Reconstruir a imagem de uma escola que já foi uma das principais referências na educação pública do Rio Grande do Sul e que anda arranhada muito mais pela má fama criada nos últimos tempos do que propriamente pelas paredes mal pintadas ou grades enferrujadas. Isso é o que ainda faz brilhar os olhos de integrantes da direção, professores, alunos, ex-alunos e membros do Círculo de Pais e Mestres (CPM) do Instituto Estadual de Educação Cristóvão de Mendoza. A recuperação do orgulho, mesmo que ainda a passos de formiga, se transformou em meta de vida para quem vive o dia a dia da escola.
— Machuca demais ouvir certas coisas porque sabemos que não é assim. Queremos mudar a história, trazer de volta as famílias para cá. E estamos tentando. Saímos de casa com o não e passamos o dia a dia em busca do sim.
Márcio Jardim cansou de garantir a interlocutores que o Cristóvão não é nada daquilo que aparenta ser para quem o vê de fora. Ele estudou até o sétimo ano na escola e se envolveu tanto com a causa que passou a integrar o atuante CPM atual. Ao lado da diretoria e com apoio total e irrestrito dos cerca de mil alunos, um grande mutirão se formou para dar início a uma verdadeira transformação na forma como o colégio é visto.
São pessoas como o vice-presidente do CPM e integrante do Conselho Escolar, Álvaro Ricardo Kervald, 55 anos, que costuma suar a camisa em busca de parcerias para solucionar problemas pontuais, que mantêm acesa a chama da tradicional instituição de ensino, que abriga estudantes de inúmeros bairros do município.
— Ano passado, fizemos um jantar no Medianeira e conseguimos arrecadar R$ 8 mil. Em 2017, não tínhamos um real sequer e conseguimos lotar o ginásio em um almoço. Em abril vamos ter uma festa retrô. Foi por meio de parcerias que encontramos uma gráfica de um ex-aluno nosso que fez as agendas para a gente por dois anos cobrando preço de custo. Converso quase toda a semana com o governo do Estado cobrando as reformas para o prédio. Esse tem que ser o nosso papel — salienta.
Álvaro tem uma história de amor com o Cristóvão. Literalmente. Foi durante uma gincana na escola, em 1985, que conheceu a mulher, Naura. Ali nasceu um namoro de seis meses, que se tornou um sólido casamento de 35 anos. Da união, nasceram Mônica, 16, que está desde as séries iniciais no Cristóvão e hoje está no segundo ano do magistério, e Gabriel, 27, que também passou pela escola. E, se depender de Álvaro, o neto Pietro, cinco, seguirá o mesmo caminho. Será a terceira geração da família a frequentar os bancos escolares do Cristóvão.
São pessoas como a atual diretora Roseli Bergoza, vista às vésperas do início do ano letivo esfregando o chão e correndo de um lado para o outro para recepcionar os estudantes da melhor maneira possível:
— É triste por sabermos que tudo isso é atribuição do Estado. Mas não vou ficar parada esperando por recursos que nunca chegam. Temos que fazer. São os alunos que constroem o nome da escola. Vai levar muito tempo para voltar a ser o que era, mas vamos tentar.
O que dá ânimo para o grupo seguir de cabeça erguida na missão são justamente essas pequenas mudanças que estão sendo feitas. E que surtiram efeito imediato.
— Desde que entramos, percebemos essas mudanças em relação ao que era há dois anos. O nosso Conselho é ativo, sabe exatamente o que entra e o que sai de dinheiro. Tu não tens ideia da felicidade que fiquei hoje (terça-feira, dia 18, dia de recomeço das aulas) quando vi pais entrando aqui com o sorriso de orelha a orelha. Sinal que estamos fazendo a coisa certa — diz Jardim. — Até nós ficamos surpresos com o engajamento da população — conclui.
Outra pecha que persegue o Cristóvão ao longo dos anos envolve a insegurança. Não são poucas as pessoas que relatam medo de estudar na instituição por terem ouvido falar que "só têm marginais no Cristóvão". Esse episódio voltou à tona recentemente, quando a Secretaria Municipal de Educação definiu a transferência de 600 estudantes da Arnaldo Ballvê, do bairro Santa Lúcia, para um dos blocos da escola do Cinquentenário. A primeira reação dos pais da Ballvê foi de indignação.
