Um grupo de mulheres promove um protesto em apoio à influenciadora digital Mariana Borges Ferreira, mais conhecida como Mariana Ferrer, na tarde deste domingo (8), em Caxias do Sul. A jovem denunciou o estupro cometido pelo empresário André de Camargo Aranha, mas o homem foi inocentado por falta de provas. A concentração está programada para as 16h na praça Dante Alighieri, no Centro. Às 17h, o movimento segue em caminhada rumo ao Fórum.
A professora Elisabete Biasin 48 anos, e a secretária da UTI pediátrica do Hospital Geral (HG), Michele Ribeiro do Santos, 42, vão participar do ato que agrega mulheres em busca de justiça no caso que ficou conhecido pelo uso do termo "estupro culposo", um artificio usado em reportagem do The Intercept Brasil, mas que não consta no processo sobre o crime.
A influenciadora diz ter sido estuprada pelo empresário em uma festa em Florianóplis (SC), em 2018. Contudo, na audiência judicial do caso, foi humilhada, intimidada e colocada na posição de vilã, quando, na verdade, é a vítima.
O caso provocou revolta por conta das imagens da audiência virtual divulgadas na imprensa. A jovem, que estava no escritório do advogado da família dela, sofreu ataques do advogado de Aranha, Cláudio Gastão da Rosa Filho. Na mesma sessão, estavam presentes o promotor de Justiça Thiago Carriço de Oliveira, um defensor público e o juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis.
A revolta também explodiu devido à absolvição do réu. Nas alegações finais, o promotor defendeu que Aranha não fosse condenado por entender que não havia como comprovar que ele teve dolo (intenção) de estuprar a influenciadora. Ainda foi citado que não havia provas de que Mariana estava dopada ou de que o empresário sabia disso.
Essa mistura provocou provocou manifestações em diversas segmentos da sociedade e gerou a campanha contra o chamado "estupro culposo", algo que as caxienses querem evidenciar neste domingo. O movimento em Caxias é em repúdio a todo ataque contra às mulheres.
- A culpa não é nossa. Chega de nos culpar e de por a culpa no nosso jeito, nas nossas roupas, no horário em que estamos na rua. Basta. A gente quer respeito - desabafa Michele.
Elisabete segue a mesma linha:
- O quanto uma vítima tem que se defender? Ela é uma vítima. Ela foi a acusadora. Uma menina de 23 anos que era virgem e um homem de 43 anos. Existem provas do rompimento do hímen. A verbalização do advogado de defesa do estuprador é simbólica, porque ela verbaliza os conceitos da sociedade: a roupa da mulher influencia no estupro, o comportamento da mulher provoca o estupro. Isso é muito sério. A ferida ficou aberta e a amostra. É o momento de dar uma reposta.
Uma mulher é estuprada a cada 11 minutos no Brasil
A discussão em torno do caso de Mariana Ferrer é mais do que necessária. De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, uma mulher é estuprada a cada 11 minutos no Brasil. Em média, são cerca de 900 mil casos ao ano. Em Caxias do Sul, de janeiro a outubro deste ano, 33 mulheres foram vítimas de estupro, uma média de um crime por semana. Os dados constam no levantamento da Secretaria de Segurança Pública do RS, mas é sabido que muitos crimes sexuais não são denunciados.
O caminho entre o crime sofrido e a procura por ajuda pode ser torturante, uma vez que nem todas as vítimas sentem respaldo para levar adiante denúncias seja por falta de apoio de familiares ou de órgãos que deveriam acolher, proteger e promover justiça. Esse tipo de situação ficou muito evidente nas cenas em que a influenciadora foi exposta. Mariana Ferer sofreu intimidações do advogado na presença de um promotor e de um juiz. Nas imagens divulgadas, não há intervenções incisivas do magistrado e do promotor em defesa de Mariana quando ela é humilhada pelo advogado. Ou seja, ela, na condição de vítima, acabou sendo alvo de ataques.
Fica a pergunta se situações assim ocorrem em Caxias do Sul. Na principal porta de entrada para denunciar estupradores, a regra é preservar a vítima de todas as formas. A titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam), Aline Martinelli, ressalta que há cuidado para não provocar ainda mais sofrimento em que já foi violentada no corpo e na alma:
- Ela será ouvida, preferencialmente por uma mulher, sozinha, ou seja não existe confronto com agressor ou advogado. Tentamos de todas as formas evitar a revitimização pois é um sofrimento muito grande.
