Não é preciso o tempo de esvaziar uma garrafa de vinho para entender porque o caxiense Celso Luís Zanrosso, no seu aniversário de 60 anos, recebeu de presente da filha Natália um quadro encomendado ao cartunista Carlos Henrique Iotti. Segundo a nutricionista, o pai "é o próprio Radicci", bem como aqui e ali se encontram, nas regiões da imigração italiana na Serra, figuras que bem poderiam ser a personificação do personagem que completa 40 anos representando um certo "jeito gringo" de ser.
O quadro representa Celso, proprietário da vinícola que leva o sobrenome da família, no bairro Nossa Senhora da Saúde, com uma espingarda de caça, ladeado pelo cachorro Pinot (uma licença poética, pois Pinot de perdigueiro não tem nada), indo de encontro a uma mesa com três garrafas de vinho.
- Essa foi uma exigência. Não seria um quadro do meu pai se não tivesse os três tipos de vinho na mesa pra servir no almoço - brinca Natália.
- É que se tu recebe uma visita na tua casa e oferece um tipo só, faz o que se ela não gosta? Tem que ter três chances de acertar - explica Zanrosso.
As tirinhas do Radicci acompanham o cotidiano da família. Além de Zanrosso ser um fã do personagem , Natália e a irmã, Patrícia, se acostumaram a "reconhecer" o pai em algum cartum e mostrar pra ele, além de postar nas redes sociais da vinícola. Como a admiração é mútua, na próxima sexta-feira, quando inaugurar na Galeria Gerd Bornheim a exposição dos 40 anos do Radicci, os visitantes serão recebidos com o refrescante vinho branco moscato.
- Moscato é o vinho do Radicci Mas que tem ser de garrafão - brinca Iotti, em rápida aparição nesta reportagem que é dedicada à sua criatura mais famosa.
Tanto quanto a paixão pelo vinho ou pela língua italiana, a identificação de Zanrosso com o gringo se dá também pela nostalgia do modo de viver na colônia que aos poucos desaparece com o passar das gerações. Não é sobre certo ou errado, mas a juventude de Celso foi caçando perdiz, atividade já há muito tempo proibida, assim como é proibitivo o "Porco Dio" que precisa se policiar para não falar na frente dos netos Antônio e Pedro, ambos com menos de um ano. Fora isso, o cenário meio rural meio urbano de Radicci também o faz sentir falta de tempos em que era mais fácil reunir família e amigos.
- Devagarinho a gente vê os costumes morrendo. Não se reúne mais os amigos pra jogar bola no fim de semana, as famílias se reúnem uma ou duas vezes por ano, a gurizada não quer saber de ajudar no campo ou na bodega, só pensa em comprar um carrinho ou um celular. Tem que admitir que antigamente era mais saudável - conclui, tal qual o gringo Radicci a admoestar o filho Guilhermino em mais uma tirinha de jornal.
"Visibilidade e voz aos descendentes de imigrantes"
A facilidade de acessar estudos acadêmicos em repositórios virtuais permitem encontrar estudos acadêmicos sobre Radicci no contexto da relação do personagem com a questão identitária do colono italiano. Num destes estudos, uma dissertação de mestrado sobre a estereotipação do colono italiano no universo de Radicci (UCS, 2017), o pesquisador Roberto Rossi Menegotto pinça a descrição que o próprio Iotti faz do seu personagem, cuja inspiração original foi o seu avô, Leon:
"Era pra ser uma espécie de síntese do nosso colono italiano em uma época que ser colono era uma vergonha. É um anti-herói, gordinho, baixinho, careca e peidorreiro, amante do vinho e do ócio, bem diferente do imigrante pintado e cantado pela história oficial".
A importância de Radicci para a afirmação identitária do colono italiano na região de Caxias do Sul foi tema de investigação de mestrado em Letras da pesquisadora Salete Rosa Pezzi dos Santos (UFRGS, 2001). Em sua pesquisa, Salete entrevistou descendentes das zonas urbana e rural, a fim de encontrar pontos de identificação ou não entre estas pessoas e o personagem de Iotti, especialmente na questão da língua e do sotaque italianos. Escreve ela, nas considerações finais:
"A virtude de Iotti é aproveitar a realidade, fazer uma leitura do contexto em que se insere o descendente de imigrantes italianos, dando "visibilidade e voz" àquilo que estava oculto e calado. O autor aproveita, com astúcia, os traços linguísticos da região, exagerando esses traços na fala do Radicci para criar impacto, como forma de tornar visível a estratificação social do bilingüismo da região. (...) Não é possível imaginar o Radicci falando português; esse personagem, sem o sotacon, não alcançaria a representatividade que conquistou. (...) Se a língua tem um papel relevante no processo de identidade, desta forma, a identidade ítalo-brasileira fica revitalizada através do Radicci, principalmente, no meio rural. O autor não inventa, ele utiliza o material da região, e retrata a realidade, denunciando a marca ítalo-brasileira, repotenciando, assim, a identidade do colono ítalo-brasileiro, imprimindo-lhe um caráter de universalidade, o que lhe garante a aceitação não só no âmbito de Caxias do Sul e arredores, como também em outras partes do País"
Sobre ser Radicci no palco
Há 12 anos, o Grupo Ueba Produtos Notáveis dá vida, no palco, a Radicci e sua (nem sempre) conformada esposa. O espetáculo Radicci e Genoveva, encenado por Jonas Piccoli e Aline Zilli, já passou por todas as regiões do Estado, desde a capital até municípios onde o teatro chega como novidade. E, tão certo quanto as gargalhadas que serão arrancadas da plateia, é a identificação do público com os personagens.
