Fazer entender-se pelo outro é um dos maiores desafios impostos a todo e qualquer ser humano que opte por viver em sociedade ao invés de enfurnar-se teimosamente em uma caverna. Comunicar-se é compartilhar da melhor maneira possível a aventura da existência, sabendo que o processo possui falhas. Muitas falhas. Porque nem sempre conseguimos fazer o outro entender exatamente aquilo que estamos tentando dizer. E nem sempre compreendemos corretamente aquilo que está tentando nos dizer o outro. Ou a outra.
Exemplo disso vivenciei eu alguns anos atrás, em um passeio turístico por Buenos Aires na companhia de minha esposa e de uma turma de amigos. Passeávamos pelo tradicional e fervilhante Caminito, na região de La Boca, as atenções sendo voltadas para cada casinha colorida, cada atração humana típica do local com seus artistas de rua e gatos, quando fomos, minha esposa e eu, abordados por um casal de dançarinos típicos de tango. Queriam que dançássemos com eles para batermos fotos e, claro, deixarmos em troca alguns pesos. Muito gentis, simpáticos e charmosos (tanto eles quanto nós, naturalmente), concordamos com a proposta e, turistas típicos que somos, fizemos as poses. Minha esposa com o garboso dançarino e eu com a formosa dançarina, não poderia ter sido diferente.
Ao findar da encenação, minha bailarina sussurrou manhosamente em meu ouvido algo que entendi como "um beso, señor, um beso!". Arrepiei. Como sair daquela saia justa, em plena calle, à luz do dia e minha esposa batendo fotos? Ela queria de mim um beijo? Ali? Então os argentinos são assim, tão... tão... soltinhos? Achei melhor não e, para não decepcioná-la, abri a pochete e ofereci a ela alguns pesos. Que era exatamente o que ela desejava. "Um peso, señor, um peso". Minha mente pérfida é que havia entendido o contrário. Felizmente, meu superego (que entende espanhol melhor do que eu) me impediu de arrebatar a dançarina nos braços ali mesmo no meio do Caminito e tascar-lhe um estrondoso beso em sua boca, na Boca.
Lembro disso neste 11 de dezembro, Dia do Tango, no dia em que, por incapacidade de compreensão, eu mesmo quase dancei feio. Saber ouvir é uma arte. Vital para a sobrevivência, por sinal.
Opinião
Marcos Kirst: minha mente pérfida é que havia entendido o contrário
Saber ouvir é uma arte. Vital para a sobrevivência, por sinal
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