- Pode colocar aí na abertura da tua reportagem: foi amor à primeira vista. Eu sou apaixonada por esse hospital. Ele tem alma própria.
>> Confira todo o conteúdo especial produzido
para os 100 anos do Hospital Pompéia
É assim que a médica nefrologista Luciana do Amaral Leonardelli define sua relação com o Hospital Pompéia, onde trabalha desde 1988. Formada pela Universidade Federal de Pelotas, de onde é natural, Luciana chegou ao Pompéia para trabalhar como intensivista (nas UTIs), mas acabou ajudando a divulgar o nome da instituição Brasil a fora graças à sua batalha pela universalização da doação de órgãos.
A especialista foi impulsionada a lidar com os transplantes em função da implantação do serviço de nefrologia no Pompéia, em 1990, no qual ela e o nefrologista Osvaldo von Eye são pioneiros.
- O serviço foi criado em 1990, quando o hospital passou ser filantrópico. Começou com um paciente e, rapidamente, se transformou no maior serviço da cidade e o único serviço transplantador (com equipe para realizar transplantes). Não há nenhum que se iguale ao Pompéia hoje na região. Se tivéssemos mais vagas, iriamos preencher também. Não damos mais conta. O serviço está sempre lotado porque é um serviço transplantador e isso atrai muitos pacientes. Como na época não havia leis que regulamentassem a doação de órgãos, tampouco existiam grupos organizados dentro dos hospitais para tratar do assunto, os transplantes eram feitos essencialmente pelos nefrologistas.
Conforme Luciana, o primeiro transplante de rins foi realizado no hospital em 1992, com um doador vivo. Um ano depois, ocorreu o primeiro procedimento com doador falecido.
- Não havia infraestrutura nenhuma, não havia contribuição da parte dos outros médicos. Quem nos avisava era a enfermagem, que alertava sobre um paciente com provável morte encefálica. Os médicos desconheciam o processo, os neurologistas eram totalmente contra, achavam que a morte encefálica só representava a perda de um paciente e não a possibilidade de seus órgãos salvarem a vida de outras pessoas. Não havia a cultura de doação. Havia muita resistência. Tentamos organizar no hospital uma equipe com a enfermagem porque esses processos geralmente aconteciam nos finais de semana, de madrugada e nos feriados. Fiz uma reunião, propus que eles ajudassem, fizessem parte do grupo, que pelo menos tivesse alguém em cada turno do hospital para lidar com isso. A resistência foi enorme. Mas eu tinha certeza que era uma coisa de cultura, e que esse processo é lento, que as pessoas só iam aprender se as coisas começassem a acontecer - conta Luciana.
No início, foi preciso ganhar a confiança dos próprios profissionais da área de saúde. A imprensa, confirma a médica, foi importante nessa conscientização.
- Começamos a chamar os jornalistas quando havia algum transplante bem sucedido. Lembro que teve um grande acidente em que morreu a família inteira na hora e um menino que evoluiu para morte encefálica depois, no hospital. O pai autorizou a doação e chamamos o Pioneiro e a TV. Filmamos o processo, e isso foi a publico. Quando isso começou a ser divulgado, os resultados começam a aparecer, os próprios profissionais começam a se interessar. Isso ficou bem marcado em relação aos intensivistas quando num congresso de Terapia Intensiva que teve em Bento Gonçalves, foram mostradas as estatísticas de doação no Rio Grande do Sul. Por pior que fossem os índices de doação no Estado, a nossa cidade era a segunda que mais captava. Quando os intensivistas viram que os números estavam ligado ao Hospital Pompéia, disseram: "puxa vida, mas é o nosso hospital". E ficaram muito orgulhosos com aquilo. Foi aí que passei a ter acesso aos intensivistas e o processo foi evoluindo com os outros médicos. Depois, foi preciso abastecer a população de informações. Poucas pessoas entendiam o que era morte cefálica, havia uma desconfiança enorme sobre o processo de retirada dos órgãos, exames...
Para isso, recorda Luciana, a equipe passou a dar palestras e foi criado o programa Educando para a vida, que atingiu milhares de estudantes da cidade.
Múltiplos órgãos
Conforme a nefrologista, até 1996, só eram retirados rins e córneas dos doadores. Nesse ano, com a criação da Central de Transplantes no Estado, por iniciativa do médico Roberto Schlindwein, cirurgiões de Porto Alegre vieram ao Caxias ensinar como se retiravam múltiplos órgãos, que, se não eram aproveitados na cidade, era mandados para pacientes de todas as partes do Estado.
- Ainda não existia lei nacional de transplantes nem lista única. Quem conseguia captar o órgão, fazia o transplante - afirma.
Quando surgiu a lei de transplantes (Lei nº 9434), em 1997, ela não determinava lista única nem a necessidade de haver comissões hospitalares para tratar do assunto. O Ministério da Saúde então passou a tentar organizar quem poderia doar, como é que poderia doar, os critérios.
