Coelhos, tartarugas, porquinhos da índia, chinchilas, iguanas, cavalos, aves, peixes e até cobras são só alguns dos bichos que passam a integrar, a cada dia mais, as casas das famílias. Essa realidade inclusive é comprovada em números. Dados da Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (Abinpet), de 2022, revelam aumento no número de pets de estimação não convencionais, escolhidos pelos humanos como companhia diária. A criação de répteis e pequenos mamíferos, por exemplo, teve um crescimento acumulado referente aos anos de 2021 e 2022 de 3,8%.
Apesar desse crescimento, na Serra ainda não há nenhuma clínica voltada apenas para esses atendimentos. Mesmo assim, a maioria dos estabelecimentos contam com especialistas em pets não convencionais que atendem nos locais sempre que chamados para as referidas consultas ou procedimentos. O mercado desses animais apresenta menor concorrência se comparado com o setor de pets tradicionais, como o de cachorros e gatos, que é líder de mercado, e assim torna-se uma oportunidade para quem deseja explorar um novo nicho que está em crescimento.
Entre os animais "diferentes" que podem ser domesticados, os mais comuns são os roedores, répteis e aves, como: chinchilas, hamsters, furões, cacatuas e jabutis, entre outros. O pet não convencional refere-se ao animal exótico e silvestre que, geralmente, pode ser domesticado. Todos necessitam de assistência especial e voltada ao que o animal precisa de acordo com a natureza de cada um deles. A força do mercado já reflete nas mudanças em outros setores. Na aviação, por exemplo, os coelhos já são autorizados a viajar com o tutor na cabine de passageiros do avião.
Mercado pet
O presidente do Conselho Consultivo do Instituto Pet Brasil, Nelo Marraccini, ressalta que a estimativa de crescimento esperado para o mercado pet neste ano era de cerca de 15%, mas, no momento, gira em torno de 10% a 12%. Apesar desse aumento, se o percentual se consolidar, será o menor índice de aumento registrado desde 2019. Desde 2020, a taxa de crescimento vinha acima dos 15%, marcando 15,5% em 2020, 27% em 2021 e 16,4% em 2022. A última vez que esse valor ficou abaixo foi em 2019, quando registrou apenas 3%.
Marraccini ressalta ainda que, com base nos últimos anos, se percebe um aumento de animais não convencionais nas casas:
— A gente percebe que tem muita cacatua, papagaios, aves como um todo, especialmente as que estão legalizadas, que existe uma legislação para que as pessoas possam criar de maneira correta e comercializá-las. A gente percebe que existe um grande número de criadores e importadores que estão em pleno vapor. O mercado está crescendo.
O profissional acrescenta que há impactos nas vendas, e também no número de conhecedores, sendo que há encontros constantes entre veterinários especializados:
— Vem crescendo significativamente e percebemos que há treinamentos e reuniões de veterinários especializados em animais exóticos, em pássaros, que é uma categoria bem específica, que requer uma especialização muito grande. Está aumentando o número de profissionais.
Além de cães e gatos: mudança também no ensino
Segundo especialistas da Serra, essa demanda crescente de animais exóticos e silvestres acontece porque as pessoas consideram ter um roedor ou uma ave em casa, devido ao espaço e até mesmo ao fato desses pets necessitarem de menos atenção do que os cães e gatos. Com o aumento de animais silvestres e exóticos, e da conscientização dos responsáveis, cresceu também a necessidade de profissionais especializados em diversas espécies. Essa mudança é perceptível até mesmo nas faculdades e universidades, que passaram a destinar conteúdos a todas as espécies.
A coordenadora do curso de Medicina Veterinária da Uniftec, de Caxias do Sul, Fernanda Flores, recorda que há 13 anos, por exemplo, havia apenas uma disciplina que abordava a questão dos pets não convencionais, e que não havia especialistas e atendimentos voltados a essas espécies na região. Atualmente, a profissional garante que o mercado está em expansão.
— Hoje trabalhamos conteúdos de pets não convencionais em todas as disciplinas. Tem uma disciplina específica e também esse olhar voltado aos cuidados, manejo e diferenças de atendimento necessárias a cada uma dessas espécies. Os currículos passaram por essas mudanças — afirma ela.
Fernanda acrescenta que hoje há tratamentos diferenciados para cães e gatos, e as clínicas de pequenos animais absorveram os atendimentos para pets não convencionais. Ela explica que, assim que o aluno chega à instituição, ele cursa a disciplina de Introdução à Medicina Veterinária. Nessa aula, professores e estudantes têm um bate-papo para contar o que os levou a escolher o curso. E aí passam a ter acesso a informações sobre as mais de 80 áreas diferentes dentro da Veterinária, para que possam trilhar o caminho acadêmico e profissional:
— Às vezes, ele (o aluno) chega um pouco direcionado, mas descobre um mundo encantador e que vai muito além daquela imaginação que tinha. Alguns vêm com esse desejo de atender pets não convencionais, mas são poucos. Conforme o curso vai acontecendo, esse número aumenta, porque nós professores também instigamos. E os alunos entram em contato com esse mundo que sai do imaginário comum, que é o cão o gato e os animais de produção — ressalta a coordenadora.
