O período de isolamento social, com escolas fechadas durante a maior parte do inverno e diminuição do contato, fez reduzirem os casos de síndromes respiratórias em crianças na Serra. Porém, outras condições de saúde foram agravadas em meio a pandemia: cáries, acidentes domésticos, ansiedade e piora na qualidade da alimentação afetaram mais frequentemente os pequenos que ficaram em casa, longe da rotina escolar. É isso que relatam especialistas que trabalham com o público infantil em Caxias do Sul.
Confira abaixo, uma série de relatos e avaliações sobre como amenizar os problemas e auxiliar no dia a dia das crianças diante da nova realidade imposta pelo coronavírus.
Doce não é o único vilão para dos dentes
As escolas costumam ter rotinas bem definidas para o cuidado da saúde bucal, como momento para a escovação dos dentes. Em casa, as famílias podem enfrentar maior dificuldade para garantir esse cuidado, já que algumas crianças apresentam resistência em fazer a higienização orientada por especialistas. Em um contexto de pandemia, quando a saúde emocional também é impactada, a mudança de comportamentos dos pequenos pode tornar tudo ainda mais difícil. Especialista em odontopediatria, Júlia Vailatti percebeu aumento dos pacientes com cáries no consultório ao longo dos últimos meses.
— Muitos pais pensam que só o doce que causa cárie dental, mas na verdade é o desequilíbrio na alimentação. Às vezes, não é só a quantidade de doce, mas a frequência que essa criança ingere o doce. Então, muitas vezes, almoçou e logo depois escovou os dentes, mas a criança já comeu uma bala, já foi comer um sanduíche e fica o dia inteiro tomando suco. É preciso ter um equilíbrio na dieta. Não adianta só fazer a higiene bucal e não ter um equilíbrio alimentar.
Os maus hábitos podem gerar ainda outros problemas, como infecções mais graves nos dentes, ou inflamação na gengiva. Júlia explica que a falta de cuidados que afeta os dentes provisórios pode trazer problemas para a dentição permanente, como falhas no esmalte dental. Em caso de necessidade de retirar o dente de leite, o permanente pode nascer fora de posição ou torto, por exemplo.
Como cuidar dos dentes das crianças
Antes de ter os dentes: não é regra fazer a higienização da boca, mas a adoção dessa medida pode facilitar o costume com a manipulação bucal. Antes dos dentes nascerem, a odontopediatra recomenda o uso de uma gaze, por exemplo, cuidando da gengiva e da língua.
Depois que os dentes nascerem: a orientação da especialista é usar uma escova dental com cerdas bem macias e cabeça pequena para fazer a escovação com creme dental que tenha flúor na fórmula. É importante higienizar bem os cantos e utilizar também o fio dental. A higienização deve ser feita sempre que possível após a ingestão de alimentos.
Como estimular: a odontologista sugere que os pais tornem o momento da escovação divertido, com contação de histórias ou cantando alguma música. A recomendação é deixar que as crianças primeiro façam a escovação sozinhas e, depois, os pais completem a limpeza. Uma sugestão é aproveitar a hora do banho para a limpeza da boca, o que faz os pequenos associarem que este é um momento para a higienização do corpo inteiro.
Sem desistir: A especialista também lembra que o choro das crianças é algo natural e, portanto, essas situações não devem fazer os pais desistirem do processo. Outro aspecto é que a família toda deve estar comprometida com os cuidados para que a criança aprenda pelo exemplo.
Rotina diferente preocupa
Os especialistas manifestam preocupação com os acidentes domésticos, já que há um aumento de pacientes com dentes quebrados, queimaduras, fraturas e ingestão de remédios em doses não indicadas ou de outros objetos que existem nas casas.
— Sabe-se que a criança fechada 24 horas em casa ou apartamento, sem sair para extravasar sua energia e/ou sem poder interagir com outras crianças, exige mais cuidado e criatividade por parte dos cuidadores, que muitas vezes ficaram sendo os pais que estão em home office e necessitando despender tempo para o trabalho — comenta a médica Katia Oliveira, coordenadora Pronto Atendimento Pediátrico do Hospital da Unimed.
A médica evidencia ainda o prejuízo às crianças causado pelo aumento do tempo das crianças em frente às telas. O canal Gloob, da Globo, em parceria com os coletivos Tsuru e Quantas, fez um levantamento com crianças com idade entre 6 e 11 anos, e pais com filhos nessa faixa etária nas cinco regiões do país. Os dados mostram que 78% das crianças afirmam que jogam games todos os dias, enquanto na percepção dos pais sobre a rotina dos filhos é de que 76% passaram a ver mais televisão, 74% assistem mais a vídeos na internet e 73% acompanham por mais tempo a vida dos youtubers.
A pediatra recomenda ficar com olhos bem atentos às crianças, para evitar que ela entre em contato com materiais ou situações que possam causar acidentes. A organização não governamental Criança Segura lista alguns cuidados a serem tomados. Confira abaixo:
Como reduzir acidentes domésticos:
::: Mantenha a tampa da privada sempre fechada; se possível, lacrada com algum dispositivo de segurança. Ou deixe a porta do banheiro trancada;
::: Nunca deixe a criança na banheira sem supervisão; Antes do banho das crianças, teste a temperatura da água para evitar queimaduras;
::: Tranque o armário de medicamentos, vitaminas, antissépticos bucais e demais produtos que ofereçam perigo de intoxicação. Produtos de limpeza devem ser guardados em lugares altos ou trancados. Além disso, deve-se mantê-los em seus recipientes originais para não confundir as crianças.
