Administradora de uma agência de viagens, Francine Luz, 37 anos, nunca almoçou tanto em casa na companhia do marido e da cachorrinha Nina como nos últimos dois meses. Ela trocou a sede da agência AGV Tur no bairro São Pelegrino por uma pequena sala no apartamento no Bela Vista. A empresa agitada de antes agora cabe em um computador e em um celular. Basta isso para negociar com o público, fornecedores e conversar com a sócia Jaqueline Boufleur.
Parece um luxo não precisar atravessar a cidade para abrir o escritório, mas o tão falado trabalho remoto ainda é cercado por incertezas. Francine sequer cogitava e obrigatoriamente adaptou-se ao novo jeito de gerenciar uma empresa que durante 12 anos sobreviveu de apertos de mão, do olho no olho, do cafezinho para agradar o cliente.
Não há estimativa de quantos empreendimentos se viram forçados a fechar as portas e transferir o escritório e funcionários para dentro de casa em Caxias do Sul, mas seriam muitos, especialmente aqueles em que as ferramentais digitais resolvem boa parte das tarefas. Pesquisa da Capterra, com abrangência nacional, indicou que 77% dos pequenos e médios empreendedores adotaram home office no início de abril, período de maior confinamento no país. Segundo o mesmo estudo, a grande maioria (42%) não considerava o teletrabalho anteriormente. A Capterra é uma plataforma de busca e comparação de softwares.
Na falta de dados em Caxias, são as histórias contadas pelos empreendedores que dão uma ideia de como está sendo essa adaptação. Uma avaliação informal da Associação das Empresas de Pequeno Porte da Região Nordeste do RS (Microempa) aponta que 90% dos empresários adotaram o home office num primeiro momento. Com a flexibilização do distanciamento social, a maioria retornou, mas dentro de um esquema em que parte da equipe atua em casa e a outra, na sede da empresa. A única certeza é que o regime de trabalho tem novos paradigmas.
A migração para o meio digital deveria fluir ao natural, mas o que se vê é insegurança sobre a aceitação do próprio consumidor, no caso em que o DNA da empresa é o contato direto com o público. O comércio caxiense não alavancou as vendas nos formatos online durante o período de fechamento muito provavelmente porque essa cultura era irrisória no âmbito de pequenas lojas. Mesmo que os debates abordassem o tema em excesso, a grande leva de negócios nasceu a partir da ótica presencial. Outros setores aprendem na prática.
SEM BICHO-PAPÃO
Francine é a cara do novo modelo de negócios entre as micro e pequenas empresas. Antes do coronavírus, por exemplo, empreendedores como ela não incluíam a alternativa no planejamento. Trocar o ambiente tradicional pela mesa de casa era assunto para depois. Na virada provocada pela crise, a empreendedora percebeu que não estava diante de um bicho-papão. Bastou adaptar a central telefônica ao celular e estabelecer regras. Tudo foi desenvolvido na intuição.
— Nos primeiros 10 dias, não rendia muito, até porque não sabíamos como lidar com a situação. A vantagem do home office é que você consegue fazer de qualquer lugar, não deixa de render. Também consigo estar mais perto de casa, consigo fazer refeições com o marido, o que era difícil antes. A desvantagem é que a disciplina tem que ser muito maior — compara Francine.
Apesar da experiência e da possibilidade de reduzir 50% dos gastos em custeio, a empresária e a sócia pretendem ocupar a sede assim que a pandemia arrefecer. Elas conseguiram diminuir o valor do aluguel por alguns meses.
— A gente até brinca que somos apegadas a nossa sede. No presencial, consegue lidar melhor com o cliente, mostra mais emoção, nosso trabalho é muito emoção, tu mostra um vídeo, explica, vende muito um sonho. É melhor do que mandar e-mail, WhatsApp.
Setor de serviços estaria se adaptando melhor
Para a Microempa, o trabalho remoto tem funcionado especialmente no setor de prestação de serviço. São 1,5 mil associados do segmento e a maioria, segundo a entidade, segue atuando pelos meios digitais. Em outros setores, ainda resiste o receio se o modelo dará certo.
— Muitos funcionários gostaram dessa forma de trabalho, e as empresas ainda estão na fase de avaliar. Muitas coisas não contam na legislação para quem tem funcionário, tipo se o computador a ser usado é o da empresa, quem pagará o gasto com a internet, com a energia. Isso tudo está no limbo — pondera a presidente da Microempa, Luiza Colombo Dutra.
A gestora cita que a reinvenção pelos meios digitais foi a tábua de salvação para muitos negócios.
— A maioria do setor de serviços teve que se reinventar e continua assim, como o marketing, as assessorias, as TIs e consultorias. Muitos viram que é um trabalho que pode ser feito. Outros optaram com parcela dos funcionários na empresa e parcela em home office. Pelos relatos, notamos que a produtividade não diminuiu — diz Luiza.
