Está nas mãos da prefeitura de Caxias do Sul e do movimento comunitário a decisão de resgatar a Rua Borges de Medeiros e ruas próximas. Tomadas pelo consumo aberto de drogas e pelo tráfico, essas vias exigem um processo de requalificação urbana, o que poderia surtir efeito sobre a cracolândia e serviria de parâmetros para outras regiões da cidade com o mesmo problema. É o que a engenheira civil e coordenadora do Vivacidade, Giovana Ulian, define como implantar o caos no que está estabelecido e conformado.
No caso, o caos viria na forma de uma mobilidade que permita relações sociais e econômicas sadias no lugar de becos e pontos de tráfico, iluminação em ruas escuras, um melhor aproveitamento do Parque Mato Sartori e ações sociais paralelas.
Leia mais
Sem reação do poder público, cracolândia se consolida na Rua Borges de Medeiros, em Caxias
A tarefa não é simples, mas os resultados podem ser extraordinários. O primeiro desafio é mobilizar a comunidade e a prefeitura, que não conversam sobre o tema. Posteriormente, seria a hora de estabelecer lideranças e buscar parcerias.
Apesar dos alertas de mais de 20 anos, o Executivo caxiense nunca esboçou um plano para repensar a região. Mantém sim atendimentos por meio da Fundação de Assistência Social (FAS) e do Consultório de Rua, que possuem mais caráter de prestação de serviços individuais, mas sem força para intervenções coletivas. Quando se fala em requalificação urbana, é preciso reconhecer que houve investimentos para utilizar o Mato Sartori de forma ordenada e permitir o acesso da população, mas seria necessário evoluir no conceito e formato de utilização do parque.
Como exemplo de qualificação urbana que une o anseio comunitário e a colaboração de terceiros, dá para citar a Praça da Esperança, no bairro Euzébio Beltrão de Queiróz. Antes tomada pela degradação, a área de convivência passou por um processo sob a orientação do Escritório Modelo (projeto TaliesEM) do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Apesar do espaço não ter relação com o consumo de drogas, que é o caso da subida da Borges de Medeiros, o trabalho foi duro, exigiu convencimento, busca de recursos e muitas reuniões para entender qual era o objetivo e onde pretendia se chegar. Os moradores assumiram o papel de protagonistas e reabriram uma pracinha mais qualificada.
— Para nós foi muito bom. Os moradores vão ali tomar chimarrão, as crianças do projeto CAE são levadas ali para fazer pintura. O espaço realmente está sendo ocupado — afirma a presidente da Associação de Moradores do Euzébio, Miriam Machado.
O caso é simples e mostra que a primeira reação contra a degradação na Borges de Medeiros precisa vir essencialmente da comunidade, a mesma que não se cansa de apontar as mazelas do crack, entretanto, não sabe o que fazer ou a quem apelar. A prefeitura, por sua vez, precisa reconhecer a responsabilidade.
— Temos discutido com a saúde mental e até mesmo com o Urbanismo sobre a questão, para fazer uma mobilização e dizer que a rua não é lugar dessas pessoas. Às vezes, acontecem pequenas vitórias, mas não se enxerga. Temos que pensar todos juntos e o resultado será a longo prazo — opina a diretora de Proteção Social de Média Complexidade da FAS, Ana Lúcia de Albuquerque.
Comissão quer abraçar a causa
Como há questões de segurança, uma vez que moradores e a Brigada Militar (BM) relatam casos de furtos, tráfico de drogas, assaltos e assassinatos e receptação de materiais, a Comissão de Segurança Pública e Proteção Social da Câmara pretende levar o assunto da Borges de Medeiros adiante em 2020.
— Não podemos segregar, tornar mais difícil ou jogar de um colo para outro. A comissão de segurança pode planejar isso, tentar abraçar de forma coletiva, fazer a ponte. Já temos uma conversa com o projeto Vivacidade para fazer um trabalho conjunto nesta área de segurança — reitera a presidente da comissão e vereadora Paula Ioris (PSDB).
O comandante das 1ª e 2ª companhias da Brigada Militar (BM), major Wagner Carvalho dos Santos, chama a atenção para os limites de atuação da polícia e o papel fundamental de outros setores.
— Ali se aborda, identifica se há foragidos, se há drogas ou armas. Mas não podemos tirar as pessoas das ruas — diz o oficial.
Lideranças comunitárias aceitam dialogar
A zona neutra onde está inserida a cracolândia na subida da Borges de Medeiros favorece a indiferença. No papel, está no limite dos bairros Jardim América, Madureira e Centro. Mas tem relação direta com o Primeiro de Maio _ comunidade não reconhecida oficialmente pelo município e integrada ao movimento de bairro. As lideranças das quatro Amobs estão dispostas a dialogar.
— Acho a ideia boa, estou disposto a sentar e conversar. Não entendo por que os muros do Mato Sartori têm aqueles recuos, que são usados para o consumo de drogas. Será que alguém da prefeitura não vê que seria mais fácil eliminar isso? Só que a prefeitura não nos atende desde janeiro de 2017 — critica Marco Doncatto, presidente da Amob Centro.
— Penso que tem como fazer algo para que a população usufrua. Poderia ter uma academia, mas tem espaço para isso? Estou disposta a debater, mas a parte principal é a prefeitura participar — opina Rosemari Rotta, presidente da Amob Madureira.
Idair Moschen, presidente da Amob Jardim América, segue a linha de pensamento dos colegas de movimento.
— É o desolador o que se enxerga na Borges. Gostaria de ajudar na articulação.
