Um divã na Tunísia estreia quinta-feira (2), às 19h30min, na Sala de Cinema Ulysses Geremia, no Centro de Cultura Ordovás, em Caxias do Sul. É um filme divertido. A personagem, Selma, interpretada pela iraniana Golshifteh Farahani é uma heroína. Antes de mais nada, importante dizer que não se trata daquele tipo de herói da turma da Marvel ou DC Comics. Até porque, não se cogita exibir no Ordovás um filme da Mulher Maravilha, por exemplo. A força e empoderamento das mulheres, arrisco dizer, está melhor representada nesta trama com direção da diretora francesa Manele Labidi.
O roteiro é simples. Selma, nascida em Túnis, na Tunísia, volta de Paris depois de 10 anos morando por lá. O choque cultural é inevitável. Não apenas em termos de comportamento social, que recebe a imposição do contexto religioso em um país muçulmano. Mas também porque ela decide montar um consultório para dar sequência à sua carreira de psicanalista. Quando Selma conta seu plano para o tio, interpretado por Moncef Ajengui, ele deixa bem claro seu ponto de vista: “Aqui nós temos Deus, não precisamos desse papo furado”.
Esses dez anos longe da Tunísia não são por acaso. São simbólicos, porque em 2011 o país foi o berço da Primavera Árabe, quando um movimento social derrubou o ditador Zine el Abidine Ben Ali. E desde então, o país acabou se configurando na única democracia do mundo árabe, conforme o índice sobre o Estado de Direito da unidade de inteligência da revista The Economist. De uma forma muito sutil, porque se trata de uma comédia, e não de um documentário, Um divã na Tunísia aborda esse constante choque, expondo de um lado a velha Tunísia, em contraponto com a nova Tunísia, a partir da perspectiva da vida de Selma.
Todas as dificuldades de afirmação pelas quais passa a personagem, são metáfora dessa catarse pela qual passam os tunisianos. Apesar de novos ares da democracia, ainda há aqueles que estão presos ao passado, apesar de quebradas as ditas correntes da opressão. Da mesma forma que os jovens, como a prima de Selma, a Olfa (Aïsha Ben Miled), que esconde da mãe o corte de cabelo ousado, inspirado na musa pop Rihanna.
Essa relação entre Selma e Olfa, aliás, nos revela uma segunda camada de leitura. Olfa não entende porque Selma voltou para a Tunísia. Na sua visão, é incoerente, alguém largar a vida em Paris, berço da civilização romantizada como o centro do mundo, para voltar a cravar raízes na terra seca tunisiana. Selma responde, como se estivesse diante do espelho, tentando extrair o melhor de quem somos, fruto da psicanálise: “Não sei por que estou aqui. Só sei que quero estar aqui”.
Por se tratar de uma comédia, parece menos tenso mergulhar nesse estranho universo tunisiano. No entanto, a visão de mundo a partir da psicanálise nos conduz a essa imersão sem que olhemos para trás. Nessa travessia há pérolas como a cena em que Selma faz uma espécie de propaganda sobre os seus serviços em um salão de beleza. Baya (Feryel Chammari), a dona do espaço, diz que no salão as mulheres também falam e falam, derramando suas dores, e ao final saem “com escova no cabelo, unhas bem feitas e ajeitadas”. Então, Baya questiona: “E como saem as pessoas que fazem psicanálise?”. Selma reponde: “Todo mundo sai com algo que pertence a si”.
O embate revela não apenas a forma como as tunisianas encaram os problemas da vida. Nessa relação do espectador com a tela de cinema, somos reflexo do que está sendo exibido. Literalmente, as aparências enganam, e não é porque com a queda do ditador as mulheres tunisianas puderam enfim acarinhar sua vaidade com a liberdade de ir ao salão de beleza – e muitas delas, sequer usam véu sobre suas cabeças –, mas o processo agora é dar o segundo passo na jornada de conhecer a si mesmas.
Uma das clientes questiona Selma, de forma ainda mais incisiva: “Se eu fizer essa jornada com você meus problemas vão desaparecer?”. Selma reponde: “Não. Mas a psicanálise muda a natureza dos problemas”.
Mudam as estações, o contexto sócio-político pode ser diferente, as condições de emprego e renda divergem por se tratar de abordagens econômicas distintas, mas a Tunísia poderia ser aqui. Acima do consumismo desenfreado, a que somos alvejados diariamente de todas as formas, acima do entendimento espiritual, acima da maior ou menor influência política, urge avançar e entender que é preciso estender divãs mundo afora. Repetir que o mundo está doente só protela a resolução dos conflitos, que, em uma primeiríssima análise, está dentro de cada um de nós. Freud sempre explicou.
Agende-se
O quê: "Um divã na Tunísia" (França/2019/88min), de Manele Labidi.
Quando: de 2 a 12 de setembro (quinta a domingo, às 19h30min).
Onde: Sala Ulysses Geremia (Centro de Cultura Ordovás - Rua Luiz Antunes, 312).
Quanto: Ingressos a R$5 e R$10.