O Ceasa da Serra movimentou mais de R$ 70 milhões no primeiro semestre. Foram mais de 17,637 toneladas de 286 produtos hortifrutigranjeiros que passaram pela central de abastecimento, que é referência para produtores e mercados. Esta é uma amostra do potencial produtor e consumidor da região, que é conhecida nacionalmente pela uva, maçã e kiwi, mas que sempre demonstrou capacidade de se reinventar. As novas culturas trazem sustento as famílias ao mesmo tempo que diversificam o comércio local e enriquecem o atrativo turístico da região.
Umas dessas novidades pode ser encontrada no interior de Monte Belo do Sul, escondida nos fundos de uma casa, em uma sala pequena e quente que abriga dezenas de potes recheados de alho. O ambiente foi planejado por pai e filho que decidiram investir na produção de alho negro. Desde 2019, Gilmar De Costa, 59 anos, toca o negócio ao lado de Felipe De Costa, 30. Alimento ainda desconhecido por muitas pessoas, o alho negro tem cor e consistência que lembram uma bala de banana. O sabor é mais suave e adocicado.
— Tem muito turistas que vêm aí e perguntam: mas como é plantado esse alho negro? O alho negro não é plantado. É o alho normal que a gente compra na Ceasa e passa por todo esse processo — conta Gilmar.
O processo mencionado pelo produtor é a maturação. E é relativamente simples: na produção dos De Costa, o alho fica armazenado em potes dentro de uma sala com isolamento térmico e temperatura a 60 graus. Uma vez por semana, é acrescentado um pouco de água dentro dos vidros. O resto, é trabalho do tempo: o alho pode ficar nesse ambiente controlado por até 90 dias.
— É onde ele vai sofrer toda a transformação e perder todo aquele odor forte do alho normal. Toda semana, nós adicionamos uma quantia mínima de água para que ele se mantenha pastoso, ele não pode ficar um alho duro e seco — explica Felipe.
Segundo a nutricionista Paloma Tusset, além do alho ficar com o sabor mais suave e adocicado, há também uma potencialização dos benefícios do alimento. A concentração de flavonoides aumenta de três a quatro vezes. A capacidade antioxidante pode ser até oito vezes maior.
— Esses compostos ativos melhoram nossa capacidade cognitiva, nossa recuperação depois de viroses e melhoram a resposta do nosso sistema imunológico.
Além disso, a nutricionista também destaca que é uma alternativa para pessoas que não tem o hábito de consumir alho no dia a dia:
— Por ele ser mais saboroso, as pessoas conseguem consumir uma quantidade maior nas preparações. Além disso, quem sofre com refluxo ou gases ao comer o alho cru, pode optar pelo alho negro. Ele passa por um processo de pré-digestão de carboidratos durante o envelhecimento, e por isso, não causa mal-estar — aponta Paloma.
O que não é tão saboroso é o preço: o quilo do alho negro custa quase dez vezes mais que o quilo do alho normal. Mas o diferencial do produto vale a pena, tanto que Gilmar e Felipe vendem em média 50 quilos por mês.
O alho negro não foi a primeira "loucura" da família de produtores. Em 1994, diante de uma crise na venda de uvas, Gilmar assistia ao Globo Rural quando decidiu investir em uma cultura alternativa aos parreirais: cogumelos.
— Era uma reportagem sobre um porão onde eram produzidos. Era uma vontade que tinha de fazer algo diferente, e a situação das parreiras estava feia na época. Fui a procura, fiz parceria com professores e pesquisadores da região que tinham interesse. Eles queriam produzir cogumelo com bagaço de uva. Fui testando e aprendendo na prática, mais de 10 anos para entender e aprender sobre a cultura — conta o produtor.
Foi em 2005 que os cogumelos viraram a principal cultura de Gilmar. Hoje, pai e filho produzem mais de uma tonelada de cogumelo Shimeji por mês. A produção é vendida, quase que na totalidade, para restaurantes. Os principais clientes são casas de sushi.