- Lembro que eu ia no rádio e dizia que nós precisávamos de comissões. A regulação da Comissão Intrahospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (Cidott) só surge em 2000. Até a criação da lista única, em 2004, a gente continuou retirando órgãos e transplantando em pacientes da região. A nossa lista de espera praticamente zerou, porque a gente passou a ter bastante oferta, principalmente com as doações de múltiplos órgãos. Quando surge a lista única, houve uma queda muito grande na distribuição porque, por exemplo, qualquer doação que tivesse ia para a lista do Estado e rim, especialmente, só é transplantado em quem é mais compatível. Então não vinha sempre para nós como antes. Os transplantes caíram vertiginosamente. Antes, a gente fazia uma média de 20 e tantos transplantes por ano, e passou a ter sete no primeiro ano após a lista única. Aí, conforme foi aumentando a doação, esse número foi crescendo também - explica Luciana.
Já conhecida pelo trabalho pioneiro que vinha realizando, a equipe do Hospital passou a convidar hospitais da região e do Estado para palestras e workshops sobre doação de órgãos e transplantes. A ideia era estimulá-los a notificar potenciais doadores, transferindo-os para o Pompéia para a realização do exame confirmatório e retirada de órgãos.
- Em 2004, o Ministério da Saúde veio acompanhar os treinamentos que a gente dava. Um dia, veio um olheiro do ministério e se encantou com o treinamento. Eles me convidaram para montar um projeto, para treinar todo o Brasil. Eu fiz esse projeto, organizei a equipe e, por dois anos, a gente rodou o país. Aí o Pompéia passa a ser conhecido no Brasil inteiro. Hoje o hospital é respeitado em termos de doação. Nós temos uma OPO (Organização de Procura de Órgãos), que conta com o mesmo pessoal da Cidott e do banco de olhos. É um pessoal que tenta fazer com que toda a região se organize para a doação. O Hospital Pompéia recebeu isso graças ao nome que tem. Além disso, continuamos sendo, proporcionalmente à população, a cidade que mais tem doadores. Isso se manteve inclusive após a minha saída da comissão, em 2006, quando eu voltei a a transplantar - conta Luciana.
Banco de Olhos
Em 2006, recorda a nefrologista, a equipe do Pompéia também se mobilizou para criar um banco de olhos. Era uma proposta ousada, já que a cidade já dispunha de um órgão no Hospital Geral. Porém, graças a uma parceria com o Lions Club São Pelegrino, o serviço foi montado e conseguiu, em sete anos, realizar mais de mil captações de córneas.
- Estamos na vanguarda. Não existe outra cidade no país que tenha dois bancos de olhos. Tem cidades, tem capitais que nem têm esse serviço. A gente sabia que era uma coisa ousada, mas achamos que como a nossa captação era boa, valia a pena implantar para ajudar o hospital, já que o banco traz divisas. Em 2004, lançamos o projeto Pompéia-Córneas - rumo à fila de espera zero. Não conseguimos zerar a lista, mas os números eram muito bons. A nossa lista de espera na Serra não chegava a dois meses, bem diferente da situação do Estado do Pará, por exemplo, onde, na época, a lista de espera era de oito anos.
Trabalho
Mais do que se tornar um centro de referência no país na área de nefrologia e transplantes a pacientes ricos ou pobres, para Luciana, o Hospital Pompéia é capaz de encantar as pessoas.
- Não sei se são os anjos que cuidam, não sei explicar, mas esse é um hospital que muda as pessoas. Primeiro porque ele recebe todo mundo. O sujeito se forma e quer começar a trabalhar, ele começa por onde? No Pompéia. Por que? Porque o hospital abre as portas para todo mundo. Esse acolhimento marca muito em termos profissionais, tanto para a enfermagem quanto para o médico. Não sei se é porque ele é um hospital de caridade ou porque ele ajuda muito que as pessoas. Não interessa se ganha pouco. Basta perguntar para o funcionário que sai e vai para outros hospitais. Eles dizem que morrem de saudade do Pompéia - afirma a médica.
Para ela, o hospital também tem uma dinâmica de trabalho muito peculiar. No Pompéia, acredita ela, as pessoas são muito úteis:
- Não tem muita limitação de gestão. Como tem muito serviço, qualquer ideia é bem vinda. E não percebo fogueira de vaidades lá dentro. Atribuo isso a uma grande quantidade de serviço, à complexidade dos pacientes. Como paciente é muito grave e ele precisa de uma equipe multidisciplinar, todo mundo dá o sangue pelo trabalho. Isso faz com que não haja tempo para picuinha, para fofoca, nem para briga. No Pompéia, se aprende por osmose, porque é muito trabalho. Qualquer coisa que tu faça nesse hospital rende.
Memorial
Para o futuro, Luciana Leonardelli sonha em realizar mais um projeto por meio do Hospital Pompéia: um memorial ao doador de órgãos.
- A ideia é fazer um monumento no Parque Cinquentenário. Já tem o desenho pronto. Pretendemos colocar nele plaquinhas com os nomes de todos os doadores. Cada vez que tiver uma doação, faríamos uma cerimônia com a família. A proposta depende, é claro, de recursos, para deslanchar. Por enquanto, não há prazo para que ela saia do papel.
Sentimento
"Eu sou apaixonada por esse hospital. Ele tem alma própria", conta a médica Luciana Leonardelli sobre o Hospital Pompéia
Ela acabou ajudando a divulgar o nome da instituição Brasil a fora graças à sua batalha pela universalização da doação de órgãos
GZH faz parte do The Trust Project