“Construir um futuro que valha a pena ser vivido”. Essa frase, retirada do livro "Sonho Manifesto" (Cia. das Letras, 2022. 205 páginas), parece sintetizar o pensamento do seu autor, o neurocientista e escritor brasiliense Sidarta Ribeiro, 51. A construção desse futuro passa pela urgência da humanidade honrar valores ancestrais, como a cooperação; de redescobrir o poder curador e o poder dos sonhos, tema de seu livro mais célebre, “O Oráculo da Noite” (Cia. das Letras, 2019, 530 páginas); e de tratar de forma aberta sobre os benefícios e riscos das substâncias psicodélicas.
Na última semana, Sidarta esteve em Caxias do Sul para ministrar a palestra A Revolução Canábica, no auditório do Tri Hotel Executive, e participar de edição especial do projeto Órbita Literária, na livraria Do Arco da Velha. O neurocientista também conversou com a reportagem do Almanaque sobre temas como a regulamentação da maconha medicinal, terapias psicodélicas e a importância dos sonhos para a ciência do século 21, entre outros. Confira:
A maconha medicinal é um conhecimento ancestral. Onde está, portanto, a revolução canábica, tema da tua palestra em Caxias?
A revolução está na redescoberta pelo público, e na descoberta científica, destes efeitos. Se formos olhar as farmacopeias da China, da Índia ou do Egito, vamos encontrar a maconha como uma planta de valor medicinal muito antiga. A domesticação da maconha começou no início do período neolítico, no oeste da China, já com a separação para produção de fibra e de variedades ligadas à produção de resinas medicinais. A grande novidade é a ciência ter se voltado para esses fins medicinais a partir da descoberta do sistema endocanabinóide. Ou seja: de que nós temos no nosso corpo moléculas muito semelhantes às da maconha. Isso ocorreu no final dos anos 1980 e no início dos anos 1990, e desde então pesquisadores têm se debruçado muito sobre o sistema dos canabinóides e sobre os fitocanabinóides, que são os canabinóides produzidos pela maconha. É uma mudança de paradigma que transformou a área biomédica, com muita pesquisa de alta qualidade ao redor do mundo. O grande público, contudo, ainda está passível da propaganda negativa da guerra às drogas, muito especificamente em relação à maconha. E essa renascença pelo interesse da maconha, agora com aval da ciência, é muito interessante porque, de fato, são muitas indicações para tratamento de diversos transtornos. Só que as pessoas precisam saber disso para poder ter acesso.
O Brasil irá um dia assumir o fracasso da guerra às drogas? Você enxerga algum outro país como modelo de regulamentação que possamos adotar?
O Brasil vai, sim, sair da guerra às drogas porque o planeta vai sair dessa guerra. A ONU já começou a sair, os EUA começaram a fazer esse movimento, além de Alemanha, Israel, Uruguai…são muitos exemplos. Cada um tem o seu modelo: o mais capitalista, dos EUA; o do Canadá, mais focado na planta inteira; outros mais focados nos compostos purificados; outros focados no papel do Estado, como o Uruguai. Acho que o Brasil tem de buscar o seu modelo olhando para a realidade de que a cannabis está legalizada para fins medicinais há bastante tempo no país, mas só os ricos têm acesso. Há mais de cinco anos existem nas farmácias medicamentos à base de maconha, porém são muito caros. A classe média consegue acesso, principalmente a partir de associações de pacientes, e há pessoas que conseguem plantar através de Habeas Corpus, mas ainda são soluções muito pontuais. Pensando do ponto de vista da população mais carente, se isso não chegar à farmácia-viva do SUS, ao uso fitoterapêutico acessível, as pessoas vão continuar sem poder contar com esse tratamento que pode ser tão revolucionário, para pacientes e para as suas famílias. Num lar em que uma criança tem uma epilepsia congênita, por exemplo, o fato dela não poder contar com a terapia canábica afeta toda a família.
Você defende que a educação para o uso de drogas é tão importante quanto a educação sexual nas escolas. Podes aprofundar essa questão?
