O entrevistado desta semana da série “As crises que venci” é Julio Gilberto Fante, sócio proprietário da Fante Bebidas, indústria de Flores da Cunha responsável por 70% do mercado de exportações de bebidas do RS. Ele compartilha a experiência de quem está acostumado com as crises do setor. Mesmo quando ocorre uma supersafra, há possibilidade de crise pelos estoques abarrotados.
A crise financeira da família, com nove filhos, fez com que buscassem uma alternativa para obter maior valor agregado à produção, criando o próprio negócio. Mais adiante, a dificuldade de comercialização fez com que a empresa buscasse diversificar a produção, entrando no ramo de destilados.
A quebra de safra de 2016 foi apontada como a pior de todas. Foi preciso administrar preços para não perder o consumidor. Com a pandemia e a redução da colheita deste ano, o empresário, também presidente do Sindivinho-RS, destaca que o setor não pode cometer erros do passado, de transformar a redução de estoque em valores abusivos.
Em quase 50 anos de indústria, qual foi a primeira crise vivida e como foi superada?
A nossa família vem do setor vitivinícola que sempre teve muitas crises. Ora por problemas climáticos, ora por excesso de estoques, ora por problemas econômicos... Mas foi em uma crise que surgiu a empresa Fante, no final da década de 1960. Nossos pais eram associados de uma cooperativa e tinham uma produção muito pequena. Éramos em nove irmãos, o mais velho com 20 e poucos anos. Então decidimos formar uma empresa. Fui estudar no Colégio Carmo, em Caxias, num curso que chamavam de Comércio e seria o Técnico de Contabilidade hoje. Nesse início do curso, meu pai disse: “olha, Julio, você está cursando Comércio, está entendendo dos negócios e agora você passa a cuidar dos negócios da empresa”. Eu tinha 17 para 18 anos e continuo assim, 45 anos depois. Então, a primeira crise foi o momento de tomar a decisão de formar uma organização.
Em que outros momentos difíceis teve a responsabilidade da tomada de decisões?
Tivemos momentos que marcaram, como na metade da década de 1980, com crises grandes do setor, excessos de estoque, com concorrência muito forte. A gente já tinha uma organização, mas tínhamos uma dificuldade de manter o negócio funcionando com crescimento. E decidimos buscar alternativas fora da área vinícola, que pudesse engrossar o faturamento. Foi quando decidimos entrar com o mercado de destilados. Iniciamos com uma pequena produção, colocamos algumas marcas no mercado. Mais adiante, surgiu a possibilidade de assumir a operação de uma empresa tradicional fabricante de bebidas. Que tinha um excelente conceito, mas que passava por dificuldade financeira e de organização de sociedade. E eles não queriam mais continuar. Só que era um negócio muito grande e o nível de endividamento, principalmente tributário, era muito forte. Nós vimos um potencial de crescimento no mercado. Como também não tínhamos recursos para bancar, fizemos uma negociação, organizamos o setor de produção e começamos a trabalhar, em uma época do Plano Sarney, Plano Collor com congelamento de valores e outras dificuldades. Nessa organização toda, tivemos a participação familiar na distribuição das funções. E tivemos uma fatalidade, um familiar que assumiu a área comercial e faleceu em acidente e tive que reassumir a área comercial. Foram momentos difíceis, nós tínhamos concorrentes fortes que bateram na gente, mas, quanto mais batiam, mais forte ficávamos. Depois veio o Plano Real, e a gente já tinha uma capitalização boa e organizado a empresa. Acabamos adquirindo os ativos dessa empresa que tinha parado. E ela conseguiu pagar todas as suas dívidas tributárias. Nós saímos muito fortalecidos com a compra das marcas.
Flores da Cunha foi umas das cidades mais atingidas na quebra de safra de 2016. Esta foi a que mais marcou vocês?
A safra de 2016 foi a menor delas no tempo em que eu estou na operação e foi muito difícil, porque temos uma responsabilidade com toda uma cadeia de distribuição, até o consumidor. E essa cadeia precisava ser alimentada. Existe outra questão que é a estabilidade de preços. Não podemos abusar dos preços por conta de uma escassez, porque o consumidor acaba abandonando o produto. Nós acabamos adquirindo produtos do mercado, acima do preço normal, e absorvendo boa parte do custo dessa oscilação de preços para que não se perdesse o consumidor. Houve, sim, uma queda geral de vendas, mas não perdemos espaço.
Como está sendo lidar com a crise atual?
No setor de bebidas e alimentos, houve retração de consumo mas, depois, o fato de estar mais em casa, e até o recurso que o governo está liberando, ajudou no consumo, em especial dos vinhos. As vinícolas estão trabalhando plenas, até com crescimento. Mas espumantes sofrem por conta dos eventos. O suco está com o mercado um pouco retraído. Ainda assim, o setor tem sido beneficiado. O que preocupa é a quebra de safra, não podemos cometer o erro de 2016, de transformar essa pequena redução de estoques em valores abusivos. E a qualidade fantástica deve ajudar.
Qual é o principal aprendizado dessa e de outras crises?
Primeiro devemos gastar boa parte no nosso tempo no planejamento estratégico, estar preparados para o que vem pela frente. Pelas seguidas crises, a empresa precisa estar capitalizada. Precisa de equipes valorizadas e competentes. E sempre ter em mente a questão do “Se”... Se acontecer isso, o que faremos, para que a empresa não seja pega despreparada. A boa governança e a gestão transparente fazem parte do processo e a empresa precisa estar preparada para qualquer mudança. Sobre a crise atual, é a pior crise que nós já tivemos, porque envolve vidas, o medo, a angústia, o abalo até emocional, é uma questão muito difícil de ser administrada.