Mais de 500 obras embargadas em Caxias do Sul nos últimos sete anos. É com esse histórico que Vanius Corte deixa a gerência regional do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A partir de segunda-feira, ele entrega oficialmente o cargo ao seu sucessor, o servidor administrativo Julio Cesar Goss. A mudança foi confirmada na quarta através Diário Oficial da União.
Funcionário de carreira do MTE desde 2005, Corte voltará para a função onde começou no ministério, a de auditor fiscal. Sua passagem como gerente foi marcada pelo rigor na fiscalização. Grandes empresas, como Marcopolo e Randon, e algumas das maiores obras públicas realizadas em Caxias, como a barragem Marrecas, foram embargadas por sua equipe. Nem mesmo eventos tradicionais, como a Festa da Uva e a Mercopar, escaparam de inspeção.
Corte reconhece que a atuação do ministério mexeu com os brios de parte da elite econômica caxiense e de empresários de fora que vieram investir no município. O auditor, que antes tinha sido procurador da prefeitura na gestão do petista Pepe Vargas (1997-2004), destaca que o papel da fiscalização é apenas garantir o cumprimento da lei.
Houve quem não entendesse esse argumento. A janela de vidro do escritório de Corte já foi alvo de inúmeras pedras, atiradas por pessoas enfurecidas pela fiscalização. Uma vez, até foram disparados tiros na direção da sala. Por sorte, ele não estava dentro no momento.
No entanto, não foram as ameaças que levaram Corte a se desligar da gerência regional do MTE. Ele pediu para sair do cargo por não concordar com o corte de verbas do ministério, a precarização das condições de trabalho e com a Reforma Trabalhista.
O que motivou sua saída da gerência do Ministério do Trabalho?
Comecei em outubro de 2010 (na gerência) e, de lá para cá, as coisas pioraram muito em termos de ambiente, de condições de trabalho. Hoje temos menos auditores fiscais do que tínhamos em 2010. Recebem-se cada vez mais demandas e aí tu não consegue atender muitas delas porque não há condições. Mês passado veio uma comunicação de que não podíamos mais sair de carro, porque não havia dinheiro para a gasolina. Temos que fazer milhões de coisas para poder conseguir executar, minimamente, o trabalho. Só que além disso, temos um Ministério do Trabalho que perdeu o protagonismo no âmbito nacional. O que é o ministério hoje? Já foi ocupado pelo Jango (João Goulart), era um dos ministérios mais importantes. Hoje o ministério está virado num cartório, só recebe documento, não faz politica pública e ainda ataca direitos dos trabalhadores com essa Reforma Trabalhista, que foi defendida pelo governo e pelo Ministério do Trabalho. Que não tem como defender. É absurda, ela desmonta a legislação trabalhista, contraria tudo o que se entende de defesa de diretos dos trabalhadores. Eu, saindo desse cargo, posso ficar à vontade inclusive para expor isso. Como sou servidor, auditor fiscal concursado, vou continuar trabalhando no ministério. Com mais liberdade de poder questionar e, inclusive, denunciar o desmonte do Ministério do Trabalho e da legislação trabalhista.
Quantos auditores o ministério tinha em Caxias e quantos têm hoje?
Quando eu entrei como gerente, nós tínhamos 18 auditores e agora temos 12. A cidade cresceu e reduzimos o número de pessoas que trabalham na fiscalização. Já é um primeiro problema. Em termos de equipamento, estamos sucateados. Na sala do lado tem um colega arrumando o próprio computador. Não temos dinheiro para a gasolina, para a manutenção dos veículos. Cada vez o ministério dá menos estrutura. E aí fica difícil. O ministério em Caxias pega 43 municípios, com uma estrutura cada vez pior e mais limitada. Essa semana ainda, nós tínhamos um colega em Brasília, que era responsável pela coordenação da fiscalização do trabalho escravo, e o ministro (Ronaldo Nogueira) resolveu afastar ele porque criticou a falta de recursos. Em outra área sensível nossa, o combate ao trabalho escravo, reduziram os recursos e a fiscalização. O governo (federal) atual parece se mostrar contra a fiscalização do trabalho escravo.
O senhor sofreu algum tipo de retaliação em função da sua posição ideológica ou por ter sido procurador do município durante a gestão Pepe Vargas (PT)?
