Zumbilândia, morro do sabão, subida da Borges, rua do Mato Sartori ou simplesmente o Mato. As variadas denominações da afamada área entre os bairros Primeiro de Maio, Centro e Madureira, frequentada dia e noite por dezenas de usuários de crack, escancaram uma mistura explosiva. Surpreendentemente, pouco se faz para mudar.
A cracolândia no começo da Rua Borges de Medeiros, ao lado do Parque Mato Sartori, persiste há cerca de 10 anos e passou a atrair muito mais pessoas nos últimos meses. Virou um estorvo para a vizinhança e uma opção estratégica para dependentes químicos. Protegidos pelo paredão verde do Mato Sartori e pelos os becos do Primeiro de Maio, eles estão a poucos passos de pontos de tráfico.
De segunda (16) a terça-feira (17), a reportagem levanta um debate sobre esse problema que vem sendo ignorado. As lideranças de bairro e o Executivo caxiense sequer discutem o tema. Estabelecer uma ponte para estimular a reação comunitária e o interesse da prefeitura deveria ser uma prioridade. No caso, se o governo municipal e moradores demonstrarem vontade de lidar em conjunto com a situação, a experiência poderia ser levada para outras comunidades que sofrem com as chamadas cenas de uso aberto de drogas.
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Num primeiro olhar, a cena remete ao que ocorre em outros bairros, onde áreas desabitadas, escondidas entre becos ou marcadas pela falta de equipamentos públicos viram atrativo para a venda e o consumo de drogas. A diferença em relação a outros locais é que a subida da Borges e as calçadas das duas vias próximas está na grande junção de pessoas de várias partes de Caxias e até mesmo de outros municípios. Segundo a Brigada Militar (BM), é a maior concentração de usuários de crack ao ar livre na cidade. Do alto do morro, homens e mulheres vivem os dramas da dependência química e de álcool, mas estão isolados devido ao vício e à indiferença social.
Os moradores do entorno são afetados porque a cena de uso aberto de drogas traz consigo mortes, badernas, assaltos, furtos, sujeira e a impossibilidade de se transitar tranquilamente pelas calçadas e ruas. O histórico dos pontos de tráfico no entorno indica que a violência é grande — foram 18 assassinatos desde 2017 nas proximidades.
Desprezo
Parte dos moradores não questiona a presença de pessoas nas ruas, mas outra parte tem uma visão mais higienista da situação, sugerindo que homens e mulheres deveriam ser removidos.
— Não adianta tirar essas pessoas daqui e levar para outro lugar. Temos é que tentar resolver — critica a presidente da Amob do Madureira, Rosemari Rotta.
Os usuários de drogas se sentem desprezados e afirmam que estão no direito de permanecer na rua, pois nem todos são violentos ou criminosos como se supõe. A prefeitura, por sua vez, não dá sinais claros de como pretende evitar a consolidação do ponto antes que se torne uma cracolândia enraizada a exemplo dos grandes centros urbanos no país. Com exceção das visitas ocasionais de assistentes sociais e das equipes de Saúde, a presença do poder público é tímida. Paralelamente, a polícia está há mais de 20 anos fazendo apreensões e prisões na região, o que é insuficiente para acabar com a circulação de drogas nessa parte da cidade.
A formação desse cenário é favorecida pelos muros cinzentos do Parque Mato Sartori, quem tem recuos da construção sendo usados como camuflagem — o lixo espalhado e o concreto chamuscado são sinais da ocupação. Além disso, a subida íngreme e a falta de segurança desmotiva a mobilidade de pedestres. Uma área verde no lado oposto do parque serve como uma espécie de cortina natural para o tráfico e seus desdobramentos. O próprio parque tem uma estrutura que desfavorece o sentimento de pertencimento por parte da população. O acesso é somente via agendamento em alguns dias da semana e para grupos de 15 pessoas, no mínimo.
— Antes, quando o mato não tinha muro, ficavam lá dentro consumindo. Depois que fecharam o parque, passaram a a ficar no lado de fora — conta a presidente da Amob do Primeiro de Maio, Ilves Maria Teixeira.
Segregação
A cracolândia da Borges está enraizada no limite entre três comunidades diferentes, no caso, Centro, Madureira e Primeiro de Maio. É como se não houvesse dono, o que reforça o aspecto de abandono.
A região sente o peso da disputa milionária em torno da ocupação do terreno dos Magnabosco, onde hoje é o Primeiro de Maio. Como a comunidade se autoproduziu por meio de uma ocupação irregular, persistem os becos e as ruas estreitas, a arquitetura preferida de traficantes. Por ter executado obras na comunidade no passado, a prefeitura foi condenada solidariamente a pagar uma indenização aos herdeiros da família, valor estimado em R$ 680 milhões atualmente. Por isso, há vários anos, o município deixou de dar atenção à comunidade em razão da sentença judicial. Nada indica que o Executivo vá mudar de ideia tão cedo. Na prática, para tentar reverter os erros que levaram à condenação, se vira as costas para uma chaga que também custa caro. O Primeiro de Maio sequer é reconhecido como bairro. Essa segregação parece ainda mais benéfica para o crime, mantém problemas sociais e atrai clientela variada.
— Tem gente que vem de carrão, filhinho de papai, trabalhador, gente engravatada para buscar droga — conta um morador que vê o movimento da janela de casa.
