Para além da expressão artística pelo movimento do corpo, a dança pode simbolizar a celebração de um povo pelo fim do inverno, a bravura diante do inimigo ou a gratidão pela colheita farta. Ao mesmo tempo, para além da coreografia, preserva os costumes de uma etnia, através da vestimenta e de acessórios, de gritos na língua materna ou em todo o simbolismo que representa a ancestralidade. Quando reúne esses elementos, passa-se a conhecê-la por dança folclórica, o que, na Serra Gaúcha, é uma tradição reconhecida mundialmente.
Um dos responsáveis por dar a região esse reconhecimento, o Grupo de Danças Folclóricas Internacional de Nova Petrópolis lançou este mês um fotolivro comemorativo por seus 50 anos, completados em 2020. “50 Anos de Tramas e Ritmos” resgata a história da entidade criada pela professora e imigrante alemã Annemarie Frank (que atualmente vive na Alemanha), a fim de ajudar a perenizar a cultura, os saberes e ritmos germânicos no município que tem os alemães como principais colonizadores, mas que também recebeu muitos holandeses, franceses e italianos. Não por acaso, além das coreografias de sua própria origem, o grupo também contempla outros povos que têm na dança uma força identitária, como, Índia, Estônia, Espanha, entre outros.
– Tornou-se a nossa marca representar essa diversidade étnica, ao mesmo tempo mantendo nossa própria tradição germânica, de danças as polcas, as valsas, os galopes. Procuramos ter sempre um respeito muito grande pelo que essas culturas têm de mais primordial, procurando alterar os passos o mínimo possível, para não perder o valor histórico – destaca Edineia Werner, que entrou no grupo aos 6 anos e hoje, aos 27, é responsável pelas categorias de base.
No município de 21 mil habitantes, a dança folclórica, que é essencialmente amadora, é um costume abraçado pela maioria das famílias, sejam da cidade ou interioranas, e que perpassa gerações. Alguns pais chegam a colocar seus filhos nos grupos tão logo eles aprendam a caminhar.
– Acho que a dança representa crescimento. O grupo proporciona um amadurecimento muito grande para as pessoas, tanto que a gente vê vários integrantes que começaram bem cedo se tornando líderes em diversas áreas no nosso município. A união em torno da dança favorece esse cenário transformador – aponta Edineia Werner.
Expressão camponesa
Em Nova Prata, foi um casal de origem polonesa quem deu origem ao Grupo Folclórico Kalina, criado em 1989 e posteriormente incorporado à Braspol, principal entidade representativa da comunidade polaca no Brasil. Também para esta etnia, que ajudou a colonizar Nova Prata no final do século 19, a dança é uma das expressões máximas de sua cultura e de seus valores.
André, 78, e Vanda Hamerski, 76, juntos há 49 anos, explicam que o Kalina surgiu na esteira de um programa pedagógico que Vanda desenvolveu para a escola da comunidade de Linha 6ª, onde se concentra grande parte dos poloneses naquela região (8% da população de Nova Prata tem origem polonesa). Para os poloneses, em especial os camponeses, a dança tem significativa ligação com a conquista amorosa, em especial da mulher pelo homem. Em boa parte das coreografias há um momento em que as mulheres se posicionam na lateral do palco, enquanto os homens exibem sua força e habilidade.
– A dança polonesa vem da roça, do chão batido, da lavoura, do homem “tosco”. A estilização tem de ser a mínima possível. Em festivais folclóricos, normalmente os grupos que tiram o primeiro lugar são aqueles que conseguem representar a humildade do povo simples – explica André Hamerski.
Uma das razões que fazem os fundadores do Kalina confiar na perenidade do grupo é o ingresso de crianças. Embora as principais coreografias sejam elaboradas para adultos, oxigenar o grupo é fundamental.
– A renovação é obrigatória e é o que nos dá esperança. Quando uma criança é fisgada para a dança, normalmente ela vai dançar até o começo da vida adulta, pelo menos – diz Vanda Hamerski.
Fortalecer vínculos
Em Caxias do Sul, um dos grupos folclóricos mais atuantes fica na comunidade de Santa Bárbara, no interior de Ana Rech. Fundado em 2001, o Fare Amicci, expressão que em italiano significa “Fazer Amigos”, congrega crianças, idosos e adultos, em sua maioria agricultores, que trabalham nos parreirais e nas plantações de cebola, alho, cenoura e beterraba. Além de reforçar o vínculo entre os moradores, o grupo busca preservar as danças tradicionais italianas, em especial as que vieram com os imigrantes para a Serra no final do século 19.
– A dança está muito presente na nossa cultura italiana, como uma forma de celebração da vida, junto com a música, com o vinho e com a comida. E tem toda uma ligação com o trabalho na roça, tanto que muitos dos nossos figurinos trazem o avental, para as moças, e os cestos, a enxada e o machado para os homens – comenta a professora aposentada Neuza Turella Andriolo, 55, coordenadora do Fare Amicci.
Neuza ressalta que a alegria é a principal característica do grupo, que leva aos palcos coreografias como La Manfrina, a Tarantela, L’Alegrie e a Ligúria. E como essa alegria se manifesta? De uma forma bem italiana:
– São tudo uns “gritão”. Tão importante quanto dançar, é se comunicar em voz alta, bem como é típico do nosso povo. E sem se importar em soltar uns palavrões de vez em quando, mas só em italiano – brinca.
A espontaneidade do Grupo Fare Amicci pôde ser conferida na primeira semana da Festa da Uva, no Pavilhão 1. Após a apresentação, o grupo posou com as soberanas do evento, Pricila Zanol, rainha, e Bianca Fabro Ott e Bruna Mallmann, princesas.
– O mais bonito é ver as pessoas levantarem para dançar e bater palma. É algo que me enche de orgulho.
Arte sem fronteiras
Ao mesmo tempo em que os desfiles cênicos musicais da 33ª Festa da Uva são um momento de exaltação da imigração italiana na Serra, em especial em Caxias do Sul, também oferecem a oportunidade de fazer passar pela Rua Sinimbu a diversidade étnica e cultural que forma o município, bem representada pelos grupos de danças folclóricas, em sua maioria associados a escolas de dança das mais diferentes tradições.
São alas que trazem a brasilidade através da capoeira, do maracatu e das cirandas nordestinas; o tradicionalismo gaúcho dos CTGs; o pluralismo representado pelo ponto de cultura Casa das Etnias, entre outras. Ao longo das cinco primeiras edições do desfile (a última ocorre neste sábado), uma das alas que arrancaram os aplausos mais entusiasmados foi a das ciganas.
Comandados pela idealizadora Adri ana Silva, 50, os dançarinos da Essência Cigana, companhia criada em 2011, procuram levar o ao público o que o povo cigano tem de mais característico, que é se conectar uns aos outros como uma grande família, e a liberdade de uma população sem amarras. Ambos os aspectos podem ser percebidos nas coreografias.
– Não é nossa proposta fazer um espetáculo, mas sim ancorar a apresentação na ancestralidade, em que o compromisso do dançarino é com o seu próprio despertar, ao mesmo tempo em que acolhe o outro, principalmente através do olhar. Junto a isso há todo o simbolismo, como os pés descalços que representam o pertencimento à terra, e as mãos que são como uma antena de captação de energia – exemplifica Adriana.
Composto por crianças, adultos e idosos, outro costume cigano que a dança procura representar é o profundo respeito com os mais velhos.
– A história cigana é transmitida oralmente. Não está nos livros. Por isso o mais velho é visto como o baú da sua própria herança, assim como a criança é aquela que irá perpetuá-la – explica a dançarina e professora.