POSSÍVEIS CAMINHOS
Confira a opinião de especialistas em projetos de impacto positivo na vida urbana
Estabelecer conexões
Giovana Ulian, engenheira civil e coordenadora do Vivacidade
— Todo o entorno do Parque Mato Sartori deveria ter uma calçada mais larga como forma de dar possibilidade de caminhar em volta e fazer conexões viárias, dar mais fluidez na região. A pior coisa que pode acontecer em áreas de riscos são os becos e áreas sem saídas. Deveria se abrir a passagem de pedestres para que esses becos não existam, pois é exatamente aí que a criminalidade se forma. A conectividade não é somente a passagem do carro, mas fazer com que aquela região seja ocupada de forma diferente. Se o parque fosse todo circundado por vias e iluminado, com possibilidade de caminhadas, se as ruas fossem melhor desenhadas, essa infraestrutura urbana mudaria um pouco a relação e a percepção das pessoas.
— O problema social, aquilo que a gente percebe em relação à criminalidade, precisa de ação e trabalho diferenciado do envolvimento comunitário, precisa de uma atitude proativa, pois não adianta melhorar calçada e infraestrutura se a questão social não é tratada. Um projeto como esse, em que poderia ser buscado inclusive recursos, tem de estar combinado com um resgate comunitário muito forte. É polêmico, mas se for ver o caso de Medellín, na Colômbia, as situações eram muito semelhantes e as coisas mudaram a partir de intervenções urbanas e valorização comunitária.
— Dentro do alinhamento, acredito que precisaríamos propor uma grande intervenção de infraestrutura, de que maneira causasse um caos para desestabilizar algo que já está fixo. Esta é a atitude de acupuntura urbana, que é mudança no sistema de funcionamento, diretamente relacionada à abertura das vias e à apropriação da comunidade do parque. Alicerçado à questão comunitária, vem o equipamentos de educação e trabalho social em paralelo. A região do parque não tem patrimônio ambiental tão grande assim, não é local com espécies ameaçadas. Deveria se rever o tamanho desse parque, a importância da manutenção dele todo e talvez criar ali alguma parceria público-privada para gerar renda e fazer as melhorias necessárias.
Moradores como protagonistas
Terezinha de Oliveira Buchebuan, professora e coordenadora Escritório Modelo da UCS
— O Escritório Modelo atua com comunidades que não têm condições de ser assistida por arquitetos. Essas atividades normalmente se desenvolvem muito mais ao nível de organização comunitária e esses trabalhos têm de partir ou serem desenvolvidos por meio de uma comunidade organizada. Então, há demandas encaminhadas através de ofício por associações de moradores ou em alguns momentos pelo poder público. Quanto mais pessoas envolvidas, maior é a chance de resolução porque todas as atividades são em função de organização comunitária e aquilo que a gente chama de urbanismo colaborativo ou urbanismo tático, em que os alunos fazem mutirões com moradores ou usuários dos espaços públicos com vistas a qualificá-lo.
— Lógico que tem o custo para fazer esses trabalhos. No caso da Praça do (Euzébio) Beltrão de Queiróz, foram feitas várias atividades, trabalhamos com eles um ano em oficina, fomos ganhando a confiança dos moradores, estabelecendo relações mais próximas, tentando dar autonomia a eles nos processos de atuação, buscando a valorização da profissão do arquiteto e urbanista, levando essa função social até a comunidades. Já tivemos outra parceria com a Associação de Moradores na lagoa do Desvio Rizzo, e mais tarde, o próprio poder público desenvolveu o projeto que foi financiado por uma multa paga por uma empresa. No caso do Beltrão, os moradores fizeram vaquinha pelo Facebook, teve doações, a universidade pagou as tintas, nosso diretor conseguiu doação de brita. Cada caso é um caso.
— O primeiro passo, é saber quem está realmente envolvido nisso. No semestre de passado, nós trabalhamos com o bairro Primeiro de Maio fazendo uma proposta para os moradores para aquela região. No diagnóstico que fizemos, constatou-se a presença desses usuários, de uma degradação do espaço. Quando o espaço é qualificado com o envolvimento da comunidade, eles se sentem pertencentes, o espaço público passa a ser cuidado e inibe esse tipo de uso, é um trabalho que demanda tempo. No Beltrão, ficamos praticamente um ano e meio. Se for via associação de moradores, o ideal seria que encaminhassem para o escritório modelo um ofício. No início do semestre, as demandas são votadas e vemos se tem equipe de alunos para trabalhar e respondemos às comunidades. Se houver grupo de alunos, iniciamos o trabalho no mesmo semestre. Quando antes a comunidade conseguir encaminhar isso melhor.
— (A indenização milionária aos Magnabosco) é realmente é uma questão um pouco delicada, não se sabe como o processo vai se encaminhar. Mas já faz muito tempo que trabalho com esses territórios autoproduzidos, que é um conceito que tenho usado na academia e aqui em Portugal onde estudamos. Sempre trabalhamos numa perspectiva de ocupação. É permitir acesso a um espaço público de qualidade, em qualquer local da cidade, independente se é território autoproduzido ou não, fruto de uma ocupação ou não, nosso foco sempre é atendimento a essas pessoas socialmente mais desprivilegiadas. Nós trabalhamos nessa percepção de ação local, para que o espaço público produza ou traga minimamente alguma qualidade a mais de vida para essas pessoas para que possam ter direito ao uso e principalmente a uma cidade mais justa e inclusiva. Está muito além do que minimamente uma intervenção num espaço, digamos assim, para mudar o público que usa.
Leia também
Em dia de anúncio do parecer sobre processo de impeachment, prefeito de Caxias apresenta a UPA Central
Em dia de anúncio do parecer sobre processo de impeachment, prefeito de Caxias apresenta a UPA Central