Os profissionais do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) têm a tensão da emergência na assistência em saúde incorporada no dia a dia, por causa do tipo de trabalho que exercem. Faz parte da atividade e eles são treinados para atuarem no limite entre a vida e a morte dos pacientes. Contudo, nos últimos meses, a realidade se tornou ainda mais exigente e desgastante com o agravamento da pandemia de covid-19.
A técnica em enfermagem, Gláucia Scherer, 37 anos, conta que os profissionais perceberam uma dificuldade maior em reverter casos mais graves da doença e salvar vidas.
– Estamos chegando em atendimentos graves, principalmente de covid, e não estamos conseguindo ter o sucesso adequado que costumávamos ter. Isso nos deixa tristes porque damos o melhor e, mesmo assim, não estamos conseguindo recuperar esses pacientes porque a doença está vindo de uma forma bastante agressiva. Antigamente, conseguíamos chegar no hospital a tempo de salvar a vida. Hoje não vencemos mais esse tempo-resposta porque a doença está muito rápida, assustadora – desabafa a profissional.
Gláucia pilota uma das motolâncias de Caxias que, geralmente, se deslocam com as unidades avançadas, as chamadas UTIs móveis. Segundo ela, cerca de 80% dos atendimentos são relativos à covid-19. A incidência de pacientes com infarto, acidentes vasculares cerebrais, complicações pulmonares e outros agravamentos ocasionados pela doença tem sido maior neste mês. Para quem aciona o serviço, o Samu representa a garantia de atendimento nas emergências do Sistema Único de Saúde (SUS) da cidade.
– Existem dois pontos cruciais: quando o socorro não é enviado no momento, essa pessoa talvez não vá conseguir entrar nas UPAs. Ao mesmo tempo, quando vai a ambulância, existe a responsabilidade sobre aquele paciente, que pode ficar dentro dela a partir daquele momento porque não tem para onde levá-lo devido à superlotação. Já chegamos a ficar com pacientes de trauma, de acidente, por mais de duas horas na ambulância – lamentou Gláucia.
– Na semana passada, um paciente (com covid) entubado ficou quase três horas na ambulância. Estava em frente ao hospital, que não conseguia receber. Depois de duas horas e meia, a ambulância teve que voltar para a base para colocar um torpedo de oxigênio a mais para conseguir esperar – contou o condutor do Samu, Bruno Eduardo Schumann, 34 anos.
"Não tem onde deixar", diz condutor sobre os pacientes socorridos
O tempo de represamento só não é maior porque as equipes das instituições de saúde têm readequado os espaços para acomodar mais gente. Uma ambulância extra foi equipada com UTI para o caso de precisar permanecer com o paciente um longo tempo em ventilação mecânica. Isso ainda não ocorreu. Mas, por diversas vezes, segundo os profissionais, as ambulâncias ficaram paradas nos hospitais porque eles não conseguiam local para colocar o paciente, que ficava esperando por uma vaga em cima da maca do Samu.
Enquanto isso, com equipamento retido, o veículo não pode atender a outros chamados. Essas situações já ocorreram por um tempo mais longo (de mais de um dia) em outros períodos, como em 2009, durante a epidemia de H1N1. Desta vez, são os pacientes de outras comorbidades que acabam esperando mais.
Gláucia conta que também já houve caso de uma ambulância encaminhar uma pessoa para o hospital que atendia ao convênio que ela tinha, mas diante da falta de vaga, a instituição teve que comprar um leito em outro hospital, para onde a pessoa acabou sendo levada.
– Chegamos na rede hospitalar, tudo lotado. Olhamos uma sala, quem não está na máscara de oxigênio, está no tubo. Não tem onde deixar. Acomodamos pacientes em poltronas. Vamos de uma unidade para outra tentando leito. Pacientes dos planos de saúde sendo encaminhados para o SUS, que absorve. Outras demandas acontecem da mesma forma que antes e têm dificuldade de encaminhamento – relata Schumann.
Por fim, quando nenhuma tentativa de socorro surte efeito, a equipe do Samu ainda precisa resguardar o paciente que morreu até que ele seja levado pelo serviço funerário.
– Quando é uma suspeita de covid ou confirmado, nós protegemos esse corpo para não contaminar ninguém. Temos que isolar o local e os familiares não aceitam, eles querem se despedir – conta Schumann.
Número de ligações para o 192 triplicou
O médico socorrista e regulador do Samu, Gilmar Padilha Flores, conta que o trabalho aumentou bastante, tanto no atendimento quanto na regulação do serviço. As pessoas têm muitas dúvidas e medo, segundo ele.
– Temos transportado muitos pacientes das UPAs para os hospitais. Pacientes que estavam sendo manuseados nas UPAs mas que, com a piora, foram entubados e estão sendo transferidos para as UTIs – relatou.
O médico diz que o número de ligações triplicou, assim como a quantidade de atendimentos e o transporte nas últimas semanas. Além da busca por informações, quem liga para o 192, em geral, está sintomático, com dificuldade respiratória. Muitas vezes, já sabia que estava com a doença e piorou em casa.