— Essa ideia de marginalizar o Cristóvão caiu por terra. Temos problemas, claro. Mas quando os pais vieram aqui conhecer, viram uma realidade diferente e se surpreenderam. Eu fui estudante do Cristóvão e não acho que sou marginal. A diretora do Ballvê estudou aqui. Foram criados rótulos. Em todas as escolas existem estudantes problemáticos. Por isso, foi importante essas pessoas terem vindo aqui para desconstruir essa ideia — conta a diretora Roseli.
Às vésperas de completar 90 anos, em junho, o Cristóvão de Mendoza possui, sim, inúmeros problemas distribuídos pelos velhos e surrados corredores do imponente prédio de 8.314 metros quadrados — ainda o maior colégio em área construída do Estado. No entanto, conta com pessoas como Márcio, Roseli, Álvaro e tantas outras para virar a chave. E seguir sonhando em voltar a ser referência.
Esperança por obras emergenciais
O Cristóvão de Mendoza segue esperançoso de que as obras estruturais prometidas pelo Estado possam, enfim, sair do papel ainda em 2020. O orçamento para uma reforma completa do prédio, incluindo algumas melhorias, custaria em torno de R$ 30 milhões. O valor, conforme o vice-presidente do CPM, Álvaro Kervald, pode ser reduzido pela metade com a exclusão de "artigos de luxo", que incluem uma piscina térmica e um segundo ginásio, previstos no projeto original. Desde julho do ano passado, o Ministério Público (MP) tenta cobrar a execução de um plano de recuperação na Justiça. Mas, apesar de uma liminar favorável, o Estado recorreu e o processo ainda não tem data para ser concluído.
— Essa promessa (de reformas) estamos ouvindo há muito tempo. Sempre é para começar, mas não acontece nada.
O desinterdição do auditório da escola, o maior da cidade, com 1.007 cadeiras de madeira, é visto como prioridade. Kervald esteve na reunião-almoço da Câmara de Indústria, Comércio e Serviços (CIC), no último dia 5, onde abordou o assunto com o governador Eduardo Leite, cobrando a ajuda do Estado:
— As reformas têm que começar pelo auditório. O secretário da Casa Civil (Otomar Vivian) prometeu agendar uma audiência comigo até março. Se não acontecer, vou continuar cobrando.
O auditório do Cristóvão sofreu a interdição em julho de 2013 por problemas nas saídas de emergência, na fiação elétrica e com o carpete que cobre as paredes, além da falta de sinalização.
— Lembro que na época era só resolver um problema elétrico para a liberação. Daí veio a tragédia da Boate Kiss e várias outras exigências começaram a ser feitas. E estamos até hoje sem uma definição — lamenta Kervald.
A diretora Roseli Bergoza concorda que, além de reformas pontuais no prédio da escola, o auditório pode ser a salvação da lavoura:
— Se conseguirmos desinterditá-lo já teríamos um gerador de recursos, que seria bem importante para a gente.
Grêmio Estudantil trabalha pela desmistificação
O mito criado sobre o Cristóvão ser uma escola insegura incomoda os alunos. Tanto que o Grêmio Estudantil, formado por 17 alunos, vem fazendo um trabalho mais intensivo nas redes sociais para tentar acabar de vez com os rótulos que perseguem a instituição.
— Eu aprendi a amar a escola. O acolhimento das pessoas foi muito bom. Divulgamos as coisas justamente para mostrar que não é nada disso que imaginam. Cansamos de ouvir que aqui só têm marginais, principalmente à noite, que a escola vai cair, que não suporta tantos alunos... — relata Mônica Letícia Kervald, 16 anos, filha de Álvaro.
Os colegas de Mônica compartilham da mesma opinião.
— Como qualquer escola grande e antiga são necessárias reformas. Quando um aluno novo chega, se perde um pouco no início pelo que ouve antes de entrar. Mas, depois, tudo muda. É impossível não gostar de estar aqui, de fazer parte. Por isso a nossa luta, porque amamos o nosso instituto, e a gente quer que ele volte a ser referência, bem falado — diz o presidente do Grêmio Estudantil Anderson Borges Velho, 19.
— Essa fama só continua para quem vê de fora. Não tem como sair falando mal da escola — concorda Maria Eduarda Paim Bichoff, 17.
