O idealizador da Festa Nacional da Uva, Joaquim Pedro Lisboa (1887-1974), elencava três pilares que sustentam o evento-símbolo de Caxias do Sul, que em 2021 completa 90 anos: a exposição, o corso alegórico e a escolha das soberanas. Este último, especificamente, Lisboa assim definiu em uma palestra resgatada pelo jornalista Luiz Carlos Erbes, durante a pesquisa para o livro Festa da Uva: alma de um povo: "é uma antecipação da festa, que motiva a expressão de júbilo e grandeza que anima a mulher caxiense".
À parte as palavras pomposas, desde sua criação o certame que escolhe as soberanas da Festa da Uva sempre foi mais do que um mero concurso de beleza: é um momento de engajamento comunitário, onde estão representados bairros e distritos, entidades e empresas que formam o município. No próximo dia 26, quando as 12 candidatas subirem ao palco do UCS Teatro para disputar as coroas de rainha e princesas da 33ª edição, marcada para fevereiro do ano que vem, elas estarão passando à cidade a mensagem de que é possível se reinventar para seguir em frente.
- Está no DNA do caxiense olhar para o problema e transformá-lo em oportunidade de crescimento. Tivemos o pré-concurso mais longo da história (16 meses) e foi um desafio enorme manter as candidatas envolvidas e entusiasmadas, mas contamos com a ajuda de muitas pessoas que se dispuseram a passar seu conhecimento de forma online, e alcançamos um grande engajamento nas redes sociais. Tivemos até uma degustação de vinhos virtual, que foi um marco - destaca a presidente da Comissão Comunitária da Festa da Uva, Sandra Randon.
Às vésperas de passar adiante a faixa recebida em 2019, a rainha Maiara Perottoni considera que reinventar o concurso em meio à pandemia é prestar o mais verdadeiro tributo aos imigrantes italianos que colonizaram a região, cuja história é rica em exemplos de adaptação à adversidade. Com a propriedade de quem estudou a fundo a história de Caxias, da imigração e da Festa, a rainha, que forma o trio de soberanas com as princesas Milena Caregnato e Viviane Galezer, também ressalta a importância de não deixar de celebrar a vida mesmo num momento tão difícil quanto o da pandemia, que fez adiar a festa originalmente marcada para fevereiro deste ano.
- Nossos avós têm lembranças muito bonitas de que, mesmo tendo de trabalhar muito duro, sempre valorizaram os momentos de alegria. Os filós, em que eles se encontravam nos finais de semana para cantar, dançar, tomar um bom vinho, jogar cartas, as mulheres fazerem a dressa. Esse ímpeto de celebrar mesmo nos momentos difíceis é algo que foi trazido por aqueles que vieram antes deles. Os imigrantes perderam entes queridos desde a viagem para o Brasil, tiveram de enfrentar muitas privações, e mesmo assim buscavam esses momentos. É uma forma de ter um vigor, da fé se concretizar. A alegria faz renovar a motivação para encarar a vida - reflete.
Também pelo lado prático da organização da Festa Maiara considera importante dar o próximo passo rumo à realização da próxima edição:
- É importante que as embaixatrizes possam encerrar esse ciclo e iniciar um novo. A Festa é feita por diversas etapas, e para seguir com a programação é preciso ter o trio 100% disponível. Caxias precisa da Festa, que movimenta todos os setores, e a sociedade conta com a energia contagiante do trio de soberanas.
Foram fatores como os mencionados por Maiara para justificar a necessidade de cumprir com essa etapa que motivaram a comissão organizadora a não abrir mão da realização da escolha, sem descuidar dos protocolos de distanciamento social do Estado. Todas as candidatas e a equipe de trabalho serão testadas uma semana antes e na véspera do desfile, que será sem máscara, será respeitado um espaço de quatro metros a cada três pessoas na plateia, entrada e saída serão controladas para evitar aglomerações, entre outras medidas sanitárias.