Consultora do Sebrae, Gilca Marchesan Bellaguarda lembra aos empreendedores que o consumidor foi forçado a entrar no mundo digital com a pandemia e gostou disso. Para ela, os setores que mais parecem se moldar ao trabalho remoto são os serviços, o varejo de moda, farmácias, mercados, o comércio de bens de uso diário, consultorias e eventos. Muitos empresários ainda não se deram conta que a migração é inevitável. Gilca cita o caso de um empreendedor que lidou a vida inteira com o atendimento presencial e, na pandemia, descobriu que a venda só ocorria em outro momento, após o contato com o vendedor. Ele decidiu ficar definitivamente em home office.
— O consumidor vai distribuir seu tempo de forma diferente, a tendência é o físico-digital. Como a empresa não vai abrir esse canal? Mas não é a mesma solução para todos. Precisa ver qual é o melhor, se são as redes sociais, o e-commerce. Mas é necessário trazer humanização para o digital, que facilite a vida do cliente, com soluções, facilitar o contato com a marca — indica Gilca.
Além de gerir os empreendimentos, os gestores também precisam coordenar as atividades dos funcionários a distância e exercitar a confiança. Funcionária de um escritório, a analista contábil Gisele Ramos Oliveira, 32, experimenta pela primeira vez o modelo de trabalho.
_ Trabalhar em casa é bom, é bem mais confortável. No meu caso, bastante coisa não precisa ser presencial, dá para fazer digital. Achei que rendeu mais o trabalho, não tem tanta distração, não é toda hora o telefone tocando, posso ficar mais à vontade em casa. Ficaria trabalhando assim por mais tempo bem tranquila _ avalia Gisele.
Home office abriu portas para consultoria de RH
Como uma empresa que depende da seleção de candidatos a emprego sobreviveria num momento em que as vagas de trabalho estão fechando e é desaconselhável manter contato pessoal em entrevistas? A resposta para a Desenvolver RH Consultoria em Gestão de Pessoas, com sede no Desvio Rizzo, surgiu por meio do home office. O fechamento temporário da sede física permitiu a abertura de outras possibilidades, mesmo na crise.
— A primeira coisa que se pensou: se abrir, colocava tanto pessoas que viriam aqui como quem trabalha em risco. Decidimos tomar a decisão independentemente das autoridades e fechamos. Não tem data para voltar e o resultado está até melhor — pondera Lisandra Galvão, sócia de Michele Rosa no pequeno negócio.
As entrevistas com candidatos a emprego são realizadas por videochamadas e não há risco de alguém faltar ao compromisso, o que era comum em dias de chuva, por exemplo. Ao mesmo tempo, Michele e Lisandra conseguem desempenhar outras atividades como palestras sem sair de casa. Uma vantagem foi a redução de despesas e o encurtamento de distâncias. Lisandra diz que, para atender um cliente em outra cidade, haveria o gasto com combustível. Hoje, isso não é necessário, e o próprio contratante acaba sendo beneficiado porque o custo é menor. Outro reflexo foi a aproximação com outras regiões. Quando o pensamento ainda era calcado nos contatos presenciais, ficava complicado prospectar novos negócios em regiões distantes.
— Abriu portas com a Região Metropolitana, no online não tem fronteiras, tem clientes de lá com interesse de agendar reunião. Isso é ótimo. Diminuiu o faturamento, é claro, recrutamento e seleção não está dando, então faz treinamento, coaching, palestra.
Outra facilidade que demandava tempo e processos burocráticos é a chance de poder ouvir um chefe de produção lá no meio da fábrica para que ele defina o perfil de colaborador que necessita.
— Ele pode indicar lá da fábrica qual é o perfil que precisa. Antes, teríamos de ir lá ou ele vir aqui. Percebe a diferença?
Lisandra diz que o formato será mantido até quando as empresas aceitarem.
— Em alguns momentos tem que ter o presencial. Mas humanizou as relações. Tenho uma filha de seis anos e atendia um cliente, por videochamada, que tinha sua filha de dois anos. Minha filha acordou, tive que pedir um minuto para atender. Dali a pouco, foi a vez da filha dele e ele teve que pedir a licença.
PESQUISA
2 em cada 5
43% das pequenas e médias empresas no Brasil tiveram que adotar novas tecnologias para trabalhar remotamente
1 em cada 4
25% dos pequenos negócios planejam comprar ou instalar novas ferramentas para otimizar o trabalho por esse meio.
1 em cada 2
54% dos que experimentam agora o home office pretendem seguir combinando a modalidade com a ida ao escritório após o fim da pandemia.
1 em cada 3
33% afirmam querer mudar para um regime completamente remoto.
1 em cada 2
55% dos trabalhadores de pequenos negócios hoje em regime de home office não costumavam trabalhar em casa antes da pandemia.
* No levantamento, o Capterra dizer ter ouvido 481 trabalhadores de todas as regiões do país entre os dias 3 e 4 de abril.
fonte: Capterra