Daniela Martins, 18, comenta que mudou totalmente de opinião após colocar os pés no novo colégio:
— Já cheguei aqui com essa fama do Cristóvão na cabeça, inclusive vinda de professores da outra escola em que estava. São muitos comentários negativos e nos assustam. Mas quando a gente está aqui percebe-se o contrário.
Quem está de saída do Cristóvão também ameniza o problema da insegurança. Matheus Freitas Antunes, 17, esteve ontem no colégio para buscar o histórico escolar após finalizar o Ensino Médio. Ele pretende cursar engenharia elétrica em uma universidade pública. Dos quatro anos em que estudou no Cristóvão, onde participou da banda marcial, do time de futebol e do Grêmio Estudantil, não tem queixas.
— Sem palavras. Entrei no nono ano e aprendi que o que faz a escola é o aluno. Vou ficar com saudades.
Problemas solucionados com a Arnaldo Ballvê
Os 600 alunos da Escola Municipal Arnaldo Ballvê, que está em reformas — com previsão de término em quatro meses —, iniciarão o ano no bloco A do Cristóvão de Mendoza, dia 24. Em princípio, eles terão pouco contato com os demais estudantes da escola. A questão do transporte, que segundo Morgana Rizzo, uma das coordenadoras do grupo de pais da Ballvê, era o que mais preocupava, foi resolvido com a Secretaria Municipal de Educação.
— Já temos todo o deslocamento das crianças, horários, datas e informamos a maioria dos pais que estão nos grupos. O grande temor inicial era essa questão de transporte. Mas está tudo organizado, identificação do transporte, quem vai receber as crianças no Cristóvão e outras coisas — diz Morgana.
O transporte para os estudantes do turno da manhã sairá às 7h, do ginásio da Arnaldo Ballvê. À tarde, a saída ocorrerá às 13h. Ontem, pequenos ajustes ainda estavam sendo feitos no bloco que receberá os visitantes da escola municipal, como limpeza das salas de aula e piso. O temor com a segurança também virou página virada, com a visita de alguns pais ao Cristóvão.
— Estamos muito agradecidos para disponibilidade e preocupação da Flávia (Vergani, secretária de Educação) e direção do Cristóvão de Mendoza. Eles estarão de mãos dadas com a gente e nós estaremos de mãos dadas com eles.
Uma escola de muitas personalidades
O Cristóvão de Mendoza que já foi referência em educação pública abrigou personalidades reconhecidas no Estado, no Brasil e no mundo. O técnico da Seleção Brasileira, Adenor Bachi, o Tite, foi um dos que passou pela instituição nos anos 1970 e relembra com carinho o período em que esteve nas salas de aula do colégio.
— O estudo qualificado, à noite, foram muito importantes na minha formação e educação. Espero que hoje o Cristóvão de Mendoza possa ser revitalizado em sua estrutura para poder cumprir seu papel social a outras pessoas que, assim como eu, possam ter um estudo digno e qualificado. Claro que sempre ressaltando a valorização humana e profissional dos seus professores. Uma sociedade melhor, mais justa e evoluída, tem como prioridade a educação — destacou Tite.
Ex-governador do Estado, Germano Rigotto também foi aluno da escola no final da década de 1960. Inclusive, fez parte da direção do Grêmio Estudantil, com o ex-deputado veranense Cézar Busatto, morto em 2018. Assim como Tite, ele relembra a qualidade do ensino da escola na época.
— O Cristóvão, assim como o Julinho (Colégio Júlio de Castilhos, em Porto Alegre) sempre foram consideradas como escolas-modelo no ensino público pela qualidade no ensino. Hoje, ambos estão mais ou menos na mesma situação. Houve, principalmente, perda na qualidade e isso é ruim para quem já foi referência, por toda a história que envolve a escola. Eu sei que existe um projeto para recuperação do Cristóvão, que envolveria um financiamento, mas não sei precisar o que está faltando para dar andamento. Eu torço pela retomada do Cristóvão — frisa.
Entre outras inúmeras personalidades da cidade que tiveram no Cristóvão parte ou toda a formação estão o atual bispo-auxiliar de Porto Alegre, Dom Leomar Brustolin, o ex-prefeito de Caxias, Mansueto de Castro Serafini Filho, e o atual secretário da Cultura, Paulo Périco. O técnico pentacampeão mundial com a Seleção Brasileira, Luiz Felipe Scolari e a ex-primeira dama do Estado, Maria Helena Sartori, foram professores na instituição.