O primeiro caso de covid-19 foi confirmado em Caxias do Sul no dia 11 de março. A partir daí, transcorreu-se apenas uma semana, no dia 17 de março, para o enfrentamento efetivo da nova realidade. Foi o começo na prática do impacto da pandemia. Os 100 dias completaram-se na quarta-feira passada, dia 24. A gravidade da situação foi percebida de fato quando o fechar das portas se iniciou, inclusive para gigantes como Randon e Marcopolo, que anunciaram a interrupção das atividades no dia 20 daquele mês. No dia 23 de março, das janelas de suas próprias casas, caxienses viram ruas vazias, lojas fechadas e compartilharam o sentimento de preocupação. Foi nesse momento que a ficha caiu, uma ficha com peso de ouro para a economia.
Nesse período, muita coisa mudou. Mesmo sobre as medidas de restrições e isolamento, se antes a maioria concordava com elas, hoje praticamente tornaram-se tema de disputa política. O que permanece é a apreensão diante da incerteza se os 100 dias estão mais perto do início ou do fim da pandemia.
— Empresários reagiram bem no primeiro momento. Tiveram um pouco de resistência quando precisaram fechar o que não era essencial, mas imediatamente percebemos a união em busca de soluções para que as atividades pudessem voltar. É claro que neste momento o empresariado já está cansado, já não vê com bons olhos fechar, entende a necessidade, mas está numa encruzilhada, já esgotou os recursos que tinha — avalia a economista Maria Carolina Gullo.
Para ela, a pandemia deve durar pelo menos mais cem dias:
— Muita gente que nessa volta de bandeira (vermelha) jogou a toalha. Vamos ter quebradeira muito grande, não tem como, 100 dias e não tem nem previsão de voltar. Podemos falar tranquilamente em mais 100 dias, acho que está começando a atingir o pico agora. Estamos falando de tentar começar a melhorar lá por agosto, setembro...
Já para o diretor de Economia, Finanças e Estatísticas da Câmara de Indústria, Comércio e Serviços de Caxias (CIC), Astor Schmitt, a expectativa é de que o pior já tenha passado em abril, quando as interrupções mais duradouras afetaram em cheio a economia local, como apontou recente levantamento divulgado pela CIC: juntos, indústria, comércio e serviços apresentaram queda de 24,3% em comparação a março deste ano e 28,6% em relação a abril de 2019.
— O mês de abril pode ter significado o pior momento da pandemia, que foi quando o comércio ficou mais tempo totalmente fechado e a indústria, parada por férias coletivas. Pode ser que o pior, portanto, já tenha passado, alguns indicativos até já sinalizam boas projeções em maio. O empresário já passou por outras crises, aprendeu a ter resiliência — avalia Astor.
Nesta segunda-feira (29) devem ser divulgados novos números do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), que apontarão as movimentações do mercado de trabalho no mês de maio, o segundo mês cheio da crise.
POUCO OTIMISMO
Em nível nacional, as projeções são pessimistas. Em recente projeção, o Fundo Monetário Internacional (FMI) estima que o PIB brasileiro deve sofrer um recuo de 9,1% no ano.
Na visão do presidente da CIC, Ivanir Gasparin, a tendência é de que o cenário piore gradativamente, tanto em razão dos efeito do prolongamento da pandemia, quanto do fim dos prazos das medidas do governo e das empresas, como suspensão de contratos de trabalho e adiantamento de férias. No entanto, a medida provisória do governo, a MP 936, foi aprovada pelo Congresso recentemente e deve vigorar até o final do ano:
— As consequências continuarão por bastante tempo. A estabilidade de emprego que as medidas garantiam estão se esgotando, então o pior pode estar por vir. E a doença preocupa com o inverno. Chegamos bem nos 100 dias, mas o futuro é incerto. Conseguimos segurar a curva porque fechamos nossas empresas no início, mas em termos econômicos é uma situação muito desconfortável e estamos tendo que trabalhar com cenários de muito curto prazo.
Resistência
"Imagina um restaurante nesta condição há três meses, um salão de cabeleireiro? Não tem como não sucumbir." Maria Carolina Gullo, economista
Indústria ainda conseguiu manter a produção
Entre os três principais setores, a indústria foi a que conseguiu maior estabilidade no período, podendo manter as operações com restrições, mas preservando a produção em certa proporção. Ainda assim, para fábricas de pequeno e médio porte, qualquer limitação pode comprometer a produção, segundo a economista Maria Carolina Gullo:
— Para algumas indústrias, operar com 50% e 75% da capacidade é um desafio muito grande, pois cada trabalhador tem uma função e, se retirar um, amputa o funcionamento operacional dessa linha de operação. Porém, de alguma forma, todos estão conseguindo se adequar, fizeram investimentos, inclusive de forma criativa, para continuar funcionando — destaca.
Já Paulo Spanholi, presidente do Sindicato das Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de Caxias do Sul e Região (Simecs), atenta para a preocupação diante de retomada de restrições mais amplas para o setor.
