em nosso coração. Te amaremos para sempre..."
Claiton perdeu a avó e a mãe ainda luta contra a doença
Dos moradores que contraíram o coronavírus, alguns ainda permanecem hospitalizados. O instrutor de autoescola Claiton Guglielmin, 36, perdeu a avó há cerca de duas semanas e a mãe está no hospital há oito dias. A avó, Ida Líbera Stuani Guglielmin, tinha 89 anos, teve sintomas de gripe e a falta de ar, que ela já tinha, se acentuou. Foi levada para a UPA Central no dia 17 de março e morreu no dia seguinte.
Claiton e a mãe também tiveram sintomas gripais e fizeram o teste após o óbito de Ida. O resultado da mãe foi positivo e ela iniciou, em casa, o tratamento prescrito pelo médico. Apresentou piora do quadro pulmonar e acabou internada no dia 24 de março. Na última quinta-feira, segundo o filho, o estado dela era bom.
– Não faz nem oito meses que meu avô faleceu, de morte natural. Agora a avó e a mãe fica doente. Não deu para digerir ainda. Não entendemos bem o que está acontecendo –ponderou Claiton.
Ida tinha feito as duas doses da vacina, mas não havia completado o período de 14 dias da segunda aplicação, que daria efetividade à imunização.
Isabel perdeu dois irmãos em 18 dias
Na família da Isabel Senna de Souza, 51, foram duas perdas. Dois irmãos morreram no intervalo de 18 dias. Bernardino Senna de Souza tinha diabetes. Ele foi levado para a UPA Central na noite do dia 8, uma segunda-feira, e morreu na madrugada da quarta, dia 10. O outro irmão, Isaías Senna de Souza, 57, tinha hipertensão e obesidade. Ele foi internado no Hospital Virvi Ramos, teve complicações renais e morreu no domingo passado. Eles moravam em casas separadas, mas no mesmo terreno, que tem frente para a rua de trás. Outros familiares também contraíram o vírus e estão isolados em casa.
– Os dois conseguiram entrar no hospital. Os médicos e enfermeiros fizeram o que puderam. Mas, eles também têm seus limites. Tirou o nosso chão. Dois irmãos em menos de 20 dias. Perdemos a defesa. Não sabemos como agir. Não consigo dormir direito. Fico com o telefone, parece que vou receber outra notícia. O sistema nervoso abala, não se tem tranquilidade, não se come direito, não se sabe andar na rua, quem está contaminado ou não. Ligamos a televisão e é só morte, morte; não tem uma esperança, algo que motive a gente – desabafou Isabel.
A filha de Isaías, Janaína Borile de Souza, 30, diz que o pai era um homem do bem, muito trabalhador e religioso:
– Amava pescar, churrasco era todo final de semana. Vinho e coca-cola não podia faltar. Tinha muito orgulho da sua religião, a umbanda, onde presava e acreditava muito os seus guias. Dele, nós temos muito orgulho pois sempre estava com nós nas horas boas e ruins e, sempre que alguém precisava, ele estava ali para ajudar.
"Ela tentava ajudar todo mundo", disse a filha sobre dona Ana
A mãe da Cristina de Oliveira Camargo, 37, começou a ter sintomas de gripe, febre e dor de garganta 11 dias antes de ser internada. Ela chegou a tomar os remédios do chamado tratamento precoce, sem sucesso. Foi ao hospital quando já sentia cansaço excessivo. Ana Rosalina Bemfica de Oliveira, 69, foi atendida na unidade de saúde do bairro e encaminhada à UPA Zona Norte. Segundo a filha, a mãe implorava por ajuda porque sentia muita dor no corpo. Ela teve uma pequena melhora e, depois, uma piora acentuada na quinta-feira, dia 18, quando precisou ser entubada. Foi encaminhada a um leito de UTI no Hospital Geral, onde morreu no dia 24.
– Era uma pessoa muito boa. Ela tentava ajudar todo mundo. Quando começou a pandemia, não gostava que ela andasse para lá e para cá de ônibus. Aí, ela ficou aqui comigo. Éramos só nós e minha filha. Era minha companheira – relatou a filha.
Na família, Cristina e as três filhas também contraíram o vírus.
– Ela (mãe) tinha medo exatamente do que aconteceu, de ir para o hospital e ficar sozinha. Ela disse para a Camila (neta) antes de ir para o hospital: "não esquece que eu te amo" – contou, emocionada, Cristina.