- De cada duas cidades que a gente vai, em pelo menos uma vai subir no palco o senhorzinho careca, barrigudo, atarracado, que vai lá fazer uma foto porque ele é o Radicci da cidade. É um espetáculo de palco, mas que acaba ganhando ares de teatro de rua, porque o público fica muito à vontade para interagir. A gente percebe que esses personagens já vivem no imaginário coletivo, atravessando gerações - conta Jonas.
O ator destaca que a ideia de levar Raddici e Genoveva para os palcos surgiu após a equipe perceber que as personagens se encaixam no universo clown, dentro de formas consagradas da palhaçaria, como o Bufão (no caso, o Radicci) e Augusto e Branco, a tradicional dupla a la Pink e Cérebro, em que um, mais racional, manda e o outro, mais emocional, obedece.
- Na construção destes personagens a gente pôde ver, claramente, o quanto o Iotti se inspira nos tipos da nossa região. Tem o tipo do gringo beberrão da colônia, mas também tem o "pelo duro" da fazenda. Porque o Radicci não é o gringo por si só, é mais uma cruza de tudo e mais um pouco. E a Genoveva é aquela mulher que tenta arrumar ele, sem conseguir, mas que também tem os seus momentos de vingança. É um tipo de humor que a gente valoriza muito, que ri de si mesmo sem menosprezar o outro. É beberrão, é sexualizado às vezes, mas ri da vida em casal, tem sempre um querendo impor sobre o outro, tem o Radicci querendo ser o fortão, mas a Genoveva dá a volta e pega ele.
No dia 1º de Outubro, às 16h, dentro da programação da 39ª Feira do Livro de Caxias do Sul, Iotti e Jonas Piccoli irão bater um papo no painel "Radicci: Criador e Criatura". Na sequência, às 18h, Iotti irá autografar o livro "Radicci Quattro", nova coletânea de tirinhas do personagem, celebrando suas quatro décadas de existência.
A "casa do Radicci" em Ana Rech
A união entre Radicci e o empresário Juarez Dall'Alba, 64, é quase umbilical. Foi no mesmo ano de 1983, em que Iotti criou seu personagem, que Dall'Alba inaugurou seu restaurante no bairro de Ana Rech, à época nomeado como Xikão (só depois viria a ganhar o nome de Chicon L'Originale, por sugestão do próprio cartunista). Ao escutar o programa "Quá Comando Mi", então na rádio Súdito, em que o humorista representava todos os personagens da família Radicci, Dall'alba logo se interessou em estreitar os laços:
- Logo que eu escutei aquele personagem com aquele jeito "simplão', ao mesmo tempo tão engraçado, vi que era ele que ia fazer propaganda pro meu negócio. E assim foi. Quando fui conhecer pessoalmente e vi que não era um colono igual ao desenho, mas sim um guri mirrado que fazia aquele personagem, mal acreditei. Sequer imaginava que iria virar uma amizade tão grande.
Restaurante que preservava um certo aspecto de bodega típica, Chicon L'Originale aos poucos passou a se confundir com a própria casa do Radicci, servindo para lançamentos de livros e gibis, e sendo frequentemente citado em qualquer espaço ocupado por Iotti na imprensa local:
- Eu tinha a melhor agência de publicidade que podia ter, que era o próprio Iotti. Acho que os outros patrocinadores ficavam até enciumados com a maneira como ele sempre dava um jeito de dar um destaque pro restaurante em cada situação. Quando a energia elétrica chegou a Ana Rech, por exemplo, ele criou o anúncio: 'Siga a iluminaçon e chega no Chicon'.
Além de patrocinar por cerca de 10 anos o "Quá Comando Mi" (Juarez tem cerca de 500 fitas K-7 que armazenam os programas gravados), diversas edições do "Gibizón do Radicci" e outras publicações, o empresário também ajudou a arrumar outros patrocinadores para as empreitadas editoriais do amigo Iotti. Chegou a colocar um anúncio num jogo americano, papel que vai sobre as toalhas de mesa. Mas "Chicon" garante que não chega nem perto do que o cartunista já fez pelo seu estabelecimento:
- Antigamente Ana Rech não era como é hoje, que passa um carro atrás do outro. Tinha que convencer as pessoas a saírem do centro e vir até aqui, e o Iotti fazia isso com a criatividade dele. Acho que ele nunca teve a dimensão de quantos fãs ele tinha e tem até hoje. Todo mundo chegava aqui querendo conhecer o Radicci. A minha gratidão é eterna e não tem tamanho.
Quatro décadas para recordar
Para marcar as quatro décadas do Radicci, Carlos Henrique Iotti inaugura na próxima sexta-feira, às 20h, uma exposição que reúne mais de 80 obras que vão de originais em aquarelas a pinturas em acrílico, que representam o universo do personagem e sua família, composta pela esposa Genoveva, pelo filho Guilhermino e pelo Nôno. Será na Galeria Municipal de Arte Gerd Bornheim, na Casa da Cultura de Caxias do Sul.
A mostra faz parte das atividades da 39ª Feira do Livro, que ocorre na Praça Dante Alighieri, e contará também com as capas originais dos Gibizons do Radicci, capas de livros e originais publicados em jornais.