Acho que na largada, sim. Porque foi bem no governo do Lula. Aí diziam que agora (naquele momento) a esquerda iria tomar conta do Ministério do Trabalho. Mas essa questão foi bem resolvida. Mantivemos uma relação muito boa no nível pessoal, mesmo com o setor empresarial mais conservador de Caxias. Sempre tivemos uma relação muito aberta, transparente e tranquila. Até com administrações (da prefeitura) passadas. Quando fazíamos interdições, como na Festa da Uva, diziam que era perseguição política. Depois se viu que não, tanto que na ultima Festa da Uva até na comissão eu estava. Desanuviou muito a tensão da questão politica. Mas existe uma pressão muito grande pela atividade que temos. Tu vai fiscalizar uma coisa e as pessoas reclamam, acham que tu não tem que fiscalizar. Existe aqui uma cultura de que a lei é opcional. Alguns empregadores entendem que podem ou não cumprir a lei. Não é isso. Nossa função é exigir o cumprimento da lei. E quando tu faz isso recebe criticas. Teve episódios em que houve pressão bem grande, por conta de fazermos fiscalizações que mexiam com interesses grandes.
O senhor ficou conhecido pelo rigor da fiscalização, seja com empresas ou obras do município. Quais casos o senhor destaca como os de maior repercussão?
Não teve nada em Caxias que envolvesse trabalho e fosse significativo que a gente não tenha dado pitaco. Exemplo recente é a UPA (Zona Norte). A prefeitura abriu a UPA, contratou uma empresa que está contratando os trabalhadores, no nosso ponto de vista, de forma irregular. Então, a gente não pode ver isso e achar que é normal. Independentemente de quem fosse o prefeito, nós estaríamos fazendo a mesma coisa. A construção da barragem Marrecas foi outra coisa que embargamos. Todas as grandes obras de Caxias nós estivemos presentes. É muita coisa. Em Festa da Uva, Mercopar fizemos coisas inéditas, como interditar máquina na feira antes dela ser vendida. Fizemos interdição na coleta de lixo, em todas essas atividades onde teve trabalho nós estávamos. E vai continuar. Não acredito que vá haver uma diminuição desse ritmo. Talvez o que mude é a visibilidade que se dê. Vamos continuar atuando, com o que nos resta. Mesmo com essa maldita reforma trabalhista que está sendo feita, a legislação continua. E essa legislação tem que ser cumprida. Recentemente fiscalizamos uma empresa de transporte rodoviário, encontramos 93 trabalhadores sem registro e recebendo seguro-desemprego. Demos uma focada nessas coisas mais significativas. E incomoda sempre. Mas se não incomodarmos, é sinal de que não existimos. Temos que estar incomodando, porque infelizmente a cultura do não cumprimento da lei é muito grande.
O senhor tem uma ideia de quantas obras embargou?
Muitas, centenas. Todas as obras significativas da cidade, privada ou pública, foram fiscalizadas. Qualquer coisa grande que tem em Caxias teve fiscalização. E, infelizmente, todas elas foram embargadas. Dávamos visibilidade para isso, até para mudar essa cultura. E isso aconteceu. Na construção civil, sentimos uma melhora muito grande nos últimos dez anos nas condições de trabalho e, inclusive, nas relações que temos com o próprio sindicato patronal.
Em algum momento o senhor sofreu pressões para resolver casos de obras embargadas?
Sim, muitas vezes tu recebe ligações de pessoas, representando alguém e querendo saber o que está acontecendo e perguntam o que podem fazer para resolver. Tu pode seguir o que está determinado, na hora que seguir o que está determinado, vai ser desembargada (a obra). As pessoas têm uma noção ainda de tentar fazer o jeitinho. Aqui, pelo menos, acho que ficou claro que não tem jeitinho. Ou tu cumpre o que está previsto na legislação ou não vai rolar.
E nesse jeitinho houve alguma tentativa mais clara de suborno ou intimidação?
Não. De intimidação, teve mais tentativa. Teve ameaça de morte: “vou te matar, porque vocês (ministério) estão me atrapalhando”. Até agora ninguém matou. E espero que agora que estou saindo ninguém mate (risos). Essa historia de tentativa de corrupção, a minha porta está sempre aberta. Quando eu sinto que alguém vem falar de um assunto, eu não atendo sozinho. Ninguém nunca propôs algo parecido. Eu não tenho essa coisa de encontrar depois das 10 da noite, como o (Michel) Temer faz. É aqui no ministério, de porta aberta, não tenho nada para esconder.
De quem veio a ameaça de morte?
Setor da construção civil, que é o mais... E não era nem uma empresa daqui. Foi um embargo a uma empresa de fora. Claro que a gente não identifica propriamente da onde veio, mas tu tem noção de que é muita coincidência. Aconteceu um fato aqui, tentaram fazer uma pressão por um lado e não deu, daí veio ameaça. Essa é uma delas, tem várias. No dia a dia tu sente. Tu entra num lugar para fiscalizar e ouve “tem que matar esses caras”. Na hora o cara está nervoso, tu desconsidera isso. De coisa séria, teve pedrada no vidro (da sala onde trabalha Vanius) algumas vezes. Deram um tiro no vidro, mas não tinha ninguém aqui, porque era de noite. Mas se tu te intimida por isso aí, não faz mais nada na vida. É mais blá blá blá. Se alguém tentou, não intimidou nem eu e nem algum dos colegas. Estamos fazendo a coisa correta, não estamos fazendo nada para prejudicar ninguém. Tu não embarga uma obra porque tu não gosta de quem está construindo. É porque tem uma legislação a ser seguida que não está (sendo cumprida). Como tu vai lá, como representante do estado, e diz que está ok? Se não está, tem que embargar. É obrigação nossa. Não é uma escolha.