– As pessoas continuam ligando para o Samu porque é o único recurso que elas têm com certeza de porta aberta. O Samu não deixa de atender ninguém. Não temos limite de atendimento. Nosso limite é, por vezes, a demora em função de vários casos ao mesmo tempo. Mas atendemos a todos. Ao passo que os hospitais e as UPAs têm a restrição de espaço físico – pondera o profissional.
Os pacientes atendidos pelo Samu entram nas unidades e hospitais pela emergência. É dentro do hospital que será verificada a necessidade de leito de UTI. O problema é que as equipes relatam que têm atendido a casos mais graves. E essa gravidade tem muita relação com o comportamento das famílias.
Por isso, é importante reforçar que a orientação é: ao sentir os sintomas, procure uma unidade básica de saúde e não deixe o caso se agravar. Também é preciso atentar para o perfil dos pacientes, que mudou bastante nos últimos tempos. A maior parte dos chamados são para pessoas na faixa etária entre 30 a 50 anos e, muitas delas, obesas.
– Chegar em uma casa e ouvir a pessoa dizer: me ajuda a respirar, eu tô sufocando, e saber que podemos fazer a diferença para aquela pessoa, ao mesmo tempo que é tenso e sofrido, tem uma gratificação do outro lado que não tem preço – disse Gláucia Scherer, piloto de motolância.
Profissionais convivem com cansaço físico e emocional
A equipe do Samu não tem déficit de pessoal, como outros serviços da área da saúde em Caxias. Mas todos sentem os efeitos da exaustão. O cansaço é físico, devido ao aumento no número de atendimentos e de novos procedimentos, e também emocional, pela dramaticidade dos casos e o medo de ser vetor de contágio no ambiente familiar.
Todos os profissionais receberam as duas doses da vacina contra a covid, mas já foram registrados casos de reinfecção. Isso ocorre porque as vacinas não impedem as pessoas de contraírem novamente o vírus. Elas evitam o desenvolvimento de uma forma mais grave da doença.
Além do serviço propriamente dito, a cada atendimento os profissionais precisam vestir uma roupa especial (um macacão de TNT, que é descartado após cada assistência, e outro impermeável, quando o paciente é confirmado com covid) sobre o uniforme. Mais uma série de equipamentos de proteção individual (EPIs).
– O EPI cansa muito a gente, porque aumenta a temperatura corporal, acaba desidratando – comenta o condutor Bruno Schumann.
"O problema são as pessoas", diz médico sobre aumento de casos de covid-19
As ambulâncias são higienizadas com produtos específicos, também a cada atendimento, pelos próprios profissionais. As tarefas se somam às demais da rotina. Elas são necessárias, porém acabam atrasando um pouco as saídas para novos chamados. Ao chegar aos locais, muitas vezes, os socorristas ainda enfrentam a dificuldade de acesso aos pacientes e para remoção das pessoas debilitadas.
– Estamos tentando ser fortes. Nos ampararmos um no outro. O que muitos estão sentindo é o medo do que levamos para casa. Nós estamos vacinados, nossos familiares não. E nosso motivo de ir para casa, no final do dia, é eles – disse Gláucia Scherer, que tem marido e dois filhos, teve a doença duas vezes, mas nenhum familiar se contaminou.
– Trabalhamos um pouco mais assustados, angustiados, porque vemos colegas ficando doentes, sendo afastados. Vemos, quase diariamente, o sofrimento aumentando. Meu maior medo é que um familiar adoeça e precise de leito e a disponibilidade é pouca – declarou o médico Gilmar Flores.
O socorrista acredita que só haverá um pouco mais de tranquilidade em relação ao contágio pelo vírus quando uma faixa entre 60% e 70% da população estiver imunizada. Enquanto isso, ele faz um apelo:
– O problema não é o comércio, não é a escola. O problema são as pessoas. Enquanto as pessoas não acreditarem que a doença é grave e mata, elas não vão ficar em casa, vão se contaminar e nosso trabalho aumenta. Por favor, fiquem em casa.
Samu em Caxias
:: 133 funcionários
:: 40 médicos
:: 11 enfermeiros
:: 31 técnicos em enfermagem
:: 33 condutores
:: 15 auxiliares de regulação médica
:: 4 outras funções (três operários, um agente administrativo)
Chamados e atendimentos
Março de 2020:
:: 8823 ligações; destas, 3551 foram reguladas por um médico (nas demais entram trotes e chamadas que não se completam). Das 3551, 30% eram pedidos de informações ou de atendimentos sobre covid-19; 1668 resultaram em atendimentos pelas ambulâncias na rua. Do total de atendimentos na rua, entre 2% a 5% eram sobre covid-19.
Março de 2021 (até o dia 23):
:: 6137 ligações; destas, 3123 foram reguladas por um médico; 70% delas foram sobre covid-19, entre dúvidas, atendimentos e transporte de pacientes; as saídas de ambulância foram 1590, sendo que um terço para casos de covid.