Seu Romeu foi sepultado sob a bandeira do Juventude
Foi sob a bandeira do Juventude que Romeu José Klein, 73, foi sepultado no último dia 23. Ele ficou 43 dias internado no Virvi Ramos, mas não conseguiu vencer as complicações causadas pelo coronavírus. No final de janeiro, ele comentou com a família sobre uma dor de garganta. Uma semana depois, se sentiu tão mal que não conseguiu deixar a cama. A filha Renata levou-o na unidade de saúde do bairro e, depois, na UPA Central, onde foi detectada uma pneumonia leve. Ele foi orientado a fazer o tratamento em casa. Dois dias após, teve febre e apresentou baixa saturação. No dia seguinte, em 8 de fevereiro, Renata levou-o novamente até a UPA, de onde já foi encaminhado ao hospital. No dia 10, foi encaminhado à UTI. Ele chegou a ser extubado, mas teve problemas nos rins, infecções e o quadro foi piorando até a morte.
– A última vez que falei com ele foi em 10 de fevereiro. Depois, nem pude ver. Ficávamos todos os dias aguardando as ligações da equipe (do hospital). É uma angústia que não tem fim – relata a filha.
Segundo Renata, o marido e a mãe dela, esposa de Romeu, tiveram a doença, mas em dezembro do ano passado. À perda da família se somou ainda a morte do sogro de Romeu, de 101 anos, de causas naturais, no dia em que o genro foi internado. De Romeu, a filha tem certeza que todos vão lembrar do amor que ele tinha pelo time do coração:
– Ele era extremamente alegre, bem agitado. Juventudista fanático. Ele tinha pedido: quando eu morrer, coloca minha bandeira. A última foto que tiramos dele sorrindo está com a camisa do Juventude.
"A lembrança que fica é aquela do último momento que vimos eles", disse irmão de duas vítimas
As famílias que não conseguiram realizar velórios dos entes queridos referiram a dor de não poder se despedir da maneira tradicional. A cerimônia de Bernardino foi ao ar livre, com número restrito de pessoas. A de Isaías pode ter quantidade maior de familiares porque o tempo de transmissão do vírus já havia passado. Mas, ambas sem aproximação dos parentes.
– Ficamos sentados lá. Chegaram aquelas pessoas (funcionários da funerária) com máscara e aquelas proteções. O caixão muito distante, não podíamos nos aproximar. Simplesmente olhar uma foto dele, do lado do caixão. Eles entram no hospital e quem viu, viu, quem não viu, jamais. A lembrança que fica é aquela do último momento que vimos eles – disse Isabel Senna de Souza.
A última vez que Cristina de Oliveira Camargo falou com a mãe foi na UBS, quando colocaram Ana Rosalina na ambulância para levá-la para a UPA. Depois disso, a filha só pôde dar adeus à mãe no hospital, à distância, com um vidro separando as duas.
– O mais difícil é não poder se despedir. Não pude tocar nela. Não pude dar um velório decente para minha mãe. Não pude arrumar um vestido, pentear os cabelos. Abraçar e beijar. Nunca mais vou poder fazer isso. Ela foi tirada do carro fúnebre e colocada em uma gaveta. Não foi padre, só meia dúzia de familiares, que, entre nós, fizemos uma oração e foi isso – relatou emocionada Cristina.
Vizinhos estão assustados com o contágio de moradores
Os moradores da rua que não contraíram o vírus estão assustados. Nesta quarta-feira, a aposentada Nelsi Schiochett Nenin, 65 anos, disse que vai para Capão da Canoa para se afastar do local. Ela mora há 40 anos no lugar, conhece todos os vizinhos e não entende o que pode estar acontecendo:
– Estou me sentindo com medo. Aqui na nossa rua, o que será que está acontecendo? Eu sempre caminho, me cuidando. Meu marido já fica em casa, porque tem imunidade baixa, mas o pessoal está apavorado perguntando sobre essa rua – conta a aposentada.
Dona Nelsi refere que os casos da doença na rua chegaram ao conhecimento de moradores de outras vias do bairro. Ela diz que é questionada sobre os vizinhos. Diz que as pessoas perguntam se os moradores estão bem, se fulano está contaminado, se beltrano está no hospital. Na casa, moram ela, o marido e a filha e nenhum contraiu o vírus.
Quem também mora na Vico Parolini Thompson é o vereador Rafael Bueno. Ele e a família também tiveram covid-19, a forma mais leve da doença.
– Aqui na rua todo mundo pegou, ninguém sabe de onde, daqui a pouco um passou para o outro... – comentou o parlamentar.