A importância de especialização
A Universidade de Caxias do Sul (UCS) também atualizou a grade curricular para garantir mais acesso dos alunos aos conteúdos sobre os pets não comuns. Atualmente há uma disciplina de semestre inteiro, e também optativas voltadas para animais silvestres.
O coordenador do curso de Medicina Veterinária da UCS, Gustavo Brambatti, afirma que se especializar sobre pets não convencionais é essencial para o profissional, já que essa busca por atendimentos é cada vez mais recorrente nos consultórios da região.
— A especialização é totalmente necessária, porque se a gente pensar na possibilidade de o veterinário atender, se ele teve dentro da graduação disciplinas voltadas a esses animais, ele é habilitado legalmente para atender. Mas somente aquelas disciplinas, eu diria que elas não dão uma habilidade total para esse atendimento. Tem que procurar uma especialização, procurar uma residência ou um aprimoramento — aconselha o coordenador.
Atenta a essa demanda, a UCS pretende oferecer em 2024 uma vaga de aprimoramento, que é parecida com uma residência veterinária, mas um pouco mais curta, voltada para animais silvestres, que é uma maneira de buscar especialização. Além disso, também há a intenção de criar uma turma de especialização.
— Estamos tentando montar uma turma de animais de estimação não convencionais de especialização. Ainda não está bem estruturado o currículo, mas é muito provável que ela vá sair em breve. Dentro do nosso mestrado profissionalizante também há professores orientados na área, então o aluno pode se especializar dentro dessa área — explica Brambatti.
O futuro da Medicina Veterinária não convencional
Na opinião da especialista em atendimento aos pets não convencionais do Centro Universitário da Serra Gaúcha (FSG), a médica veterinária Camila Andreazza, o profissional que atende um animal de estimação fora cães e gatos vai atender qualquer animal diferente de cachorro e gato:
— A gente abrange animais silvestres, que são aqueles nativos do nosso país, os animais exóticos, que são animais pertencentes aos outros países, que acabam sendo introduzidos como animais de estimação, e que existe toda uma legislação específica. E também os animais que na legislação são considerados domésticos, mas por terem uma fisiologia diferente, eles acabam sendo atendidos por profissionais de animais silvestres — destaca.
Camila relata que, muitas vezes, aparece para atendimento nas clínicas comuns, mais voltadas a pequenos animais, uma galinha, um ganso, um coelho. E o profissional que atende cão e gato não conhece a diferença da fisiologia, e por isso a clínica precisa de veterinários especializados. Camila reforça que, na medida que o mercado cresce, aumenta a necessidade de as universidades mudarem os currículos no futuro para que mais espécies possam ser estudadas.
— A gente só tem uma disciplina, e tenta englobar tudo, o que fica bem difícil, porque se fala sobre as aves, répteis, mamíferos e são muitas espécies diferentes de animais para abordar apenas em uma disciplina. Eu imagino que no futuro tenha que ampliar as disciplinas nessa área. Ter, por exemplo, medicina de aves ornamentais, medicina veterinária de peixes ornamentais. É preciso ter essa divisão, para a gente consiga aprofundar os conteúdos, porque é uma área em constante crescimento — afirma a professora.
Sonho de menino
O médico veterinário Charles Savi Mundo Dal Zotto, 35 anos, é formado pela UCS há pouco mais de três anos. Natural de Caxias do Sul, ele lembra com alegria da convivência com coelhos, galinhas, porquinhos da índia, ovelhas e demais espécies durante a infância. No consultório, enquanto recebeu a reportagem, o veterinário preparava o coelho Flock para um procedimento cirúrgico. Paciente antigo, o peludinho branco se sentia confortável com o profissional.
— Sempre tive essa afinidade com espécies exóticas. Na faculdade eu já entrei focando nessa área porque tinha muito claro que eu gostaria de trabalhar com isso. Durante os seis anos de graduação, eu fui conhecendo novas possibilidades, outras perspectivas que me trouxeram até aqui — conta o veterinário.
Apesar de ter escolhido os pets não convencionais por amor, ele teve inseguranças sobre o mercado, e hoje percebe que a demanda por profissionais qualificados cresce a cada ano, reflexo que sente no consultório:
— Quando eu comecei a atuar foi uma grata surpresa porque eu vi que essa área tem muita demanda. Hoje em dia é muito mais fácil tu criar um coelho, um pequeno roedor, uma ave em casa, do que tu ter todos os cuidados com um cão ou com um gato que exigem muito mais atenção e espaço. Essa é uma das três áreas na veterinária que mais crescem, e eu noto muito esse crescimento pela demanda, porque praticamente todos os dias eu atendo algum paciente — destaca.