::: Guarde utensílios afiados e aparelhos como lâminas de barbear, tesouras e secadores de cabelo fora do alcance delas.
::: Use as bocas de trás do fogão e certifique-se de que os cabos das panelas estejam virados para dentro para não serem alcançados pelas crianças;
::: Mantenha sacos plásticos, fósforos, isqueiros, álcool, objetos de vidro, cerâmica e facas fora do alcance;
::: Não use toalhas compridas na mesa de jantar. As crianças podem puxá-la para se apoiar e, se houver algo em cima dela, como líquidos e alimentos quentes, isso pode cair em cima dos pequenos.
::: Instale grades ou redes de proteção em janelas, sacadas e mezaninos;
::: Substitua fios elétricos desencapados e proteja tomadas com tampas, fita isolante ou mesmo móveis;
::: Cortinas ou persianas com cordas podem trazer o risco de estrangulamento, especialmente para os menores;
::: Cuidado com quinas afiadas. Prefira móveis com quinas arredondadas ou use protetor;
::: Mantenha os móveis longe de janelas e cortinas. Eles podem ser usados para escalar;
::: Se o quarto tiver beliche, as crianças menores de seis anos devem ficar na parte de baixo. Se não tiver escolha, instale grades nas laterais;
::: Ao escolher brinquedos, considere a idade e a habilidade da criança e busque sempre o selo do Inmetro. Evite brinquedos com pontas afiadas, como flechas, e os que produzem sons altos;
::: Não permita que as crianças brinquem nas garagens. Ao manobrar o carro, certifique-se de que não há nenhuma criança por perto;
::: Lembre-se de trancar o carro, especialmente o porta-malas, e manter as chaves e controles automáticos longe do alcance das crianças. Elas podem entrar no veículo, soltar o freio de mão ou mesmo ficar presas lá dentro.
::: Piscinas devem ser protegidas com cercas de no mínimo 1,5 metros, que não possam ser escaladas e portões com cadeados ou trava de segurança que dificultem o acesso dos pequenos;
::: Quando a criançada for usar a piscina, a supervisão de um adulto o tempo todo é essencial.
Saúde mental sob alerta
A saúde mental das crianças é outro ponto que demanda atenção. Com as restrições de interação social e mudanças na rotina, os especialistas perceberam aumento da ansiedade. A pesquisa da Gloob e dos coletivos Tsuru e Quantas mostra que 57% das crianças relataram preocupação e tristeza nesse período de reclusão. Outro dado é que 46% dos participantes reduziram a prática de esportes. Em contrapartida, os dados revelam que as brincadeiras, a leitura e o sono ganharam mais espaço na vida das crianças durante o confinamento.
— Com essa pandemia, acho que a gente pode levar em consideração que deu-se um tempo no corre-corre para reavaliar propostas de vida. Considero este o legado positivo mais importante que a pandemia nos trouxe junto com a verificação de menos adoecimento físico das crianças — comenta Karen, ao ressaltar que houve redução dos casos de síndrome respiratória.
Para a Karen, é importante que as famílias estejam atentas aos relacionamentos, com disposição para os cuidados, o diálogo e o aconchego.
Dormir bem e se alimentar melhor
A família ganhou um papel ainda mais importante na alimentação das crianças ao longo dos últimos meses. Com a ida às escolas, lanches e refeições eram oferecidos ou orientados pelas instituições. Agora, o desafio dos pais é garantir essa alimentação mais equilibrada em casa, diante de uma nova realidade.
— Nos primeiros meses, houve um troca de rotina significativa tanto para as crianças quanto para os pais. Então, até os pais acabaram deixando mais tempo a criança com o celular. Deixaram dormir tarde, então a criança acaba acordando muito tarde também. Essa questão de dormir tarde afeta bastante a questão do crescimento. Se acorda tarde, atrapalha também pela questão da rotina e gera mais ansiedade na questão alimentar. Tem mais vontade de beliscar durante o dia — conta a nutricionista materno infantil Amanda Belmont.
Mas, passado o primeiro impacto da pandemia, é o momento de retomar bons hábitos. Isso até porque as mudanças têm gerado problemas à saúde das crianças. Tanto Karen quanto Amanda relatam aumento de casos de sobrepeso ou obesidade entre os pequenos. Além disso, a nutricionista conta que exames têm apontado mais triglecérides, colesterol e glicose alta entre os pequenos.
Para buscar uma retomada na qualidade da alimentação dos pequenos, a primeira dica de Amanda é voltar a ter rotina para dormir, acordar e fazer as refeições. Deve-se oferecer menos alimentos industrializados, e mais comidas frescas e preparos feitos em casa. Alguns exemplos de boas opções: frutas, verduras, iogurtes naturais, bolos integrais. A nutricionista salienta ainda que é preciso evitar que as crianças evitem ficar muitas horas em frente a telas, porque elas favorecem a agitação e, consequentemente, reduzem a atenção no momento de comer.
Aliás, na hora da refeição, o foco tem que estar todo na comida, com atenção aos sabores, cheiros e texturas. A família deve priorizar fazer refeições junta. Para as crianças que estão mais seletivas, rejeitando algum alimento específico, a recomendação da especialista é que os pais tenham paciência e envolvam os filhos no preparo dos pratos, sob supervisão. Amanda sugere ainda que os pais evitem julgamentos das crianças e persistam na oferta, em diferentes períodos da vida e sob formas variadas.
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