A abordagem de dizer para o jovem que o sexo é ruim e que as drogas são ruins, e que ele não deve fazer nada disso, é uma abordagem fracassada. Porque, se assim fosse, as pessoas não buscariam esses caminhos. Tanto num caso quanto no outro, depende da pessoa que está tendo aquela prática: da sua idade, do contexto social, da qualidade e da quantidade da experiência. Muitas pessoas acreditam que há substâncias que são do bem, e que por isso são legalizadas, e substâncias do mal, que por isso são ilícitas. Do ponto de vista científico, são apenas substâncias químicas, que podem fazer bem ou mal dependendo da dose e do contexto de uso. O que se precisa buscar é uma isonomia. Substâncias com maior potencial benigno e menor potencial de dano devem ter uma regulação mais branda, e vice-versa. Se a gente fizer isso de maneira isonômica e trouxer tudo para um mercado formal, à luz do dia, a sociedade tem muito a ganhar.
Sempre que pessoas públicas trazem à tona suas preferências sexuais, ou situações íntimas, como uma doença que ainda seja tabu, sinto que o debate ganha com isso. Ainda há uma carência de pessoas falando abertamente sobre sua experiência com psicodélicos?
Essa questão tem dois aspectos, um legal e outro moral. Do ponto de vista moral, uma pessoa que tem a necessidade de um medicamento à base de cannabis tem todo o direito de ter acesso, e o fato deste medicamento ser acessível nas farmácias, mas ser muito caro, mostra que existe uma hipocrisia muito grande na sociedade. Neste sentido, é boa a analogia com a orientação sexual, porque a constituição garante o direito das pessoas terem a orientação que quiserem, assim como garante o direito dos usuários medicinais, quando têm prescrição médica. No caso do uso recreativo por adultos, as pessoas que admitem esse tipo de uso estão se colocando um passo além da questão moral, indo para a questão legal. Hoje esse usuário não será preso, mas sofrerá sanções administrativas. Se a gente pensar nos EUA, país que inventou a proibição global às drogas, e que já legalizou o uso recreativo da cannabis na maior parte dos estados economicamente influentes, a gente percebe que essa passagem da esfera moral para a esfera legal, e do que faz sentido para a sociedade, já aconteceu. No Colorado, por exemplo, estão recolhendo muito dinheiro de impostos sobre o comércio da maconha para a melhoria de estradas, de escolas e de hospitais. No Brasil essa discussão está comprometida pelo baixo nível do debate. Há muito pouca informação de qualidade e muito pânico moral. As pessoas se comportam como se a maconha fosse uma coisa extremamente perigosa, quando na verdade ela é um remédio incrível. Pode ser perigosa para algumas pessoas? Sim. Toda substância tem seus grupos de risco, e é por isso que a gente precisa de regulamentação, de bula, de controle de qualidade…coisas que são direito em muitos países e no Brasil continuam sendo estigmatizadas e, sobretudo, desiguais entre as classes sociais. Uma pessoa que tem acesso a boas informações consegue integrar uma associação de pacientes, receber seu óleo medicinal de maneira regular, e ter acesso a um tratamento consistente. Mas muitas pessoas não têm a menor ideia de que isso existe, e elas continuam sofrendo e tomando remédios que muitas vezes têm efeitos colaterais muito danosos.
Você defende o debate sobre a regulamentação de terapias assistidas por psicodélicos não deixe de lado a questão ritualística. Por quê?
As substâncias psicodélicas clássicas são aquelas semelhantes ao neurotransmissor serotonina, que todos nós temos no cérebro. São um tipo de terapia de origem indígena, que vêm de conhecimentos da Amazônia, no caso da Ayahuasca, e do México, no caso do cogumelo, que têm incríveis efeitos anti-inflamatórios, de produção de novos neurônios e de novas sinapses, e são substâncias muito potentes para tratar sofrimentos psíquicos, como trauma e depressão. Só que os efeitos dessas substâncias não são determinados somente pela dose, mas também pelo contexto de uso. Uma pessoa que experimente uma substância psicodélica clássica, num contexto de uso adequado, vai ter muito mais benefício do que uma pessoa que usa num contexto inadequado. E os contextos ritualísticos ancestrais foram construídos e evoluíram culturalmente para promover esse tipo de bem-estar. Se nós pensarmos na origem disso, em povos amazônicos como os Huni Kuin, os Yawanawá e os Ashaninka, que fazem isso há séculos, talvez milênios, eles têm uma tecnologia desse ritual, que é um conhecimento muito poderoso. Com o tempo e com o contato com populações brancas, isso gerou religiões organizadas que são sincréticas: misturas entre mitos indígenas, mitos de origem africana e de mitos cristãos. Falo do Santo Daime, da União do Vegetal (UDV), da Barquinha, entre outras. Um terceiro nível de fenômeno no Brasil é o neoxamanismo: são pessoas que não estão ligadas a essas igrejas tradicionais, que têm sua função reconhecida desde os anos 1980, e que são mais ligadas a uma cultura mais urbana… e há ainda a quarta vertente, que faz a pesquisa biomédica, com ensaio clínico controlado, e isso também é muito bem-vindo para a gente poder saber qual o tamanho do efeito acima do que seria o efeito placebo, por exemplo.