— Tem alguns empórios que vendem a granel, mas 85% da nossa produção vai para o sushi. Abastecemos toda a região. Em Bento Gonçalves, todos os restaurantes japoneses compram da gente. Mas também vendemos para Monte Belo, Caxias, Carlos Barbosa e Garibaldi. É um mercado que está crescendo, despertando interesse e, aos poucos, estão aparecendo outros produtores na região. Mas, o pioneiro foi meu pai — relata Felipe.
— E me chamavam de louco (na época) — brinca Gilmar, que duas décadas depois, resolveu inovar novamente.
— O alho negro foi uma sugestão de um dono da pizzaria de Bento Gonçalves. Ele buscava um fornecedor, me interessei e fui atrás.
Esta relação próxima com restaurantes e pizzarias continua. Um dos clientes da De Costa Cogumelos e Alho Negro é a Rodapizza Giordani, que há 39 anos é referência em Caxias do Sul.
— Conheci em uma exposição nos Pavilhões (da Festa da Uva). Fiz contato pelos cogumelos e me contaram do alho negro. Decidi tentar os dois produtos juntos e a receita deu muito certo — conta Milton Giordani, 53, que há dois anos tem a pizza de alho negro e cogumelos como um diferencial no seu rodízio.
— É algo incomum, mas um sabor muito interessante. Porque é alho, mas não está sentindo o gosto de alho. É um sabor completamente novo, levemente adocicado, mas ainda temperado como pizza salgada. O cogumelo parece que recebe um molho e fica uma cor muito mais bonita.
Além de ser uma descoberta para a maioria dos novos clientes, a pizza é uma referência para os públicos vegetariano e vegano. Giordani destaca a aceitação do sabor exótico e conta que há muitas pessoas que os visitam só para comer esta pizza.
— É semelhante a reação que eu tive, pois eu também não fazia ideia do que estava comendo. Se não tivesse visto antes, não acreditaria que era alho. É completamente diferente. E, para nós, é ótimo ter estes produtores. Fica fácil de comprar, o produto é melhor, é próximo e tem esta identidade. Sou muito adepto ao bairrismo, apoiar nossos produtos. Estamos no meio de muitas coisas boas — exalta o empresário.
Agricultura familiar que faz a diferença nos pratos do chef
A agricultura orgânica é um mercado em ascensão que possibilita novos negócios. Foi este nicho que a família Carraro decidiu explorar, aproveitando o silêncio e belezas naturais de Monte Alegre dos Campos, município de pouco mais de 3 mil habitantes que fica a 30 quilômetros de Vacaria. A propriedade conta com uma agroindústria, um restaurante orgânico e um hostel em construção para desenvolver o turismo ecológico. O carro-chefe continua sendo a plantação orgânica.
— Este público que se preocupa com alimentação saudável, além de vegano e vegetariano, até por meio dos restaurantes, tem muitas demandas. Fizemos esta parceria com nutricionista que nos apontam alimentos mais benéficos para a saúde. Nossa estratégia é diversificar (a produção) e depois encaixar no mercado — conta Antenor Carraro Júnior.
A propriedade fica a 4,3 quilômetros, por uma estrada de chão, da parte urbana de Monte Alegre. O início, como é tradicional na região, foi com o pai, José Carraro, produzindo milho, feijão e trigo, além da pecuária. A mudança veio a partir dos estudos do irmão de Antenor, Marcelo que foi se especializando na agricultura orgânica e criou contatos neste potencial mercado.
A diversidade de produção foi aumentando na década de 1990, até que, em 2003, foi inaugurada a agroindústria para beneficiar os produtos. No pomar da propriedade, há 31 árvores nativas e frutíferas, com sabores não tão comuns em mercados, como a uvaia, guabiroba e guabiju. No campo, a maior produção é de cebolas, tomate e feijão, também com diferentes tipos e sabores, com destaque para o feijão azuki, uma variedade japonesa pequena e vermelha que possui propriedades diuréticas, além de alto valor nutritivo.
Estas opções surgem de culturas e sabores são dicas de nutricionistas e estudantes de agricultura. Foi em uma dessas conversas também que, mais recentemente, a família conheceu o tupinambo, um tubérculo também conhecido como alcachofra-de-jerusalém ou girassol-batateiro. O alimento era comum entre povos indígenas brasileiros, mas foi exportado e conquistou a Europa ao mesmo tempo que era esquecido no Brasil. Agora, a gastronomia contemporânea está redescobrindo o tupinambo nacionalmente.