- Ao longo dos últimos meses acompanhamos como eventos do mesmo porte estavam se organizando pelo país para escolher suas representantes, ao mesmo tempo em que algumas formaturas e casamentos também apontaram alguns caminhos para os eventos híbridos. Foi um processo muito cuidadoso, que envolveu diversas reuniões com o Gabinete de Crise do município e com o comitê técnico da Amesne. Iremos adotar medidas que são ainda mais rígidas do que as previstas nos protocolos para que todos possam desfrutar desse momento com o máximo de segurança e que quem acompanhar de sua casa também viva uma experiência encantadora - acrescenta Sandra Randon.
A escolha das soberanas da Festa da Uva de 2022 será assistida por 180 espectadores do UCS Teatro, entre familiares e convidados, e terá transmissão ao vivo pelas redes sociais (@festanacionaldauva) e pelo site da BitCom TV (www.bitcomtv.com.br), a partir das 20h. Caso a situação da pandemia volte a se agravar e o governo do Estado imponha novas restrições, o evento poderá ser adiado. Na próxima terça-feira o Pioneiro inicia uma série de perfis das 12 concorrentes.
Adaptar é mostrar que não perdemos tudo
A psicóloga e psicanalista caxiense Camila Scheifler Lang já passou pela vivência de ser candidata a soberana da Festa da Uva, e do que considera ser uma representante do papel do feminino na cidade de Caxias, no sentido de divulgadora da pujança, fartura e do zelo com o senso estético que a cultura regional valoriza, além da dimensão narcísica do belo, do frutífero e da exaltação à produção. Candidata na edição de 1998, Camila considera a participação no concurso um divisor de águas na sua vida.
-_ É um período de muita comunicação, de conhecer pessoas, de ter aulas de viticultura, de história regional, de etiqueta, de ter palestras, de fazer amizades com as outras candidatas. O lugar do social nesse concurso me ajudou a ter muito mais desenvoltura, sendo determinante para a pessoa que sou hoje. Sempre estimulo as filhas das minhas amigas a concorrerem, por ser um concurso que não escolhe quem é melhor ou pior, mas sim objetiva valorizar todas as mulheres - comenta.
A psicanalista vê como essencial a adaptação aos novos tempos para a realização do concurso, a fim de que a comunidade possa continuar a produzir o que chama de "novos enredos de significação":
- Ao mesmo tempo em que há o viés capitalista do evento, a Festa da Uva e as soberanas têm um papel muito importante de provocar a nossa subjetividade, a fim de produzir novas representações simbólicas, como a de criar um personagem que nos inscreva numa cultura e nos tire da solidão de nós mesmos. Especialmente nesse momento, poder preservar a tradição e o rito de passagem que é esse concurso, é entender que temos, sim, de nos adaptar para lidar com as privações, mas que não perdemos tudo. A tecnologia nos ofereceu novas dimensões de vínculos e formas de contato com o outro, que a gente aprendeu a usar para lidar melhor com a solidão e não deixar de celebrar.
A coroação através das décadas
Desde a primeira Festa da Uva, realizada em 1931, até a 32ª edição, de 2019, o papel representado pelas soberanas se modificou a fim de acompanhar o crescimento do próprio evento. De algo quase figurativo no começo - tanto que a escolha era feita na véspera da festa até meados da década de 1950 -, passou a ser central para a divulgação nacional a partir dos anos 1960, transformando também o desfile num atrativo de grande interesse, com participação maior de público e cobertura intensa da mídia.
A reverberação maior da Festa respingou na escolha das soberanas. Se até os anos 1980 a maioria das escolhidas representava clubes sociais de Caxias, a partir da década seguinte a maior exposição na mídia fez com que as empresas enxergassem no concurso uma oportunidade de marketing. Porém, num sentido contrário, houve também a preocupação de não perder as raízes: também nos anos 1990 os trajes de gala deram lugar aos vestidos que homenageiam as vestimentas das mulheres do passado, ao mesmo tempo em que as candidatas passaram a ser cada vez mais instruídas a falar sobre as tradições que representam.
- Se nas primeiras décadas era um papel era mais ligado ao status, restrito a posar para fotos e dar algumas entrevistas, a partir da década de 1960 a organização percebe o potencial das soberanas em ajudar na divulgação da Festa, e elas passam a efetivamente trabalhar nesse sentido, com uma agenda intensa de compromissos. Isso também tornou a preparação mais exigente. Já não basta ser bonita, tem que estar preparada para falar sobre Caxias do Sul sob todos os aspectos - destaca Luiz Carlos Erbes.