Os mais pobres e que romperam vínculos familiares são os que permanecem dias a fio pelas calçadas com seus cobertores e colchões. Geralmente, o ponto alto do encontro é do final do dia ao meio da noite, quando de 30 a 40 pessoas se aconchegam nas calçadas da Borges, da Antonios Nakhoul El Andari e da Heitor Curra para acender incessantemente seus cachimbos. O vaivém de viciados, porém, é muito maior e incerto. Os muros do Mato Sartori, na Antonios, viram dormitório com direito à barraca improvisadas. Outros se espalham pelas calçadas e marquises das proximidades. Não há sossego, sobra reclamação e temor. Quem aponta os transtornos não quer se identificar por temer represálias, pois os casos envolvem o interesse de grupos criminosos que lucram com a venda de drogas.
— Se aqui, que é no Centro e há mais visibilidade está assim e ninguém faz nada, o que podemos esperar do resto da cidade? — questiona uma testemunha.
(Colaborou Jeferson Ageitos)
"Não dá para aceitar o derrotismo"
Da porta de casa, uma antiga moradora do Madureira viu a evolução da cena de uso de drogas na Borges de Medeiros, Heitor Curra e Antonios Nakhoul El Andari. Para ela, a visão de homens e mulheres nas ruas é mais assustadora para quem desconhece a realidade das cracolândias. Ela ressalta que jamais foi perturbada pelos dependentes químicos.
— Sim, eles tocam a campainha de casa, pedem água, às vezes comida. Mas nunca incomodaram, nem a mim e nem a minha funcionária. É uma coisa muito complexa. O meu jeito de lidar foi sempre o mais civilizado possível. É um convívio pacífico porque não tem alternativa, mas minhas visitas ficam impressionadas — conta a mulher.
Ela lembra que o consumo em via pública começou no início da década, período que coincide com o cercamento e inauguração do Parque Mato Sartori. A movimentação cresceu recentemente de uma forma assustadora. Alguns inconvenientes são a sujeira na rua e a sensação de insegurança. O gerente operacional da Codeca, Ricardo Becker, confirma que há grande volume de lixo pelas ruas.
— Temos com certa frequência feito a limpeza, mas quando os moradores não estão ali. Se não houver ninguém, se faz o recolhimento de garrafas, colchões, cobertores, alimentos achados no lixo e até mesmo fezes. Algumas vezes, os funcionários da Codeca foram corridos dali, pois muitos acham que vão acionar a polícia. Só estamos querendo fazer nosso trabalho — relata Becker, ressaltando que os varredoressão orientados a acionar a Fundação de Assistência Social (FAS) para encaminhar os dependentes químicos.
A moradora que convive com os grupos na frente de casa teme a insegurança.
— Eles (usuários de drogas) são educados, mas não vou passear na frente de casa, não sou otária, pode ter alguém ali que não é bem intencionado. É desagradável sair na rua, porque tu tem de pedir licença. É muita gente pedindo dinheiro, não fico à vontade — descreve.
A mulher lamenta o aspecto de degradação. Para ela, permanecer horas seguidas sob o sol ou chuva é desumano.
— Não tem água ou banheiro por perto. Ficam na chuva. Com escassez de dinheiro, serviços públicos vão reduzindo. Tem famílias que vêm atrás deles, mas não resolve. Por outro lado, não adianta esconder os craqueiros. Instituições têm chances de reverter isso. Só não dá para aceitar que não tem solução porque é derrotismo — pondera a moradora.
"Lá pra baixo não podemos ficar"
Há dois anos, uma moradora de Taquara diz ter escolhido as calçadas da Borges de Medeiros e de ruas próximas como parada para consumir crack e se relacionar com outros dependentes químicos. Ela migrou para Caxias do Sul por causa do vício que já dura mais de cinco anos. A mulher de 31 anos diz que a escolha da Borges é estratégica.
— Lá para baixo (no Centro) não podemos ficar, porque tem que gente que desce e vai furtar. A Brigada só quer que a gente não incomode. A gente deixa sempre limpo para não incomodar a vizinhança.
Ela admite que os frequentadores da Borges não são bem vistos e muitos se tornaram "invisíveis" para o restante da cidade, mas garante que há pessoas que se mantêm afastadas de confusões. Mas nem sempre é possível manter essa postura quando o vício fala mais alto e o autocontrole vira fumaça. Nos últimos anos, dois homens morreram em assaltos cometidos na área por pessoas supostamente usuárias de drogas. A BM diz que alguns aproveitam para cometer crimes contra pedestres, algo que os frequentadores da Borges reconhecem ser verdade.
— Tem briga sim, alguns brigam. Tem assalto até entre nós. Me levaram R$ 150 outro dia, dinheiro que tinha ganho do meu irmão. Não dá para dar mole — relata uma dependente química.
A Secretaria da Saúde mantém atendimento no local como parte da ações para reduzir os danos físicos de quem é dependente químico. Não é um tratamento contra as drogas, mas prevenção para outros problemas. No caso, o entendimento é de seria muito pior um usuário portador de doenças sexualmente transmissíveis, por exemplo, manter relações sem proteção ou orientação médica. O chamado Consultório de Rua fornece exames, curativos e tenta estabelecer uma conversa com esse público. O coordenador do serviço, Daniel Araújo, diz que a prefeitura não pode tirar ninguém da rua.
— A nossa função é cuidado em saúde. O "sair da rua" pode ser uma consequência disso. Esses encontros terapêuticos que a gente fala, pode ser que algumas pessoas definam que a rua não é o melhor pra elas e outras podem não querer. A função do Consultório de Rua é levar saúde para as pessoas. Quando a gente fala de saúde, é saúde mental, é poder propor quais são os cuidados que é possível se fazer, respeitando as necessidades de cada um, o desejo de cada um.
Um usuário de drogas abordado pela reportagem não acredita em solução. Para ele, a economia naquele ponto da cidade gira em torno do tráfico de drogas. Consequentemente, há interesse em manter a Borges sem intervenções do poder público.
— Não poderia nem estar falando contigo, vão me tirar pra "cagoeta" (informante da polícia).