Contrariando as expectativas até dos mais otimistas, o setor nacional de vinhos não sofreu os impactos da pandemia de coronavírus e teve um excelente primeiro semestre, com aumento nas vendas de 66,4% em relação ao mesmo período do ano passado. Entre abril e junho, os meses iniciais da pandemia, acréscimo foi maior ainda na comparação com os mesmos meses de 2019: 86,4%. As informações são da Associação Brasileira de Sommeliers do Rio Grande do Sul (ABS-RS) com base nos dados do Cadastro Vinícola, mantido por meio de parceria entre a União Brasileira de Vitivinicultura (Uvibra), Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e Secretaria de Agricultura do Rio Grande do Sul.
— É um fato que surpreendeu a todos. Quando tivemos a notícia da pandemia, em março, esperávamos algo negativo. Sentimos que o confinamento fez com que as pessoas aderissem a uma bebida, que poderia ser outra, mas, no caso, foi o vinho — comenta Deunir Argenta, presidente da Uvibra.
O crescimento dos nacionais em relação aos importados também foi maior. A comercialização dos vinhos de fora aumentou apenas 8% no primeiro semestre, possivelmente por causa do dólar mais alto. O brasileiro consumiu no segundo trimestre do ano, conforme a Ideal Consulting, 2,81 litros de vinho per capita, um crescimento de 72% em relação ao primeiro trimestre. O número é considerado um recorde para a indústria que historicamente registrava consumo inferior a 2 litros per capita.
Apesar do bom desempenho, Argenta prefere tratar com prudência os números até então positivos. Ele destaca que, em relação ao primeiro semestre de 2016, um dos melhores períodos dos últimos anos para as vinícolas, o aumento nas vendas de vinhos brasileiros é de apenas 8,3%. No período da pandemia, também comparando com o segundo trimestre de 2016, o incremento foi de 17,7%.
— Não sabemos como será o comportamento do consumidor daqui para frente. Por isso, é preciso muita cautela para não criar euforia no setor. Acredito que, quando tudo passar, devemos voltar aos números anteriores — diz o presidente da Uvibra.
Além disso, a maior fatia do mercado ainda é dos rótulos importados: 84%. O produto nacional fica apenas com 16% das vendas no Brasil. Considerando também os vinhos de mesa, os importados têm 27% do total vendido no país.
"Grande oportunidade para o vinho brasileiro"
O aumento tão expressivo no consumo de vinho é explicado pelo fato de que as pessoas foram obrigadas a ficar em casa devido às medidas de distanciamento. Com mais tempo para preparar as próprias refeições e sem preocupações como dirigir após o happy hour ou jantar, por exemplo, acabaram elegendo o vinho como bebida companheira na pandemia. E quem já consumia o produto antes, aumentou a frequência durante a semana.
— O vinho é uma bebida intimista, para beber em casa, em casal ou em poucas pessoas. O pessoal começou a fazer comida em casa, e o vinho é a bebida que mais combina — acrescenta Orestes de Andrade Jr., presidente da Associação Brasileira de Sommeliers do Rio Grande do Sul (ABS-RS).
Além de maior consumo, os apreciadores de vinho passaram a buscar mais informação sobre a bebida. A própria ABS dobrou o número de seguidores em uma de suas redes sociais, o que prova o interesse despertado nos últimos meses.
— Tenho certeza de que esse movimento vai continuar. A entrada no mundo do vinho é sem volta. Quem passou a beber vinho não vai deixar de consumir. É uma grande oportunidade para o vinho brasileiro — complementa Orestes.
Comemorando, mas com os pés no chão
O medo e as incertezas com o avanço do coronavírus, em março, foram inevitáveis na Vinhos Viapiana. Logo que a pandemia chegou e impôs restrições, a direção da vinícola de Flores da Cunha se apressou em lançar um novo produto, como estratégia para evitar a temida queda nas vendas. Com o passar das semanas, os proprietários perceberam que a situação não era tão ruim assim. Pelo contrário. Em vez de prejuízo, viram aumentar em 50% a comercialização de vinhos entre abril e junho.