Durante a graduação, Dal Zotto realizou estágios específicos na área, em zoológicos, clínicas especializadas e ONGs. Depois de formado, ele atuou sem cursar pós-graduação, e foi quando percebeu que a especialização era necessária para realizar o sonho de infância. Em 2022 iniciou a pós-graduação em uma faculdade de São Paulo. Hoje, ele atende em Caxias do Sul, Farroupilha, Bento Gonçalves, Flores da Cunha, São Marcos e demais cidades da região.
"Brilhou o olho", conta especialista
Júlia Fachin Tronca, 26, escolheu a Medicina Veterinária aos 16 anos. Formada há um ano e meio, ela se formou na Universidade de Caxias do Sul (UCS) e decidiu trabalhar com pets diferenciados quando fez um estágio há cerca de seis anos. Na época, percebeu que a paixão por cães e gatos era apenas como tutora, mas não para seguir no caminho profissional:
— Eu tive contato com primatas pela primeira vez em um estágio em Porto Alegre, e foi quando o olho brilhou e eu pensei: "meu Deus, é isso que eu quero para minha vida". Eu realmente percebi que eu não ia trabalhar com cães e gatos, que eu ia trabalhar com pets não convencionais. É uma rotina um pouco mais intensa em termos de espécies de animais, mas é muito gratificante — afirma.
A veterinária também fez estágios em Santa Catarina e no Paraná, o que enriqueceu o currículo para trabalhar na área. Atualmente, atua em uma clínica de Caxias e também faz atendimento domiciliar. Apesar da timidez, ela se solta ao falar das espécies que já atendeu e não esconde o sorriso de atuar na profissão que realmente a deixa realizada. Júlia relata que as espécies que mais atendeu foram coelhos, calopsitas, papagaios, tigres da água, que são as tartarugas de água doce, e a mais diferente até agora: uma iguana.
Para 2024, Júlia pretende cursar especialização, para estar ainda mais preparada para as atender aos pacientes:
— O manejo de uma espécie para outra é completamente diferente, tem que cuidar a questão das temperaturas que eles têm que ficar, as alimentações, o tipo de ambiente, o comportamento. São muitos detalhes específicos. Mas eu, por exemplo, não consigo atender pet convencionais. Se eu tiver que atender cães e gatos, eu não sei o que fazer, mas sei como atender perfeitamente uma tartaruga, conta a profissional, enquanto atende a paciente Tuga, que tem 20 anos.
"A Veterinária era meu foco", afirma especialista em animais de grande porte
Especialista em animais de grande porte, o médico veterinário Jefferson Lopes, 69, se formou em 1979. Caxiense, Lopes cursou Veterinária na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do RS, em Uruguaiana. O profissional recorda que o amor pelos animais surgiu quando ainda era muito pequeno, tanto que toda a família sempre dizia: " você vai ser veterinário, você não pode ter outra profissão, porque adora cachorro". Ainda no colegial, decidiu seguir o coração e cuidar de animais. Na universidade, Lopes descobriu uma nova paixão dentro da área:
— Com o tempo eu percebi que não existia outra profissão, e a veterinária era o meu foco. No começo pensava em pequenos animais porque amava cachorros, mas, na faculdade, convivia com colegas que tinham fazendas e os pais deles criavam gado e cavalos. Um desses colegas era muito fissurado em cavalos de corrida. Morava em Porto Alegre, tinha cavalos em Vacaria e corria com cavalos próprios em Porto Alegre. Olhando as revistas daquela época, quando participava dos eventos, em que os cavalos corriam, eu vi que poderia mudar meu foco, e ingressar na área de equinos — conta.
Depois de formado, o veterinário foi a São Paulo participar de um teste para residência no Jockey Club. Ele relata que naquela época não existia pós-graduação, e como tinha o desejo de trabalhar com equinos, a convivência com os profissionais daquele espaço ajudou a adquirir experiência para se profissionalizar nesta área. Lopes ficou cerca de seis meses, observando o trabalho dos veterinários e estudando para entrar na residência. Aos 26 anos, prestou o exame de residência, foi aprovado e passou um ano na cidade para se aperfeiçoar.
— Eu concorri com mais de 30 profissionais e desenvolvi minha capacidade para atuar com cavalo de corrida, que era o puro sangue inglês e o quarto de milha. Naquela época, a situação econômica era diferente da de agora, e existiam vários haras onde criavam os cavalos. Me dediquei a essa área e desenvolvi todo o meu ambiente de trabalho focado em cavalos. Atualmente, não atendo os pequenos, porque passei a atender só cavalos e fiz a especialização nesse atendimento — afirma o especialista.
Censo Pet
O Censo Pet mais recente realizado pelo Instituto Pet Brasil, mostra que o Brasil encerrou 2021 com 149,6 milhões de animais de estimação, um aumento de 3,7% sobre os 144,3 milhões do ano anterior.