Fato é que, em todo o planeta, cada vez mais pessoas entendem que essas substâncias podem produzir benefícios. É Importante que as pessoas tenham acesso à informação de qualidade, e que possam escolher o que vai fazer mais sentido para elas, se é tomar ayahuasca dentro do hospital, ou no meio da floresta, com um pajé. E temos de entender que, no tratamento do sofrimento mental ou físico, o paciente tem de ter autonomia para escolher o seu caminho. O que nunca vai dar certo é considerar que a terapia psicodélica pode prescindir de um bom contexto de uso, que inclui aquilo que nós, no ocidente urbano, chamamos de psicoterapia. A gente não fala apenas de usar substâncias para tratamento, mas para auxiliar no tratamento pela psicoterapia.
Assim como a meditação, as terapias psicodélicas podem produzir como “efeito colateral” uma redução do ego e uma maior empatia? Pois isso é o que o mundo mais precisa, ao que me parece…
Existe um conjunto de regiões no nosso cérebro envolvidas na empatia. São o que chamamos de rede de modo padrão. Essas regiões são as mesmas que estão envolvidas no sonhar, nas experiências psicodélicas, na meditação…e, quando você imagina o que se passa na mente dos outros e o que os outros sentem, você se coloca no lugar deles. Todas essas coisas são unidas no cérebro pelas mesmas regiões cerebrais, com engajamento diferente em cada situação. Não são experiências iguais, é claro. Mas posso dizer, sem medo de errar, que o trabalho feito em terapia assistida por psicodélicos vai atuar, principalmente, nas regiões necessárias para a empatia. E a meditação faz o mesmo, atuando nas mesmas regiões, ainda que de outra maneira. Em última instância, a gente está falando de um cérebro que é neuroquímico, onde os efeitos vão ser atingidos por razões endógenas ou exógenas. Ou seja: por substâncias geradas pelo próprio cérebro, através da meditação e da atenção plena, ou através da ingestão de uma substância como, por exemplo, a ayahuasca. O objetivo final, do ponto de vista dos estados mentais, pode ser muito semelhante. É importante falar desse efeito colateral da redução do ego: se você tem uma redução da representação do ego, as outras representações, das outras pessoas que moram na nossa memória, no nosso inconsciente, necessariamente ganham relevo, em proporção. Só isso já bastaria para que a pessoa se colocasse na contemplação da alteridade. Ou seja, da diferença.
Qual o papel dos sonhos na ciência do século 21?
Acho que é um papel muito importante. Eu diria que, mais do que na ciência, no destino do planeta. Os sonhos, durante o século 20, foram relegados a alguns guetos de investigação: na psicologia de profundidade; na psicanálise de Freud; na psicologia analítica de Jung; numa parte da psicologia experimental voltada ao estudo do sono REM, e nas ciências humanas, sem dúvidas. Mas, do ponto de vista das ciências biomédicas, havia pouca respeitabilidade a essa área de pesquisa. Estudava-se o estado do sono em que o sonho ocorria, mas o sonho em si era tido como caótico, sem sentido e significado. Isso caiu. Nos últimos 20 anos a neurociência e a psicologia cognitiva mostraram que os sonhos têm significado, e que, inclusive, podem melhorar o desempenho das pessoas durante a vigília. Em outras palavras, se você sonhar com a realização de uma tarefa, você se torna mais capaz de realizar aquela tarefa…e isso conecta a neurociência do século 21 a conhecimentos ancestrais não-científicos, aos xamãs, aos pajés, a pessoas que lá na Grécia Antiga, na Roma Antiga, no Egito, na Índia, há cinco mil anos, estavam sonhando para buscar adaptação, para tentar se encaixar melhor no mundo ou transformar o mundo para que ele fosse mais adequado às necessidades humanas. Hoje, em meio a essa grande crise ambiental e social, mais do que nunca é preciso resgatar o sono e os sonhos.