Isso significa, que a vítima não é confrontada ou interrogada de maneira dolorosa que a faça relembrar os momentos em que foi agredida. A delegada ressalta ainda que a palavra da vítima é essencial para o esclarecimento do crime:
- Claro que levamos em conta todo o contexto probatório para indiciar alguém e as provas materiais como o laudo de lesões corporais e o do DML que são bem importantes. Mas há criminosos que não deixam vestígios e a palavra da vítima será essencial.
Especialistas analisam o caso
A professora do curso de Direito da UCS Gisele Mendes Pereira explica que a sentença alega que não foi possível verificar se realmente Mariana foi dopada e estava sob efeito de alguma droga psicotrópica. No entanto, ressalta que a perita deixou uma dúvida no ar ao afirmar que toda semana surgem novas drogas sintéticas e, se tivesse alguma droga nova, poderia não ter sido detectada no sangue da jovem. Portanto, o juiz poderia ter entendido dessa maneira, mas na dúvida ele decide a favor do réu e faz a absolvição.
Gisele ressalta ainda que não se utilizou nos autos, nem nas alegações finais do MP e nem na sentença, a expressão "estupro culposo". No entanto, o MP levantou a possibilidade de erro de tipo do réu. Isso significa que ele não sabia que a vítima estava embriagada a ponto de não conseguir dizer "não".
- Na lei brasileira, se há erro de tipo, há exclusão do dolo (intenção) e o crime é punido na modalidade culposa se houver previsão. O estupro só pode ser punido quando há dolo. Se o crime fosse homicídio, por exemplo, e houvesse erro de tipo, o homicídio seria punido no tipo culposo.
A advogada Mariana Bernardi explica que a culpa no sistema penal é caracterizada pela ausência de produzir o resultado danoso. Isso só vai ser conferido no andamento do processo penal:
- A culpa é aferida pela ausência de intenção e o dolo é diferente porque ele tem a intenção ou a pessoa assume o risco de produzir um resultado. Me parece que no caso da Mariana, se poderia falar em dolo eventual, de assumir o risco de produzir um resultado, sim, porque o réu estava em um ambiente de festa, e isso poderia ter sido discutido, o risco de produzir dano. Não consigo enxergar como o agressor poderia ser imprudente, imperito ou negligente em um estupro.
A audiência
Nas imagens da audiência, o advogado de defesa do réu, Cláudio Gastão da Rosa Filho, insulta Mariana Ferrer e mostra fotografias dela, as quais se refere como "ginecológicas". Mariana pede para ser respeitada: "Excelentíssimo, estou implorando por respeito, nem os acusados são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?".
A professora Gisele Mendes Pereira aponta que a vítima foi tratada sem um mínimo de dignidade. Para ela, o tratamento diferente demostra o machismo arraigado no poder judiciário:
- A Mariana que é a vítima, que é a mulher foi colocada naquela situação calamitosa, estarrecedora e surreal que todos nós assistimos. Isso demonstra o machismo daqueles que atuaram na audiência criminal da Mariana. Ela foi segundo eles, a responsável pelo ato praticado contra ela. Houve total inversão dos valores na medida em que ao acusado todo o respeito e a vítima toda a indignidade e humilhação. Percebe-se o machismo arraigado no poder judiciário, infelizmente, nesse caso da Mariana.
A advogada Mariana Bernardi concorda. Para ela a audiência foi um show de horrores, no qual a vítima parece estar completamente sozinha.
- Eu fiquei perplexa porque é como se ela tivesse fazendo a própria defesa. E está na condição de vítima, ela é a parte mais fragilizada no processos. Ela falando sozinha e respondendo quando advogado da outra parte, mostrava as fotos dela. Essas fotografias não tinham relação alguma com o fato. O advogado do réu parecia querer justificar o estupro mostrando as fotos dela e tentando desenhar uma conduta da vítima que teria sido imprópria. Ele considerou as fotos insinuantes e tentava justificar que "ok se ela fosse estuprada". Não sei se tem uma palavra adequada a não ser aberração.
CONDUTAS AVALIADAS
A conduta do magistrado é apurada em um procedimento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O Ministério Público de Santa Catarina, por sua vez, afirma que o promotor fez intervenções em defesa da influencionadora. A corregedoria do Conselho Nacional do MP abriu procedimento para avaliar o trabalho de Oliveira na audiência.
