Ressignificar a dor. Tentar transformar a imensidão da perda de um ente querido em solidariedade. Pensando em agradecer pela chance de fazer o bem ao próximo, duas amigas caxienses lançam o projeto Gratidão. A iniciativa é focada inicialmente em ajudar os idosos que vivem em uma casa asilar no bairro Bela Vista, em Caxias do Sul. A ajuda não será apenas financeira, mas voltada a ações que façam com que os 38 moradores tenham contato com o mundo e se sintam acolhidos e amados, principalmente os que não tem família. A ideia surgiu com a proximidade do Dia dos Pais deste ano, o primeiro em que a advogada Bárbara Gubert teria que encarar sem o pai, o também advogado Norberto Gubert, que morreu em 26 de agosto de 2019, aos 67 anos.
- Foi o dia mais temido de toda a minha vida: o dia dos pais sem meu pai. Eu tento não falar muito nesse assunto, sobretudo em respeito àqueles que seguem nessa vida comigo e que também sofrem suas dores - desabafa ela.
Naquela data, Bárbara foi até o asilo com tortas e refrigerantes para levar amor e atenção a quem vive, muitas vezes, longe do carinho dos familiares. A pandemia não permitiu abraços, mas ela saiu de lá com uma missão:
- Resolvi homenagear ele de uma forma singela e anônima e tive a sensação de que a força que herdei dele exigia que eu fizesse disso algo maior e mais frequente, em honra ao homem forte que ele era, e continua sendo em mim. Foi como surgiu o projeto.
Bárbara conta com o apoio da amiga, a empresária Merielen Felippi Brehm, 35. As duas dividem dores semelhantes: a empresária perdeu a mãe, a também empresária Ivanete Teresinha Tonet Felippi, aos 53 anos. Ela era conhecida pela luta contra o câncer, em Caxias do Sul. Iva, como era apelidada, morreu em 13 de março de 2017, depois de lutar contra a doença por mais de 10 anos.
- A mãe me ensinou que a gente não pode desistir. Mais forte do que ela eu nunca vi igual. Ela me ensinou sobre força. Com certeza sou forte por causa dela - afirma Merielen.
Norberto Gubert também é pai do músico Rafa Gubert, 45, e dividia com o filho o amor pelo Esporte Clube Juventude:
- Juventude, sempre e somente! - dizia o advogado, com um brilho no olhar.
O amor pelo clube era tanto que, para expressar esse orgulho, tatuou o símbolo do Juventude no braço, e fazia questão de "exibir" a tatuagem aos amigos. Inteligente, sagaz e com um humor ácido, Gubert teve uma trajetória de sucesso como criminalista. E também atuação marcante nos bastidores da política e no rádio caxiense. Foi um dos comentaristas da Rádio Caxias e, nos microfones, abordava temas do dia a dia. Ele também deixou a marca na vida de todos que puderam conviver com ele, e que lembram bem do jeito extrovertido e gentil do advogado.
GRATIDÃO
- A escolha do nome é porque Gratidão é o amor que a sociedade direciona àquele que nada mais tem a dar em troca - diz Bárbara Gubert.
Merielen Felippi Brehm complementa:
- Gratidão é o que podemos demonstrar para eles, por tudo que durante a juventude fizeram ou tentaram fazer, pela contribuição que deixaram na vida e no coração de muita gente. Vamos tentar levar um pouco de conforto material, espiritual e sentimental, para que seus dias na Terra sejam mais tranquilos e que se cumpra a promessa de Deus feita a Isaias.
Ela se refere ao lema do projeto:
"Mesmo na sua velhice, quando tiverem cabelos brancos, sou eu aquele que os sustentará. Eu os fiz e eu os levarei; eu os sustentarei e eu os salvarei." Isaías 46:4
Para arrecadar recursos, elas criaram um cardápio específico para a venda de lanches na hamburgueria da família de Merielen. Os xis que estão nessa lista serão vendidos e terão todo o valor revertido ao Gratidão. O projeto faz parte da iniciativa Amor em Movimento, ligada à igreja evangélica, onde as duas se conheceram. E elas garantem que é essa fé que ajuda a segurar a barra da dor de perder um pai ou uma mãe.
- Faz parte da Igreja, mas a iniciativa está aberta a todos. O Rafa, meu irmão, irá nos ajudar a divulgar o projeto em honra do nosso pai. Toda ajuda é bem vinda para que possamos tocar o coração de mais pessoas - pede Bárbara.
A advogada conta que a amiga ajudou como ninguém, por saber exatamente como ela estava se sentindo e do que precisava:
- Eu acho bonito quando as pessoas dizem que "Deus não deu irmãs, mas a vida deu. Eu tenho meu irmão e, nesse caso, Deus me deu uma irmã também, porque é um Deus de milagres e tudo pode.
Merielen também vê na amiga uma irmã:
- Quando nos conhecemos não nos identificamos na hora. Acho que justamente por sermos muito parecidas. Mas, depois, nos tornamos praticamente irmãs - emociona-se
Ela acrescenta que o Gratidão quer levar conforto aos moradores do asilo:
- O projeto pensa no bem estar dos idosos, naqueles que na maioria das vezes são esquecidos justamente por não "contribuírem" mais, por não terem mais serventia na vida cotidiana tanto da sociedade como na dos familiares.