A falta de sono traz um monte de problemas. Provoca mau humor no dia seguinte, problemas cognitivos que irão virar fator de risco para depressão; de risco para ansiedade; para problemas cardiovasculares; para diabetes, e, lá na ponta, para Mal de Alzheimer. É uma bola de neve. A falta de sono, depois, vai implicar na falta de sonho, que significa não entender os próprios desejos, os próprios medos, os próprios desafios…vai implicar falta de introspecção, falta de insight sobre a sua própria vida interior. Imagine, numa sociedade em que todo mundo está perdendo o sono, quais são as consequências? Desagregação social, sensação de solidão…há mais gente morrendo de suicídio do que de homicídio no planeta. Isso é surreal. Estamos superando a brutalidade ou estamos caindo numa solidão infinita?
Considero “Sonho Manifesto” um livro otimista, pelo teu argumento de que, apesar de toda a desigualdade, os recursos e as condições para um futuro melhor já estão dados, mas os bilionários precisam se conscientizar e ceder. Isso me faz pensar em Leminski: “O poder é o sexo dos velhos”...
Isso é interessante, pois sempre achei que o contrário de amor era ódio. Até aprender, com o meu psicoterapeuta, que o contrário de amor é poder. Quando uma pessoa exerce muito poder sobre a outra, o amor se torna impossível de parte a parte. A gente vive numa sociedade em que as pessoas estão muito viciadas em poder e em dinheiro, e isso está sendo mediado no cérebro pelo mesmo neurotransmissor, que é a dopamina. Se a pessoa está dependente de álcool, de cocaína, de videogame ou de dinheiro, no cérebro isso é mais ou menos a mesma coisa. E qual é o problema? É que, ativando esse sistema interno de recompensas, a gente nunca chega à saciedade. A pessoa que tem muito dinheiro sempre quer mais. Assim como a que tem muito poder. Se você conversa com essas pessoas que têm muito dinheiro, elas estão em sofrimento. Porque queriam ter ainda mais dinheiro do que alguém; porque perdem muito dinheiro rapidamente, quando especulam; porque não acreditam nas amizades que têm; por causa das heranças que têm a receber…é uma neurose enorme.
Mas existe outro sistema no cérebro, ligado ao neurotransmissor serotonina, que tem tudo a ver com a plenitude. É o que a gente produz quando está em relações saudáveis; quando está com pessoas que a gente ama; fazendo música; dançando; fazendo amor. Tudo isso produz serotonina e outros neurotransmissores que levam à sensação de plenitude, de conforto e de segurança, que são o contrário do que a dopamina pode provocar. Meu argumento é que, enquanto houve escassez no planeta, desde a pré-história até meados do século passado, simplesmente não havia comida para todo mundo. E, nessas circunstâncias, não há como ficar livre da ética da competição baseada em dopamina: você vai alimentar primeiro os seus filhos. Há vários mecanismos em nosso corpo que nos levam para esse lado mais egoísta. Porém, quando há abundância, a pressão de seleção sobre toda a espécie muda. Se continuarmos a ter pessoas hipercompetitivas acumulando cada vez mais, a crise ambiental e social será completa.
As pessoas que têm cinco bilhões de dólares e querem ainda mais dinheiro estão doentes, e a gente precisa falar sobre isso abertamente. Elas precisam muito mais de amor, de ayahuasca, de ioga, de ayurveda, de alimentação orgânica sem ultraprocessados, do que de mais dinheiro. Isso se conecta a ensinamentos que estão em Jesus Cristo, em Buda, em Krishna. Não digo que, se os bilionários mudarem de ideia, fica tudo bem. É mais complicado, porque há a questão da emergência popular, das pessoas dizerem “não aceitamos não ter o que comer e não ter onde dormir”. Mas não adianta emergir de baixo para cima se os de cima vão entrar em guerra com os de baixo. Tem de haver um acordo entre classes sociais para subir o piso e descer o teto. As pessoas que têm cinco bilhões não precisam de mais dinheiro, mas, sim, de cuidar do único planeta que todos temos para morar.