A confraria da empresa também ganhou novos membros neste período. Passou de 3 mil para 3,5 mil pessoas interessadas em receber novidades e promoções da vinícola.
— A gente está comemorando, mas com o pé no chão, porque uma hora vai começar a bater a crise bem forte. E vai nos afetar. Vamos seguir com os lançamentos até o final do ano e inaugurar a parte nova da vinícola, destinada ao turismo, com cave maior, degustação e novos passeios. Vamos também abrir o restaurante às sextas, sábados e domingos (hoje atende apenas grupos) — conta Débora Molinari Viapiana, diretora de Marketing e Relacionamento e sócia-proprietária da vinícola.
A Viapiana tem 33 anos de mercado e produz, desde 2015, somente vinhos finos — antes fabricava vinho de mesa também. As vendas externas representam 90% do faturamento da vinícola. Os outros 10% são das atividades enogastronômicas e enoturísticas desenvolvidas — que tiveram queda de 60% nestes meses de pandemia. A produção anual é de 120 mil garrafas de vinhos e espumantes.
Os espumantes, aliás, tiveram menor saída, segundo os números do setor. Hotéis tradicionais do Rio de Janeiro e de São Paulo, que compram espumante da Viapiana, ainda não fizeram pedido para as festas de final de ano, conta Débora:
— Até por isso vamos comprar menos uva branca para o próximo ano — diz ela.
Espumantes em queda
Enquanto se comemoram os bons números do vinho, o espumante não dá motivos para brindar. A venda da bebida no primeiro semestre teve uma queda de 26,2% em relação ao mesmo período de 2019. Na comparação com 2016, a diminuição foi semelhante: 27,3%. Entre abril e junho, a queda foi ainda maior: 39,7% em relação ao mesmo período de 2019, e 38,7% se comparado a 2016.
— O espumante é uma bebida mais festiva. É para eventos, casamentos, formaturas, que não estão acontecendo — explica Orestes de Andrade Jr., presidente da ABS-RS.
Já os espumantes moscatéis registraram um pequeno aumento nos primeiros seis meses do ano, de 1,7% em relação ao mesmo período do ano passado. Porém, durante a pandemia, entre os meses de abril e junho, também teve queda de 5,2% em relação ao mesmo período do ano anterior. Para Argenta, dificilmente os produtores conseguirão reparar as perdas.
— Os espumantes estão estocados nas vinícolas. Não tem como recuperar, porque o volume que se perdeu é muito grande. Depende muito do que vai acontecer, se virá a vacina logo, se as pessoas poderão sair para festejar o final do ano — analisa o presidente da Uvibra.
Marca de espumantes de Bento tem crescimento
Nem todos os fabricantes de espumantes amargaram perdas durante a pandemia. A Amitié, marca de Bento Gonçalves, registrou crescimento de 53% de janeiro a julho. Um resultado surpreendente, diante da queda de 26,2% do setor.
— É resultado das ações que fizemos no Dia dos Namorados, Dia das Mães e do novo lote do espumante Nature — explica Andréia Gentilini Milan, sommelier e sócia da Amitié.
Somente em maio, 700 garrafas foram vendidas, o que representa 25% do lote anual. A expectativa é de manter as boas vendas no segundo semestre — historicamente, há uma concentração da comercialização neste período por causa das festas de fim de ano —, e o projeto da empresa é crescer 50% em 2020.
— Foi feito um trabalho forte nos pontos de venda. Teve novidades, como a tampa de um dos espumantes lançados em março, que é um pingente. As pessoas querem coisas diferentes — diz Juciane Casagrande, enóloga e sócia da Amitié.
