Quando alguém bate à porta, elas não negam atendimento. Essa é uma das premissas seguidas por quem recebe o "dom" do benzimento. Elas — pois em sua maioria são mulheres — também não exigem pagamento, mas não recusam o que lhes for dado como forma de agradecimento.
A rima foi por acaso e a descrição tenta explanar a filosofia das benzedeiras que ainda atuam em Caxias do Sul. Mesmo diante das inúmeras alternativas de tratamentos disponíveis na atualidade, os rituais de cura promovidos por elas ainda são frequentemente procurados pela população.
Em atendimentos que misturam sabedorias medicinais antigas e diferentes matrizes religiosas, o benzimento tem como princípio básico a cura e parece ir além da fé, tornando-se uma prática cultural que perpassa incontáveis gerações.
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— Esses rituais surgem a partir de três matrizes principais que formaram a nossa sociedade atual, reunindo as tradições indígenas, africanas e europeias, por meio do chamado catolicismo popular — explica o antropólogo Caetano Sordi, que atua no setor de patrimônio imaterial na superintendência estadual do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em Porto Alegre.
Segundo ele, o trabalho das benzedeiras e benzedeiros de todo o Brasil não encontra-se registrado junto ao órgão como patrimônio cultural imaterial, porém existe um movimento de identificação e de resgate dessa memória para que a prática seja preservada e, sobretudo, valorizada.
— É algo que faz parte da nossa expressão cultural enquanto sociedade, mostrando ainda a autonomia e o poder exercido pelas mulheres ao longo da história, mesmo diante de um contexto patriarcal_ garante o antropólogo, que aponta a predominância feminina em tradições antigas quando o assunto é o uso de plantas medicinais e outras formas de cura provenientes da natureza.
Sordi observa ainda a eficácia simbólica da benzedura que, por meio dos rituais, dá sentido ao processo pelo qual a pessoa está passando, sendo um componente psicológico eficaz para quem acredita no poder das benzedeiras.
— Talvez o interesse das novas gerações esteja diminuindo, mas o número de pessoas que procuram por esses atendimentos ainda é muito grande — afirma.
"Ganhei de graça, de graça eu dou"
A frase proferida pela benzedeira Drusiana Marisa Boff, 59, representa uma das premissas de toda benzedeira: não cobrar pelo "dom". A prática do atendimento gratuito acaba desarmando, muitas vezes, quem duvida de sua veracidade. Zana, como é conhecida, diz que a fé de quem está recebendo o benzimento é importante para que a cura seja efetiva, porém, conta que já conquistou o reconhecimento de céticos que passaram por suas mãos..
— Antigamente não se tinha muito médico por perto, hoje é diferente, por isso digo que o tratamento com remédio é uma coisa, o que faço aqui é outra. Não sou Deus pra curar, mas acontece dos remédios não funcionarem e a pessoa melhorar benzendo — esclarece.
Ao contrário de muitas benzedeiras atuantes de toda uma vida, dona Zana contabiliza apenas uma década de cura oferecida às outras pessoas. Terço, água benta, vela, tijolos, tesoura e a aliança de casamento da sua falecida mãe são alguns dos objetos utilizados para os rituais de cura que ela aprendeu com Zelinda Pandolfo, falecida amiga que foi costureira da família.
— Ela não tinha filhas e queria passar o dom para alguém e eu senti que poderia fazer algo pelas pessoas — relata Zana, que começou curando sua própria mãe de uma infecção na pele, sendo posteriormente procurada por mais e mais pessoas, diariamente.
Com o "dom" a ela passado, a benzedeira do bairro Panazzolo já curou enxaquecas, dores no corpo, alergias, herpes, dores no nervo ciático, sapinho, amarelão (recorrentes em crianças) e, entre tantos outros casos "clínicos", ainda diz tirar mau-olhado, manuseando uma tesoura comum em torno da pessoa a ser benzida, e proferindo algumas orações. De acordo com ela, o ideal são três sessões, nunca podendo totalizar número par.,
Em um espaço aconchegante, no coração de seu lar, ao lado do fogão à lenha ela recebe com carinho e disposição todos que a procuram. Uma de suas proteções é uma tesoura que fica no batente da porta principal para "cortar" todo o mal que ousar entrar.
— Eu exerço o dom tentando ser honesta, ouvindo as pessoas. Tenho fé e acredito no pensamento positivo. Ganhei de graça, de graça eu dou, mas muitos doam alimentos e outras coisas porque sentem vontade de agradecer pela melhora que tiveram.
"Tem dias que não consigo nem tomar café"
De benzedura é feita a rotina de Almira Zenatto, 76, que exerce a atividade há 26 anos na comunidade de Vila Seca, onde vive desde os 10 anos de idade. Devota de Nossa Senhora de Caravaggio e de Nossa Senhora Aparecida — padroeira da comunidade religiosa do Divino Espírito Santo, da qual é frequentadora assídua — dona Almira já perdeu as contas de quantas pessoas curou ao longo das duas décadas e meia, chegando a atender até 20 pessoas em um mesmo dia.
— Tem dias que eu levanto e não consigo nem tomar café, antes eu até deixava o portão aberto mas agora comecei a trancar — relata a benzedeira, conhecida da região onde vive.
No verão, a procura, segundo ela, costuma ser ainda maior:
— As pessoas vão pro mato e pegam bugre. Teve um rapaz que não conseguia mais abrir o olho, foi no Posto e não deram remédio. Nesses casos, benzo pra cobreiro brabo e peço que o bugre saia. Em três dias de benza tá curado — garante.
A orientação é que a pessoa ainda reze uma novena para algum santo que tenha devoção.
Foi orando, inclusive, que Almira diz ter recebido o "dom".
— Meu pai benzia quem tinha dor mas não quis me ensinar. Então minha tia disse que era pra eu pedir a Deus. Quem quer aprender tem que ir atrás — acredita a benzedeira, que usa brasa, tesoura, barbante, aliança e até toucinho.
Ela também prescreve xaropes caseiros que ela mesma faz, seguindo receitas herdadas de sua mãe e avó.
Entre peças de crochê e pinturas, sua atividade das horas vagas, imagens e objetos relacionados à pecuária e à cultura de laço fazem parte da decoração na casa de dona Almira. O gosto pelo tradicionalismo gaúcho é intrínseco à sua família, uma paixão alimentada pelo marido, falecido há dez anos.
Sendo assim, além de curar dores no nervo ciático, mordida de aranha, dor de cabeça, rendido (lesão por esforço físico), sapinho, cobreiro, amarelão, e a chamada "zipela" (erisipela; inflamação na pele) em humanos, a benzedeira também faz reza para bois e cavalos, seja de perto ou de longe.
— Geralmente a gente só telefona pra ela, diz a pelagem (cor do pelo) e o local onde tá o animal. Em poucos dias as verrugas, que são contagiosas, começam a cair — relata Rodrigo Reis de Oliveira, 41, que vive em Caxias do Sul mas mantém animais em propriedade de São Francisco de Paula.
Ele conta que há mais de 20 anos apela ao dom de dona Almira para curar seus animais. A eficácia é tanta, que na maioria dos casos de verruga e bicheira (infestação de larvas transmitida por moscas) ele sequer precisa acionar o médico veterinário.
— Ela não cobra nada, às vezes a gente leva uma agrado, uma compota de doce ou um melado, mas não se deve pagar e nem agradecer pela benzedura — afirma Oliveira.
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