Para Elaine Aguiar, 48, gerente há 13 anos na casa asilar, a doação de tempo e amor é essencial aos idosos, principalmente, em meio à pandemia:
- Contamos muito com a presença de Deus, ainda mais nesse momento: um agrado, um sorriso, uma ligação faz toda a diferença para eles.
Ela ressalta que a equipe se esforça para que os residentes não fiquem tristes:
- Nos dedicamos para que eles tenham vontade de acordar e não tenham simplesmente a impressão que é só mais um dia. Neste ano, tivemos o prazer de conhecer nossa amada Bárbara, que veio mudar nossa rotina no Dia dos Pais. Eles se alegraram e se divertiram.
Elaine finaliza:
- Estamos nos programando para esses passeios fora da clínica assim que tudo isso passar. Nós acreditamos em dias melhores.
"Sempre tive uma certa expectativa com a velhice do pai", diz a advogada
Bárbara lembra com carinho da relação de cumplicidade com o pai:
- Meu pai sempre foi meu melhor amigo. Herdei dele gostos peculiares, espírito aventureiro e de solidariedade, além de um senso de humor ácido. Meus melhores momentos com o pai sempre foram aqueles que ninguém mais tinha paciência para estar presente, como nas longas viagens para Jaquirana (onde ele tinha uma chácara) e até mesmo nas festas do asilo em que a minha tia residia em Porto Alegre.
Ela conta que, mesmo depois de adulta, levava em conta o que ele pensaria, e que em 2016 começou a frequentar uma igreja evangélica, e lá aprendeu que pai não é amigo, pai é pai.
- Fui explicando aquilo que aprendia, e juntos fomos acertando nossa relação para que eu pudesse me relacionar também melhor com Deus. Nós ríamos, aprendíamos, conversávamos e, acima de tudo, respeitávamos o processo que eu estava vivendo. Eu frequentava a igreja, mas não havia me batizado com medo da reação da minha família - lembra ela.
Em 2017, Gubert começou a incentivar que a filha se batizasse. Ela disse a ele que pretendia se batizar no Rio Jordão e estava economizando para viajar até Israel:
- Com extrema surpresa, recebi a "ordem" de comprar as passagens, pois ele me pagaria a realização desse sonho, que eu sequer sabia que tinha, e acabou sendo uma realização nossa.
A fé uniu ainda mais pai e filha.
- Cada coisa que eu aprendia na igreja repassava para o pai. Eu me corrigia, corrigia a ele e estreitávamos a nossa relação e aparávamos arestas. Deus foi o centro da nossa relação nos últimos anos. Se não fosse Deus eu não teria suportado a perda do pai. Claro que eu gostaria que o pai tivesse vivido mais 40 anos ao meu lado, mas ele partiu deixando em mim só amor, saudade e gratidão - emociona-se.
Agora, ela encara com entusiasmo a missão de cuidar de outras pessoas como teria cuidado dele:
- Hoje, posso ter certeza que era isso que ele esperava de mim: que eu canalizasse esse amor para quem não o teve, e não o desperdiçasse em lágrimas. Eu sempre tive uma certa expectativa com a velhice do pai, imaginava que eu poderia cuidar daquele homem que pra mim era o mais forte do mundo. Já que assim não foi, em gratidão a Deus que me guiou para guardar as melhores lembranças dele, vou me deixar ser guiada por ele.
"Em um sonho com a mãe, ela me mostrou onde ir", conta a empresária
A relação entre Merielen Felippi e a mãe nem sempre foi tranquila. Ao contrário, segundo a empresária, era um relacionamento conturbado:
- Descobri depois que ela morreu que tínhamos muitos conflitos justamente por sermos muito parecidas. Em 2007 ela foi diagnosticada com câncer e lutou muito. Durante esse tempo, foi muito bem cuidada, principalmente pelo meu pai - lembra ela.
A empresária viu a mãe conviver com a dor, sem deixar de sorrir e ter garra pela vida:
- Ela estava lá, quase sempre alegre, rindo, falando besteira. Viu meus dois filhos nascerem e conseguiu acompanhar eles um pouco. Eles se lembram dela, o que me deixa muito feliz.
Como foram anos de luta contra a doença, Merielen acreditava estar preparada para lidar com a partida da mãe.
- Eu não estava pronta. Tanto que, cinco meses depois de perder minha mãe, entrei em depressão. Em um sonho que tive com ela, ela me instruiu a ir a um lugar específico no dia seguinte: era uma igreja evangélica. Lá, me encontrei com Deus e, alguns meses depois, conheci a Bárbara.
A amizade e a fé uniu as amigas, que hoje dividem essa missão: levar amor a quem mais precisa.
COMO AJUDAR
A partir deste sábado (29) estarão à venda os vales da primeira ação. Eles são válidos de 22 a 27 de setembro. Todo o valor arrecadado será repassado aos idosos. Informações com Bárbara, no telefone (54) 98111.3246.
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