A marca também investiu ainda mais no e-commerce e apostou em lives com lojistas nas redes sociais para se aproximar dos consumidores.
— O grande segredo é se reinventar, estar presente. Tem que ser criativo — destaca Juciane.
Entre os principais mercados da Amitié estão Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília.
"Está sendo um ótimo ano para o vinho"
Na Cooperativa Garibaldi, as vendas chegaram a cair em março e abril, mas em maio o cenário melhorou, e a comercialização de vinhos de mesa subiu 15%; já os vinhos finos registraram aumento de 30%. O crescimento é atribuído a um conjunto de fatores, como a necessidade de cumprir a quarentena durante o inverno (a bebida combina com o frio).
— Também tem a questão que a fronteira está fechada, o que inibe o contrabando — acrescenta Oscar Ló, presidente da cooperativa.
Já o espumante teve queda de 10% na Garibaldi. No entanto, a expectativa é de retomada, já que o segundo semestre costuma concentrar o maior volume de vendas:
— O espumante retraiu porque os eventos pararam. Mas acreditamos que vai recuperar.
A última safra que chegou à cooperativa foi de 20 milhões de quilos de uva, e metade foi usada para a produção de suco de uva. A outra parte foi destinada para vinhos e espumantes. A Cooperativa Garibaldi prepara para o próximo mês lançamentos na linha de espumantes na tentativa de recuperar as perdas.
— Tirando o susto inicial e a preocupação com a saúde das pessoas, está sendo um ótimo ano para o vinho — resume Oscar Ló.
Expectativa de crescimento de 10% no faturamento
Mesmo com queda na venda de espumantes, a Salton, empresa centenária de Bento Gonçalves, fechou o semestre com crescimento de 20% em seus produtos. O aumento foi puxado, claro, pelo vinhos, que apresentaram desempenho bem acima da média no setor. No último bimestre, a comercialização atingiu um pico de 40%.
— Das mudanças percebidas desde o início da pandemia, destacamos principalmente o comportamento em relação ao canal de consumo. De um lado, a queda das vendas no canal on-trade, de bares e restaurantes, e do outro, o aumento nos canais de venda online e supermercados. Passamos a sentir, nesse momento, também os movimentos sazonais de consumo. Com a chegada das temperaturas mais baixas, percebemos uma ligeira queda na procura por espumantes e vinhos brancos. Entretanto, o vinho tinto tem sido ainda mais procurado pelo consumidor, que passa a consumi-lo em casa — avalia a diretora executiva da vinícola, Luciana Salton.
Para se manter competitiva no mercado, a empresa, segundo ela, manteve a política de preços, apesar do aumentos dos custos e da demanda. Além disso, fortaleceu parcerias com clientes, responsáveis pela distribuição e comercialização dos produtos ao consumidor final. E em julho, ativou a campanha “Valorize o Vinho do Brasil” para incentivar o consumo de rótulos não apenas da Salton, mas produzidos por vinícolas brasileiras.
— É muito difícil traçar uma projeção em meio ao cenário atual. No segundo semestre, contávamos, até então, principalmente com a demanda de espumantes nas festas e eventos, que ainda não temos perspectivas se ocorrerão e como ocorrerão. Trata-se de um ano atípico no qual o crescimento, até esse momento, ocorreu através de oportunidades com a mudança do comportamento de consumo. São muitos fatores que influenciam nos resultados e, diante de tudo isso, esperamos um crescimento de 10% no faturamento em relação ao ano passado — destaca Luciana.
Em 2019, a Salton produziu 18,8 milhões de garrafas — entre espumantes, vinhos e bebidas não alcoólicas. A empresa encerrou 2019 com 36,8 milhões de garrafas vendidas e um crescimento de 17,5% no faturamento em relação ao ano anterior.