— Faz uns dois anos que começamos a plantar, depois de receber um material do pessoal de orgânico de Ipê, já motivada pela procura destes chefs. Estamos no início ainda, conhecendo a produção e o mercado, mas já conseguimos colher uma tonelada por safra. É cultura que produziu muito bem na nossa região — aponta o agricultor.
A plantação acontece em outubro. No início do ano, aparecem as flores amarelas, que Antenor compara com girassóis. A colheita começa em abril. Cada planta dá de três a cinco quilos de tupinambo. O preço vendido pelos produtores é de pouco mais de R$ 10 por quilo.
— A procura vem de restaurantes e lojas de produtos naturais. Temos por referência estas centrais de produtos orgânicos e vendemos para a Serra e Porto Alegre. A maior parte, cerca de 70% da produção, é enviada para São Paulo — explica Antenor.
O tupinambo produzido nos Campos de Cima abastece cozinhas renomados da Serra, como as do chef Rodrigo Bellora.
— O tupinambo é batata com um sabor incrível. O processo é bacana, porque é depois de uma certa temperatura que adquire sabor de alcachofra. É possível fazer farinha, o que rende diversas massas, um creme, fritar, é um alimento muito rico que dá várias opções — exalta.
Proprietário do Valle Rustico, de Garibaldi, do Guaraipo Bar e Cozinha, em Farroupilha, e do Tubuna, em Bento Gonçalves, o chef Bellora é reconhecido pelo que o próprio denomina de cozinha de natureza.
— Sou um grande apaixonado por ingrediente. Ver como é feita e produzida a cultura e como isso irá refletir lá no final, no prato do cliente. Essa filosofia de trabalho que desenvolvi está neste resgate de costumes antigos. É muito importante sabermos como se fazia para criar um futuro conhecendo o passado, e não pisando em cima da cultura que tínhamos apenas para ter algo novo.
Foi por esta proposta que Bellora transformou a colônia da família, no Vale dos Vinhedos. Na propriedade, onde fica o restaurante Valle Rustico, o chef produz abelhas, porcos moura, árvores frutíferas e mantém uma horta variada. Além de um hobby, a intenção é conhecer cada alimento e suas etapas. Na mesma filosofia, ele criou uma rede com cerca de 100 produtores locais para encontrar os ingredientes frescos para os seus pratos.
— A maior importância desta busca por produtor não é porque orgânico é uma "modinha", uma tendência, é porque é o melhor sabor. É um sabor completamente diferente e que faz muito sentido para mim. Não precisaríamos nem divulgar que trabalhamos com orgânico, porque é perceptível no resultado final (servido ao cliente). É um gosto completamente diferente — destaca o chef, que estima servir mais de 90 mil clientes por ano.
Bellora aponta que a pandemia aflorou ainda mais a valorização dos produtos locais. Algo que ele já fazia há 15 anos, participando de feiras, visitando produtores e trocando ideias com esta rede formada por quem valoriza a comida orgânica.
— Variedade é tudo (na gastronomia). O interessante é trazer outros sabores, muitos e diferentes. Há produtores que converso só uma vez por ano, que vai me entregar um determinado produto na época da safra. Outros que falo o ano inteiro, que são centralizadores da sua região. É algo natural e que também preciso para alimentar toda esta necessidade (dos restaurantes) — afirma.
Outro ponto destacado pelo chef é a importância destes produtos para o turismo regional. Ele lembra que o suco de butiá é um dos maiores sucessos nos cafés da manhã dos hotéis. O alimento, que para os gaúchos pode ser banal, agrada quem vem de fora.
— Em uma viagem, tudo que o turista quer é conhecer o sabor daquela região. E, nós, vivemos numa região privilegiada. Temos muitas coisas legais na nossa região, algumas culturas que até que ainda precisam desenvolver a produção. Frutas incríveis no nosso estado e que muitas pessoas nem conhecem — afirma Bellora.