— Sofremos com a troca de bandeiras, que segue a metodologia desenvolvida pelo governo estadual. Entendemos que é uma medida necessária para impedir o colapso na saúde, no entanto, essa ação resulta em impactos graves para as nossas empresas, principalmente para as menores — pontua Spanholi.
O Simecs não tem números de perda de faturamento, queda da demanda e demissões no segmento. Embora a expectativa seja de uma retomada mais efetiva nos próximos meses, ele ressalta que a recuperação plena deve demorar:
— Temos a expectativa de que a retomada comece a se desenhar no próximo trimestre. Porém, sabemos que a instabilidade do cenário não nos deixa ter muita clareza. O fato é que a recuperação será lenta e de maneira gradual.
Apesar de a indústria ser o setor em situação mais "confortável", nos 100 dias de pandemia já foram demitidos mais de 3 mil trabalhadores, de acordo com o Sindicato dos Metalúrgicos.
— Perdemos mais de mil empregos por mês nesses 100 dias. E nessa conta só entram trabalhadores com pelo menos um ano de empresa, que são os que passam pelo sindicato — explica Assis Melo, presidente da entidade.
Atualmente, 60% das empresas aderem a pelo menos uma das medidas da MP 936.
Primeiros a entrar, últimos a sair
Diferente da indústria, para comércio e serviços, o dia seguinte é uma dúvida a cada fim de expediente. Isso para quem já foi liberado desde as paradas de março, o que não é o caso para alguns segmentos de serviços.
— Na maioria das crises, costuma-se dizer que os serviços acabam sendo o ultimo setor a entrar e, consequentemente, o último a sair. Neste caso, o setor foi impactado de imediato. Alguns segmentos estão interrompidos desde 18,19 de março. Enquanto indústria e comércio conseguiram voltar com mais solidez, os serviços boa parte não — avalia a vice-presidente de Serviços da CIC, Maristela Chiappin.
Empreendimentos ligados a turismo, eventos, escolas e transporte escolar são alguns dos serviços ainda atingidos em cheio. Por outro lado, alguns segmentos se projetaram como oportunos no cenário de pandemia, caso de áreas de higienização, sanitização, informática, contabilidade e protocolos de seguranças, por exemplo.
Serviços também são constituídos por parcela significativa de micro e pequenas empresas, que acabam sofrendo mais pelo menor capital de giro.
— As micro e pequenas não têm muito fluxo de caixa, capital de giro, e tem alguns segmentos que foram muito impactados e não vão voltar agora, como turismo e eventos, que serão os últimos. Também sofreram impacto grande pela burocracia para conseguir empréstimos, os juros são muito altos e às vezes inviabiliza. Muitos pegaram empréstimo com a família, porque acabou sendo mais fácil — comenta a presidente da Associação das Empresas de Pequeno Porte da Região Nordeste do RS (Microempa), Luíza Colombo Dutra.
Acesso a crédito
Pesquisa recente da Microempa apontou que um terço das empresas da Serra associadas à entidade buscou empréstimo em função da pandemia e que apenas 21% obteve aprovação de crédito.
Comércio é o mais impactado
De acordo com a Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL), o período de 100 dias resultou em prejuízos superiores a R$ 186 milhões e fechamento de mais de 1,2 mil empregos formais em Caxias. No total, as lojas ficaram fechadas por 34 dias (27 dias entre março e abril e uma semana em junho) e, mesmo com a retomada parcial, as vendas continuaram reduzidas, afirma o presidente da CDL, Renato Corso.
— Os relatos de empresas que estão decidindo encerrar as atividades são cada vez mais constantes, especialmente aquelas que já estavam em situação financeira delicada. Estas, infelizmente, podem não sobreviver — lamenta Corso.
Embora a pandemia se anunciasse mundialmente, ele afirma que os empresários não esperavam que fosse impactar da forma que afetou o país. Por outro lado, Corso destaca que o sufoco serviu para que empresas colocassem em prática ações de inovação aos seus negócios.
— Após o primeiro momento de choque, muitas mudanças começaram a ser colocadas em prática, como atendimento digital, delivery intensificado, take away (pegue e leve) e outros modelos que antes não faziam parte do cotidiano. A dificuldade e a crise serviram de incentivo para a reinvenção e a inovação. Algumas iniciativas serão temporárias, mas outras servirão de base para a superação da recessão econômica e farão essas empresas mais fortes — destaca.
Corso é pessimista quanto aos efeitos dos riscos de fechamento total, caso haja avanço da pandemia:
— A pandemia só deve ir embora em definitivo lá pelo fim do ano ou início de 2021. Já temos consciência de que vamos ter que conviver com este vírus. Mas, num cenário de lockdown, apenas aqueles segmentos ditos como essenciais terão capacidade de manter suas empresas. Para os demais, será necessário rever absolutamente tudo.
LIÇÃO PARA O FUTURO
O despreparo para lidar com cenários imprevistos é um dos aspectos apontados por Corso.
— Há uma deficiência em Caxias: trabalhar com foco em inovação de forma mais assertiva, mais preparados para as vendas online e com respostas mais rápidas em situações de crise.