Confira a seguir uma cronologia com os principais fatos sobre a escolha das soberanas da Festa da Uva.
Linha do tempo
1933 - A terceira edição é a primeira que reúne exposição, corso alegórico e escolha da rainha, até hoje a tríade que simboliza a Festa da Uva. A primeira rainha é Adélia Eberle (1910-1941), escolhida na véspera do início do evento.
1937 - Com o Brasil vivendo clima de acirramento político e com o nacionalismo imposto pelo governo de Getúlio Vargas, reprimindo inclusive a fala do idioma italiano, a Festa é organizada às pressas e a edição ocorre sem soberanas.
1950 - Após um hiato de 13 anos por conta da 2ª Guerra Mundial, a edição que marca a retomada serve também para comemorar os 40 anos de Caxias e os 75 anos da imigração italiana na região. Neste ano, cada município da região de colonização italiana tem uma representante no concurso, que consagra como vencedora a representante de Bento Gonçalves, Teresinha Morganti. A celeuma que se dá, motivada principalmente pela rivalidade entre Caxias e Bento, faz com que a partir da edição seguinte se crie uma regra de nascimento e/ou residência em Caxias pela candidata (outros dois critérios são estabelecidos: reunir condições morais e intelectuais e ser solteira).
Anos 1950 - Ganha ainda mais força nesta década a escolha das soberanas por cupons nos jornais da cidade. A rainha de 1954, Maria Elisa Eberle, foi eleita com 99 mil votos, quase o dobro da população de Caxias na época. Em 1958 a escolha passa a ser dividida entre o voto por cupom e por um corpo de jurados.
1961 - Pela primeira vez a comissão organiza o concurso algumas semanas antes da Festa, para que a rainha (Helena Robinson) fizesse uma viagem de 10 dias pelo Brasil, divulgando a festa em eventos como o carnaval do Rio de Janeiro e em capitais do Nordeste. A boa repercussão faz com que as viagens se tornem frequentes e o concurso ainda mais precoce, para que a divulgação ocorra com tempo para atrair mais visitantes a Caxias do Sul. A partir deste ano a escolha deixa de ser feita pelo cupom e passa a ser exclusiva do júri.
Anos 1960 - A escolha deixa de ser feita por cupons e passa a ser exclusivamente pelo júri. Os desfiles são realizados nas sedes de clubes sociais, como o Cruzeiro, o Juvenil, Recreio da Juventude e o Recreio Guarany. Em 1969 se inicia a tradição de premiar a rainha com um carro oferecido por um patrocinador da festa. Naquele ano, a rainha Elisabete Menetrier levou para casa um Fusca bordô, um oferecimento da vinícola Luiz Michelon S/A.
1981 - A edição foi marcada pelo primeiro quinteto de soberanas. Além da rainha, Marilia Conte, o júri alegou "alto nível das candidatas" para eleger quatro as princesas: Silvana Moreira, Bebel Eberle, Magda Martini e Nora Torelly.
Anos 1990 - A partir de 1991, a escolha passa a ser realizada nos Pavilhões, com a presença de torcidas organizadas e transmissão ao vivo pela televisão. O evento deixa de lado o glamour dos salões sociais e assume um caráter mais popular, sem abrir mão da elegância. A partir de 1994 a festa passa a ser bianual e, no desfile de escolha, os trajes de gala dão lugar aos vestidos típicos que homenageiam a imigração. O formato sofreu poucas alterações desde então.
2021 - A pandemia de coronavírus força o adiamento da 33ª Festa da Uva, originalmente marcada para fevereiro deste ano, para 2022. A escolha das soberanas será realizada no próximo dia 26, para número restrito de convidados e com transmissão pela internet. O pré-concurso, que iniciou em março de 2020, também teve de passar por adaptações, com atividades online e produção de material para as redes sociais, a fim de tornar as candidatas mais conhecidas do público.