"Fica a marca para o resto da vida", conta vítima de estupro
O relato abaixo é de uma mulher caxiense que tem a identidade preservada e foi vítima de estupro aos 16 anos. Em vários trechos da conversa, ela precisou pausar e respirar fundo para prosseguir com a sua história:
"Eu trabalhava durante o dia e estudava à noite. Era uma noite bem fria, de inverno, lembro que era uma quarta-feira. Íamos a pé para casa, eu e meus colegas, mas naquele dia eles não foram para a aula. Eu pensei em ir de ônibus, mas parece que a gente não quer acreditar no sexto sentido. Eu não quis gastar (com transporte) e, quando estava a caminho de casa, veio dois caras. Eles me cercaram um de cada lado, e um deles estava armado. Um disse: vem comigo. Fui quietinha, com os cadernos. Eles me levaram até perto de uma casa abandonada e tinha um mato do lado. Eu me lembro que um deles falou para o outro que não queria participar e saiu. Ele me machucou bastante, foi muito horrível. Eu não conseguia gritar, pegar uma pedra, fiquei paralisada. Eu só chorava, só chorava, não conseguia nem falar. Ele apertava muito o pescoço e me machucou na parte das genitais. Ele me queimou quando me jogou algo, acho que solvente. Foi muito humilhante. Uma sensação que tu não desejava para o teu pior inimigo. Teve uma hora que ele apertou tanto o meu pescoço que eu pedi "Deus me leva de uma vez, acaba com isso". Foram horas, e eu fiquei muito machucada. Teve uma hora que teve um barulho e acho que ele pensou que fosse alguém e me mandou embora. No meu desespero, saí correndo, nua, pela rua, sem olhar para trás. Eu gritava desesperada. Parou um casal de carro. Eu estava toda suja de terra, mato, com o pescoço todo marcado e só chorava. A mulher desceu do carro, e me colocou um jaqueta . Eles me levaram para casa e para falar isso para os meus pais?
Ela segue:
"Até hoje, eu sofro. Depois que passou o choque, parecia que eu estava bem, mas eu não estava, abalou muito o meu psicológico. Eu não tive acompanhamento. Continuei trabalhando até que chegou uma hora em que não consegui seguir. Casei cedo e eu nunca quis ficar sozinha porque tinha medo que alguém entrasse na minha casa e me machucasse. Eu aguentei por anos relacionamentos abusivos. Fica a marca para o resto da vida. Eu não pude me defender, eu fiquei parada, eu me lembro que eu não gritei, não pedi ajuda, não conseguia me mexer, fiquei parada. Até hoje eu me peço o que aconteceu? Será que eu provoquei? Não, eu era um menina vindo da escola. Eu lembro da pergunta de uma vizinha: que roupa tu estava usando? Pelo amor de Deus, era inverno. Eu estava de calça, blusa, jaqueta, bota. Não significa não. Só quem passou por isso sabe como é. Eu tenho medo. A sensação, o medo e a dor estão aqui. Abala para o resto da vida. Eu me sentia suja, um lixo, porque eu não significava nada, a minha dor era o prazer dele. Tive sorte de sair viva. Me sinto envergonhada porque eu não conseguia gritar, parecia que não tinha voz, eu não sei se de repente eu tivesse gritado eu não teria passado por tanta coisa"
ELES OPINAM
" Sinto vergonha porque esses homens pensam na mulher como uma propriedade, e sem muita importância, que está por aí para procriar, para limpar, para cuidar dos filhos. E se ela não seguir esse padrão submisso, se sair de casa para uma festa para se divertir, por exemplo, ela que está violando as regras. É muito vergonhoso e ridículo esse pensamento masculino que justifica os abusos que a mulher sofre desde criança e que constantemente chega à forma mais violenta que é o estupro, e que, na maioria das vezes, por medo da vítima de sofrer mais violência, como no caso da Mari Ferrer no tribunal de SC, não é denunciado. Tive dificuldade de responder por ser uma desconstrução do machismo tão vivo em mim ainda"
Clodoaldo Lima Macedo, 49 anos, técnico de manutenção
"Eu sinto vergonha de ser homem em momentos como esse, é uma situação constrangedora tu pensar que um homem é capaz de ferir assim um mulher. Ao longo dos anos, eu aprendi muito, principalmente, com as mulheres da minha família, sobre respeito, sobre cuidado, e como deixar de ser machista, porque havia sim traços de machismo em mim"
Bruno Campos, 29 anos, técnico de informática
"A mulher tem o direito de se vestir conforme se sentir confortável, não é porque ela está com uma roupa sensual que o homem tem o direito de usar palavras fúteis ou tocar nela, sem que ela permita. Sinto vergonha do comportamento de muitos homens. Existe o bom senso e educação, e estupro é crime, não cultura"
Roberto Carlos Azevedo, 43 anos, estudante de Medicina Veterinária
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