Anos atrás, o ministério fez uma campanha de estímulo à segurança do trabalho. Que resultados conseguiram? As empresas ainda veem esse tema como algo secundário?
Não é nem secundário, é em 10º lugar. Foi uma área que pegamos forte, para tentar modificar a cultura da segurança do trabalho. Não conseguimos resolver como gostaríamos, mas a gente botou esse assunto na pauta da cidade. Hoje se fala mais disso que em algum tempo atrás. Tentamos criar um fórum permanente de segurança do trabalho, envolvendo poder público, sindicatos patronais e dos trabalhadores. Não deu certo. Segurança do trabalho não é uma questão ideológica. Tu não pode ser contra uma coisa que protege as pessoas. Mas tem uma resistência muito grande. É difícil lidar com isso e esse fórum não andou. Foi uma frustração. Teve um boicote grande de alguns setores que não quiseram participar. Na indústria metalúrgica, temos uma boa relação com o sindicato patronal, mas uma resistência muito grande das empresas.
Recentemente o senhor participou de uma reunião com outros ex-procuradores do município para abordar o caso Magnabosco. Se ainda estivesse na prefeitura, o que faria?
Eu acho que esse troço é um escândalo, do ponto de vista jurídico. Nunca vi coisa igual. Essa área, lá atrás, tinha sido doada para prefeitura pela família (Magnabosco), e a prefeitura devolveu para a família. Quando a prefeitura doou foi dada a quitação completa. A família deu quitação de tudo, não tem mais nada a reclamar contra a prefeitura. Isso lá atrás. Mas o município se eximiu naquela época. Aí 30 anos depois aparece uma ação dizendo que quem tem que pagar é a prefeitura. A prefeitura não era parte da ação. Eu acho que juridicamente está sendo feito o que precisa. Conheço os procuradores que atuam nesse processo. Desde que saí da procuradoria, sempre tive uma relação muito boa com o Lauri (Silva), que me sucedeu. Agora quem cuida é Ana (Schittler), procuradora-adjunta. Estão fazendo tudo certo do ponto de vista jurídico. Essa ação, para mim, é daquelas que faz descrer cada vez mais no Judiciário. Não é uma ação normal. Aconteceu alguma coisa, talvez uma explicação espirita resolva, mas eu não consigo entender como chegou nesse ponto. Ainda bem que não lido mais com isso (risos). Isso é uma das coisas boas de ter saído da prefeitura.
Do teu tempo de prefeitura, o que mais te marcou?
Quando assumimos, ganhamos a eleição do (Germano) Rigotto (em 1996). O Pepe era o azarão. E foi uma construção coletiva. Na época eu era advogado e o Pepe me convidou para ser procurador e fui muito pelo tesão da coisa. Foi um momento muito legal das nossas vidas, muito intenso. Naquela administração mudamos Caxias do Sul. E aconteceu de tudo ali. Teve alguns episódios engraçados, outros pesados. Na questão de invasão de terra, a gente não tolerava uma ocupação. A pessoa invadia área pública, entrávamos com ação para reintegração (de posse). São coisas pesadas. Teve uma que foi divertida, a história do Caxias, que estava na Série B. Teve uma partida (contra o Figueirense, em 2001, que valia acesso à Série A) que deu problema, e a gente acabou ingressando na Justiça. Eu que ingressei com a ação para botar o Caxias na Série A. Ganhamos a liminar, o Tribunal de Justiça do estado manteve o Caxias na série a e estava tudo certo. Aí a CBF caçou essa decisão no STJ, em Brasília. Foi uma coisa que deu muita repercussão. As pessoas perguntavam o que a prefeitura tinha a ver com isso. Inclusive, o Pepe é juventudista. Porque era importante para a cidade, que já tinha o Juventude na Série A. Cidade do interior com dois times na Série A (Caxias) seria a única. Quem fez o contato inicial foi a Geni Peteffi, que era vereadora do PMDB, adversária da administração, mas que foi nos procurar. Os méritos são dela. Foi um momento interessante. Foi uma coisa da cidade, de defender a cidade. Porque tinha toda uma briga forte entre o PMDB, a Geni era uma pessoa muito incisiva, mas esse episódio até nos aproximou. A gente mudou a opinião que tinha um do outro, em função disso.