São 31 meninos e meninas desgarrados de pai e mãe que sequer imaginavam a véspera do Ano-Novo com mesa aprumada, comida diferente do habitual arroz e feijão. Sobremesa! Mas a festa está preparada, e vem repleta de significados.
A garotada vive na Casa Lar Padre Oscar Bertholdo, em Farroupilha, instituição referência na região para filhos de famílias desestruturadas. Se eles estão ali é porque a vida de antes era bem difícil, e o desfecho poderia ser ainda pior se não houvesse intervenção do Ministério Público.
É um baque saber que todos sofreram maus-tratos. Alguns carregam feridas cicatrizadas, outros parecem ter a alma dolorida. Isso explica por que o rito para ceder passagem a 2015 tem clima de euforia.
Um dos motivos para brindar o Ano-Novo é a possibilidade de reconstruir a vida, resolução adiantada demais para quem tem menos de 12 anos. Mas as crianças dormem e acordam imaginando uma rotina diferente.
A ceia do Réveillon será quase uma repetição do jantar natalino, no qual pude participar a convite da Casa Lar. A diferença, agora, é que a meninada não carrega a expectativa por presentes ou visita do Papai Noel. Tudo se encaminha para uma celebração mais intimista, daí minha curiosidade em saber o que pensa essa juventude dita vulnerável em uma data tão festiva.
Na noite de 24 de dezembro, fui recebido pelo grupo na sala de TV. A atmosfera de algazarra contida, a carência por afeto e os olhares curiosos eram nítidos. As crianças não estavam dispostas a contar histórias tristes, queriam festa e proximidade.
Afinal, drama e isolamento são para adultos.
As meninas desfilaram vestidos novos, assim como os que serão usados na celebração de boas vindas ao Ano-Novo. Os garotos curtiam as camisetas e bermudas presenteadas por gente de fora. Um dos meninos, de quatro anos, lascou Feliz Natal! mais de 10 vezes, e pediu abraços, muitos abraços. Cinco deles eram bebês, e tentavam engatinhar pelo corredor do berçário como se estivessem comemorando.
A fartura servida no refeitório coletivo teve impacto mais pela novidade do que pela fome. Alguns souberam pela primeira vez que celebrações são necessárias em noites especiais.
Saboreando ave assada e arroz colorido, uma menina de 10 anos comentou que pensava na vida quando deitava para escutar música no fone de ouvido. Ela se vê no mundo da moda, no futuro. A melhor amiga dela, de nove, pretende ser professora. As duas são como irmãs, confidentes à espera da mudança. A mais velha já está decidida a não voltar para a família, tem consciência de que estava exposta e não era amada.
Ela é exceção no grupo.
O amparo mútuo é providencial para a criançada. Todos sentem saudades dos pais e de familiares, mesmo que a rotina doméstica incluísse negligência ou violência. Quando falta o colo do cuidador temporário, vale a troca de confidências entre as próprias crianças.
Atualmente, são 15 famílias de irmãos e outras cinco crianças sem parentesco habitando os quartos e corredores limpos da Oscar Bertholdo. Uma história é comovente: a mãe não quis os quatro filhos e coube ao Estado recebê-los. A diretora da instituição, Rosemeri Barreto Argenta, diz que é uma situação de desamor.
A pergunta é: por que é tão difícil para alguns gostar de crianças?
A parada deve ser breve na Casa Lar, mas o risco de acolhimento permanente não é descartado. Isso só ocorre se a situação lá fora não melhorar. Diante disso, a Justiça não terá outra opção senão colocá-los para adoção, geralmente processo frustrante porque a sociedade ainda vê tabus. Números do Conselho Nacional de Justiça indicam que somente crianças menores de seis anos têm chance de encontrar família substituta, um equívoco com urgência de correção.
De vez em quando meu filho de três anos entoa uma canção inventada por nós cuja letra cabe numa frase: as crianças são todas grandes e os adultos são pequeninos. Na última semana, passei a pensar que a musiquinha concebida sem nenhuma pretensão resume a história dos 31 meninos e meninas que conheci no Natal.
A história deles e de outras centenas que celebram o Ano-Novo em abrigos pode ser triste ou alegre, dependendo do ponto de vista, mas está a meio caminho de um desfecho. Tal como a interpretação da pintura da artista plástica Rosamaria Feltrin, exposta no corredor da Casa Lar, que remete a um novo olhar sobre a vida.
Nada melhor, portanto, do que dar tchau para 2014 em grande estilo.
Infância
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Adriano Duarte
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