CORREÇÃO: a Costa e Fio produz mais de 80 mil chairas por mês, e não 30 mil como foi informado anterioramente. A informação errada permaneceu publicada entre 6h30min e 9h30min desta segunda-feira (3). A informação foi corrigida.
Capacitar, incentivar a criatividade e apostar no potencial do empregado. Três ações que figuram no discurso e na missão de empresas contemporâneas e que foram colocadas em prática ainda no século passado pela Metalúrgica Eberle. A cultura criada pela empresa que iniciou fabricando lamparinas e passou a contar com uma variedade impressionante de produtos foi fundamental para tornar Caxias do Sul o polo metalmecânico que é hoje.
A partir dela, dezenas de outras pequenas empresas foram criadas e seguem produzindo os mesmos itens desenvolvidos pelas fábricas da antiga metalúrgica distribuídas pela cidade. De chairas (instrumento de aço com ranhuras utilizado para amolar facas) a moedores de carne, de espadas a pequenos botões de camisa, sempre tendo o aço como protagonista, a Eberle deixou um legado que segue vivo nas mãos de ex-funcionários e das respectivas famílias que trabalham agora nas próprias fábricas.
São empresas criadas por quem trabalhou por anos na metalúrgica e reproduziu o conhecimento para criar o próprio negócio. O impulso para tal fenômeno ocorrer, conscientemente ou não, veio do próprio embrião que se tornaria a Eberle no futuro.
Reconhecida como uma escola por quem trabalhou no chão das fábricas, a Eberle empregava na década de 1920, de acordo com Instituto Memória Histórica e Cultural (IMHC) da UCS, cerca de 30% da população de Caxias do Sul. Dava emprego, na imensa maioria a homens e muitos menores de idade, inclusive, em uma legislação trabalhista que ficou no passado.
— Nos contratos desses aprendizes se observa como função e dever do empregador, ensinar a arte da funilaria e mais tarde da metalurgia, dando em troca abrigo e alimentação — recorda o diretor do IMCH, Anthony Beux Tessari.
Eram jovens que se dividiam entre a teoria do Senai e a prática na grande empresa que ainda ofereceria cursos noturnos de desenho e torno mecânico. Além da capacitação, outra situação incentivou que, ao passar do tempo, funcionários despertassem para o empreendedorismo ao levar trabalho para casa.
Nascido em 1949, o engenheiro mecânico Orlando Michelli era criança quando a Metalúrgica Abramo Eberle S/A (Maesa) estava em construção e cresceu sabendo que o sustento da família e de todos os oito tios, empregados da antiga empresa, vinha do trabalho executado na Eberle. Na fábrica da Rua Sinimbu, o pai, Itvino Michelli, soldava bombas de chimarrão e apetrechos para montaria. À noite, com ajuda da esposa, complementava o salário com pequenas montagens manuais feitas no porão de casa. A demanda vinha da própria Eberle, que, com o tempo, passou a equipar empregados dispostos a receber as peças em casa.
— Meu pai chegava às 18h, jantava e descia no porão com a minha mãe para fazer o trabalho em uma bancada. Na Eberle se dava o acabamento final, uma solda ou rebitagem para concluir a montagem. Depois de algum tempo, esses serviços evoluíram e passaram a necessitar de furadeiras, esmerilhadoras ou aparelhos de soldas. Com as máquinas em casa, muitos passaram de funcionários a prestadores de serviços — recorda.
O vasto portfólio, que produziria ainda de artigos religiosos a talheres, também justifica a razão das oportunidades terem surgido à época. Pequenas imagens de Jesus Cristo, feitas na metalúrgica, eram coladas manualmente, em casa, pelas famílias dos funcionários. No caso da cutelaria, por exemplo, era preciso polir os objetos antes de colocá-los à venda. Pequenos serviços que inauguraram, na década de 1950, o processo de terceirização, pago por item concluído, da Metalúrgica Eberle.
O começo da Indústria Metalúrgica PRM, instalada no bairro Sagrada Família, se deu dessa forma. A receita para a implantação da hoje empresa familiar seguiu uma espécie de padrão de tantas outras que nasceram, principalmente entre os anos 1980 e 1990. Na base, capacitação bancada pela Eberle e, no futuro, serviço dado por ela a profissionais já experientes e forjados em um ambiente que exigia a rápida resolução dos problemas.
Na última década dos 34 anos dedicados à Eberle, Silvino Rafaelli, 83, matriculou os filhos no Senai, assim que completaram 16 anos. O curso foi bancado pela empresa, que logo os contratou e fez com que todos os homens da família trabalhassem em três das nove fábricas da Eberle que chegaram a estar espalhadas pelo município.
Enquanto Paulo Rafaelli, 59, trabalhava no setor de aviamentos, o irmão mais velho, Antônio, 62, fazia a fabricação de motores e o pai produzia talheres. Foi a partir da experiência dos três com os afazeres que surgiu a oportunidade de criar uma empresa e passar a fornecer para quem os capacitou. O começo foi no porão de casa, hoje em frente a atual empresa, realizando serviços de usinagem.
— Nosso começo foi a Eberle pagando pra fazer o Senai e depois nos dando serviço. Depois da usinagem, fomos fazer matrizes para ferramentaria, mas eram poucas máquinas, então utilizei aquela experiência de limar à mão, por exemplo, para começar a produzir. A empresa criava artistas. Hoje, existe tecnologia suficiente para que poucas coisas sejam feitas daquela forma — conta Paulo.