BANDEIRA VERMELHA
A Serra está voltando à bandeira vermelha, conforme anunciado pelo Governo do Estado na sexta-feira. A decisão precisa ser oficializada hoje, para vigorar amanhã. A consequência é o comércio fechado outra vez, com mais prejuízos ao setor.
Faturamento cai para a metade nas grandes
Para as maiores empregadoras de Caxias do Sul, Marcopolo e Randon, os impactos maiores foram observados no primeiro mês cheio da pandemia, mas já apontam para uma estabilidade.
— Em abril, tivemos queda de 52% na receita líquida, se comparado ao mesmo período do ano anterior. Porém, já é possível perceber um sinal de recuperação no mês de maio, quando tivemos uma queda menor na receita líquida da companhia, de 29%, também comparando com o mesmo mês de 2019 — relata o vice-presidente executivo das Empresas Randon e presidente da Fras-le, Sergio Carvalho.
Carvalho atribui os prejuízos minimizados ao modelo de negócio diversificado do grupo.
Já o diretor do Negócio Ônibus da Marcopolo, Rodrigo Pikussa, conta que o faturamento da empresa reduziu pela metade no período. O turismo parado, deslocamento interestadual proibido e redução de frotas de transporte afetaram diretamente o sistema de mobilidade, para o qual a empresa produz.
Com a redução de produção em 50%, ele afirma que a carteira de pedidos pode ser alongada até o fim do terceiro trimestre e, para o final do ano, a Marcopolo já prospecta novos negócios:
— O nosso objetivo é seguir no mesmo ritmo e quem sabe aumentar um pouco até o final do ano, retomar mais forte no quarto trimestre.
Pikussa também explica que a empresa conseguiu se preparar com antecedência porque vivenciou a pandemia na fábrica da empresa na China:
— Antes de termos casos em Caxias do Sul, já tínhamos contratado assessoria na parte de infectologia, feito treinamento com gerentes, já tínhamos plano de ação. Talvez tenhamos sido a primeira empresa que decidiu parar, mas isso porque já estávamos bastante seguros. Óbvio, não foi fácil, mas não foi caótico, porque já tínhamos muitas informações, já tínhamos plano mesmo antes dos primeiros casos. Não nos tomou de surpresa.
AÇÕES DO GOVERNO
Além da severa turbulência política para o momento de pandemia no âmbito do governo federal, a condução do governo no período é contestada. Entre as medidas anunciadas, as que oferecem socorro financeiro mais imediato a trabalhadores e empresas se enredam para ser efetivas, e os recursos demoram a chegar na ponta. Assim, uma retomada da economia acaba atrasada. Confira algumas das medidas:
> Medida Provisória (MP) 936: suspensão do contrato de trabalho e da redução de salário e jornada na pandemia.
> Auxílio emergencial de R$ 600. O presidente Jair Bolsonaro anunciou prorrogação do auxílio.
> Adiamento contribuição de empresas para o PIS/Pasep e Cofins.
> Prorrogação de prazos de impostos para o Simples Nacional.
> Pacote de R$ 43 bilhões da Caixa incentiva setor imobiliário.
> Crédito especial e dívidas prorrogadas para produtores rurais.
> Caixa Econômica Federal e o Sebrae dispõem de linha de crédito de R$ 7,5 bilhões para micro e pequenas empresas (MPEs) e microempreendedores individuais (MEIs).
> MP 960, que prorroga por um ano o prazo para exportações em regime drawback (com suspensão ou eliminação de tributos de insumos importados).
> R$ 5 bilhões em financiamento ao turismo.
> Programa Emergencial de Acesso a Crédito a MPEs.
OUTROS SEGMENTOS
CONSTRUÇÃO CIVIL
"A gente teve impacto, mas continuamos com liberação de 75% e sentimos que há negócios acontecendo e tem procura. Diminuiu de 30% a 40%, mas tem muita coisa sendo prospectada." Rodrigo Postiglione, presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil (Sinduscon)
AGROPECUÁRIA
"Saiu mais ileso, a área do hortifrutigranjeiro e agropecuária não sentimos. Único prejuízo foi a seca e redução de venda para quem mandava para o centro do país, mas mesmo assim se recuperou." Valmir Susin, secretário municipal da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Smapa) de Caxias do Sul
SUPERMERCADOS
"Economicamente não foi impactado, teve despesas a mais com funcionários na porta, compras de máscaras e álcool gel, mas não impactou nos supermercados. Foi mantido faturamento de um mês normal." Eduardo Slomp, presidente do Sindicato do Comércio Varejista de Gêneros Alimentícios de Caxias do Sul
HOTÉIS, BARES E RESTAURANTES
Mais de 300 pessoas foram demitidas no período, de acordo com o Sindicato dos Trabalhadores no Comércio Hoteleiro, Restaurantes, Bares e Similares e em Turismo e Hospitalidade (Sintrahtur). Fechamento de um hotel em Caxias e de cerca de 15 restaurantes, segundo o Segh, o Sindicato Empresarial de Gastronomia e Hotelaria Região Uva e Vinho.
"O reflexo foi traumático para os trabalhadores. Depois que expirar o prazo de estabilidade, acredito que será quando o estrago será maior." Jair Ubirajara da Silva, presidente do Sintrahtur