Degustação à distância
Se não é possível fazer degustações presenciais, com aglomeração, por que não levar a possibilidade para dentro da casa das pessoas? Pensando em como não deixar morrer neste período de pandemia a atividade pela qual são apaixonadas — e também para atender à demanda de quem ficou órfão das degustações —, as sommeliers Gabriele Negri e Patrícia Binz, de Caxias e Farroupilha, criaram o projeto Cave às cegas.
As duas enviam um kit para o cliente com três vinhos escolhidos por elas, sempre de pequenos produtores da região, para valorizar os empreendedores locais. As garrafas são embaladas de maneira a não revelar o conteúdo, já que a ideia é que o consumidor deguste sem saber de que rótulo se trata. Junto, é enviado um material com ficha de degustação com orientações e informações sobre os vinhos, além de sugestão de harmonização. Depois de preencher a ficha, é possível verificar o gabarito a partir de um QRCode.
— As pessoas estão dando mais atenção ao que têm em casa, estão cozinhando mais, harmonizando. E o kit é como um jogo, é uma atividade diferente, as pessoas passam a conhecer mais os vinhos — destaca Patrícia.
O projeto foi lançado em abril e dobra a quantidade de vendas a cada mês. Conforme Patrícia, a média mensal de comercialização gira entre 50 e 60 kits.
Aumento na venda online
As vendas pela internet têm sido a alternativa para as vinícolas e lojas especializadas neste período. Tanto que elas já alcançam 12% do mercado nacional, conforme a Ideal Consulting. Na Vinícola Miolo, por exemplo, somente em abril o aumento nas vendas online foi de 62% se comparado ao mesmo período do ano passado.
A marca já atua há oito anos com loja virtual e intensificou as ações para aumentar a representatividade do e-commerce, como uma nova plataforma e a oferta de kits que atendam à demanda do consumidor que está em casa. A empresa oferece frete grátis em todo o território nacional para compras acima de seis garrafas. A loja virtual disponibiliza todos os rótulos da vinícola — são 120 entre vinhos e espumantes. Os valores variam e partem de R$ 25.
AS VENDAS NA PANDEMIA
VINHOS
> As vendas de vinhos finos brasileiros cresceram 66,4% no primeiro semestre na comparação com os primeiros seis meses do ano passado.
> Entre abril e junho, o aumento foi de 86,4% em relação ao mesmo período de 2019.
> Vinhos importados cresceram 8% no primeiro semestre.
> Segundo a Ideal Consulting, cada brasileiro consumiu 2,81 litros de vinhos, em média, no segundo trimestre do ano, o que representa um crescimento de 72% em relação ao primeiro trimestre de 2020.
> O vinho fino brasileiro tem hoje 16% do mercado — era 12% no primeiro semestre de 2019.
> Os rótulos importados têm 84%. No ano passado, era 88%.
> O brasileiro compra menos de duas garrafas de vinho nacional a cada 10 adquiridas, sendo oito importadas.
> No mercado de vinhos (incluindo os finos e os de mesa), os importados têm 27% de tudo que é vendido no país — tinham 32% em 2019.
> Os vinhos finos brasileiros cresceram apenas de 4% para 5% do mercado geral.
> Os vinhos comuns tiveram acréscimo de 4% no total – a participação era de 64% do mercado em 2019.
ESPUMANTES
> Espumantes tiveram queda de 26,2% no primeiro semestre em relação ao mesmo período do ano passado.
> Na comparação com 2016, a diminuição foi semelhante: 27,3%.
> Entre abril e junho deste ano, a queda foi de 39,7% em relação ao mesmo período de 2019; e 38,7% se comparado a 2016.
> Os moscatéis registraram aumento de 1,7% nos primeiros seis meses do ano em relação ao mesmo período do ano passado.
> Já de abril a junho, os moscatéis tiveram queda de 5,2% em relação ao mesmo período do ano anterior.
E-COMMERCE
> As vendas pela internet já alcançam 12% do mercado nacional, conforme a Ideal Consulting.
Fonte: ABS-RS