Fundada em 1986, a PRM atualmente produz moldes de injeção para termoplásticos e dispositivos para o mercado industrial. A sucessão está garantida com o neto de Silvino, Fábio Rafaelli, 27, que mesmo sem nunca tendo entrado na Maesa, dá continuidade, ao lado do pai e do avô, ao legado criado por ela.
"A Eberle foi uma escola"
"Sempre dizíamos que quem queria aprender, o melhor lugar para estar era lá. A Eberle foi uma escola". A frase é do empresário Jacinto Dalcin, 68, que por 21 anos trabalhou na fábrica 4 da Metalúrgica Eberle. Ferramenteiro, ele produzia os mesmos componentes metálicos para confecções que produz até hoje, atualmente na própria empresa, a Metalúrgica Metalcin.
A graduação do Senai ajudou, mas foi o contato com colegas e a experiência em realizar serviços manuais, hoje feitos quase que integralmente em máquinas, que deram a ele a coragem de empreender.
— Tudo o que fabrico aqui aprendi lá dentro. Botões, ilhoses, enfeites e rebites. O processo mudou muito com novas tecnologias e o ritmo é bem diferente, mas nunca cheguei perto de produzir o tanto que a Eberle produzia. Eu sou uma caixinha de fósforo perto deles — conta Dalcin.
Antes de se aposentar, em 1995, beneficiado pela aposentadoria especial, o hoje empresário contribuía para que a Metalúrgica Eberle produzisse cerca de 700 milhões de componentes para confecções por mês.
Incentivo à criatividade
O emblemático caso do primeiro motor construído pela Eberle a partir de um modelo em operação ilustra a forma como os problemas eram resolvidos dentro da empresa. A história de Henrique Maggi que desenvolveu o maquinário à época em que a 2ª Guerra Mundial impossibilitava importações está contada no documentário A Honra do Trabalho.
Produto da pós-graduação da historiadora Aline de Freitas, o filme de 37 minutos mostra depoimentos de ex-funcionários e comprova que as necessidades da empresa acabavam por criar novos produtos em uma espécie de mercado dela mesma.
— Isso dá um indício do porquê de vários funcionários saírem de lá para abrirem suas empresas. Eles eram incentivados a terem ideias para que fossem além do manual. Era um ambiente criativo — explica a pesquisadora.
A diversidade dos mais de 20 mil itens produzidos e o estímulo ao aprendizado também são apontados pela historiadora como fatores responsáveis por desmembrar aquela que, no seu auge, chegou a ser a maior metalúrgica da América Latina em pequenas empresas especializadas.
— Em 1984, quando a Eberle foi adquirida pelo Grupo Zivi-Hércules e depois quando do surgimento da Mundial, que decide fechar alguns parques fabris, os funcionários assumem pedaços da metalúrgica que carregavam, literalmente com eles, para fazer deles seus próprios negócios — conta.
Máquinas seguem produzindo chairas
Foi com máquinas adquiridas da antiga metalúrgica e muito trabalho desempenhado durante a noite que os irmãos Nestor Costa, 73, e Walter Costa, 71, ex-funcionários da Eberle, montaram, em 1996, o que veio a se tornar hoje a maior fabricante de chairas da América Latina. Com mais de 80 mil peças produzidos por mês, a Costa e Fio começou na garagem da casa de Walter, que contou com a experiência do irmão para desenvolver o produto. Antes disso, a então microempresa iniciou como tantas outras, prestando serviços de prensa e usinagem.
O conhecimento em lidar com o aço e fazer dele uma peça de qualidade para afiar facas foi adquirido cedo, com 12 anos, em aulas do Senai. A importância da Eberle neste processo entrou em cena em 1966 com a contratação de Walter, aos 16 anos, para desempenhar um papel até então inédito: a implantação de roteiros de produção e cálculos de custo.
— Fui contratado pelo Cláudio Eberle. Não sabia nada além do curso de torneiro mecânico e fui capacitado em um curso disponibilizado por eles. A Mundial comprou a Eberle para fechar e foram gradualmente encerrando as fábricas. Foi a partir da nossa demissão que começamos o próprio negócio — conta Walter, que permaneceu na Eberle por 31 anos e, em 2012, deixou a sociedade com o irmão.
A escolha do produto, segundo os empresários, foi devido à falta de concorrência e ao passar dos anos, como se replicassem o que presenciaram na Eberle, o portfólio foi expandido com linhas de chapas gourmet, facas e bifeteiras.
Na fábrica, ainda hoje operam máquinas que carregam o nome da Eberle gravado nelas. A prensa excêntrica de 17 toneladas, por exemplo, tem instalado uma espécie de placar analógico que contabiliza quantas peças foram prensadas com a marca do fabricante gravado. É impossível mensurar quantos produtos passaram pelo maquinário hoje utilizado muito mais como acervo. Parte da história, prensas e tornos, como os que estão sob posse da Costa e Fio, foram operados por aquilo que Nestor considera a grande perda após a dissolução da Eberle:
— Além das máquinas, que foram vendidas, o que de principal a Eberle perdeu foi a mão de obra especializada que tinha. Isso não foi recuperado, porque saíram para abrir seu próprio negócio e seguir produzindo o que se fazia lá.
E desta forma o legado da antiga Metalúrgica Abramo Eberle S/A continua vivo até hoje espalhados por indústrias em Caxias do Sul.