O senso comum que associa uma cidade marcada pela atividade industrial ao cinza do concreto e à impessoalidade das fábricas se aplica cada vez menos a Caxias do Sul. A geração de grafiteiros que surgiu nas periferias da cidade rompe cada vez mais os limites entre o centro e o subúrbio, mostrando que a arte urbana pode estar em qualquer lugar, sem que a criatividade e a mensagem do artista se perca mesmo quando o trabalho – ou o trampo –, independente por sua natureza, é contratado.
O grafiteiro Gustavo Gomes, que em 2021 celebra 20 anos dedicados à arte, concluiu recentemente dois murais na área central da cidade: um no muro da Câmara dos Dirigentes Lojistas (CDL), outro no Ministério Público Federal (MPF) – este através do edital Signos da Cidade, financiado pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura. Ele ressalta que o grafite sempre teve seu espaço, mas percebe o respeito maior à autoria do artista como a principal evolução percebida nos últimos anos:
– Na antiga tinha muito o lance de tu ser chamado para grafitar um lugar, mas quando chegava já ouvia: “aqui tu pinta assim, ali pinta assado”. Hoje não existe mais isso. Agora o papo é: “Gomes, fica à vontade e faz o que tu quiser”. É um entendimento melhor do que é arte, que passa por deixar o artista manifestar aquilo que ele acredita.
Gomes considera que a pandemia fez despertar uma sensibilidade maior para a arte, algo comum em momentos de crise. Desde março do ano passado, marco inicial das restrições provocadas pelo vírus em Caxias, assinou de seis a oito murais, entre trabalhos internos e externos. O artista destaca que a inserção cada vez maior do grafite na área central é concomitante a uma procura crescente por parte de empresas:
– Começou pelo departamento de marketing, mas hoje são os próprios diretores das empresas que percebem a possibilidade da sua marca se comunicar melhor com as pessoas quando elas criam uma identidade visual a partir da arte. Isso é ainda mais interessante considerando que estamos trabalhando num setor extremamente industrial, onde essa inserção historicamente é mais difícil – aponta o caxiense, que já levou seu trabalho a mais de 50 países.
Parceiro de Gomes em diversos trabalhos pela região, Vitor Hugo Dell Osbel, o Stang, atualmente mora em Porto Alegre. Numa comparação entre as duas maiores cidades do Estado, o grafiteiro avalia que a população caxiense ainda não acostumou o olhar para a arte urbana tanto quanto os porto-alegrenses, que, por outro lado, convivem com as intervenções artísticas nos muros e fachadas há mais tempo. Mas Stang percebe que essa realidade vem mudando com o tempo:
– Quando a gente está pintando na rua (em Caxias), ainda nota alguns olhares estranhos, de quem não vê o grafite como arte. Acho que a cidade é mais fechada e valoriza menos a cultura, e quem faz arte na rua sofre mais com esse preconceito. Nossa missão é mostrar que o grafite é uma arte igual a qualquer outra, a única diferença é que, ao invés da galeria, o lugar dele é a rua. Qualquer rua, em qualquer lugar.
Há cerca de um mês, Stang foi um dos artistas convidados pela grafiteira e educadora social caxiense Fernanda Rieta para emprestar seu talento ao Centro de Convivência Capuchinhos, no bairro São Caetano. O local de acolhimento para idosos é circundado por um muro de 48 metros de extensão, que recebeu um pouco da arte de nove grafiteiros da cidade para dar mais alegria e esperança aos usuários.
– Foi uma honra fazer parte dessa iniciativa, feita no amor. Desenhei uma menininha sorrindo, para levar uma mensagem de alegria aos idosos nesses tempos tão difíceis. Também foi uma rara oportunidade da galera se juntar nesse período em que estivemos mais afastados. O grafite também tem isso de ser um compartilhamento – comenta Stang.
Primeira mulher a grafitar em Caxias do Sul, Fernanda Rieta pinta há 10 anos e também ministra oficinas e cursos de grafite para a garotada da cidade na Fluência Casa Hip Hop, no bairro Santa Fé. Como a arte imita a vida, faz do seu trabalho uma ferramenta de empoderamento das mulheres, retratando preferencialmente figuras femininas e frases de resistência.
– É uma forma de mostrar que a mulher pode estar em todos os lugares. Quando comecei não havia nenhuma mulher grafitando em Caxias, e ainda são poucas. No movimento hip hop a gente vê mais meninas seguindo pela dança, e menos pelo grafite – diz a artista.
Fernanda conta que o convite para grafitar o muro do centro de convivência partiu da direção do espaço, vinculado ao projeto Mão Amiga, como uma forma de receber os idosos com mais alegria e esperança quando puderem retornar após a vigência da bandeira preta em Caxias:
– Era um muro apenas rebocado, sem cor nenhuma. Como era muito grande, chamei o pessoal para ajudar e acho que assim ganhou mais vida. Vai alegrar os idosos quando eles retornarem – conta Fernanda.
Panone dá cores à cidade
Quando as restrições impostas pela pandemia fizeram cancelar uma série de participações em festivais na Europa e nos EUA, Fábio Panone Lopes logo imaginou estar diante de um ano perdido para a sua carreira, que completa 21 anos em 2021. No começo, o grafiteiro viu como saída se dedicar a iniciativas beneficentes, sendo que numa delas conseguiu arrecadar R$ 5 mil para compra de alimentos para famílias de bairros carentes de Caxias. Com o passar dos meses, no entanto, novas oportunidades de trabalho vieram, fazendo com que o período pandêmico tenha sido uma oportunidade de retorno às raízes.
- Ao longo desse ano pude perceber que as pessoas ficaram muito deprimidas, e ao mesmo tempo a arte foi uma forma encontrada para trazer um pouco de conforto, fazendo evocar bons sentimentos – destaca.
No final do ano passado, Panone foi criou uma arte na pista do Aeroporto Hugo Cantergiani, em Caxias. No início deste ano, renovou o grafite que assina em muro do Colégio Santa Catarina, onde estudou e começou sua trajetória artística. O trabalho de maior impacto, porém, foi realizado no Largo de São Pelegrino, em um muro do Colégio São Carlos. O mural, concluído em novembro, é um dos principais que Panone assina em Caxias:
– É muito gratificante poder ver crianças e adultos aplaudindo a arte urbana, parando para tirar fotos, trocar ideia, pedindo para que a gente explique como o trabalho é feito. Não era assim quando comecei. Acho que Caxias está conseguindo desmitificar essa questão dos murais e com isso a cidade ganha, porque fica mais colorida e mais bonita.
Dos muros para as redes
Entre os artistas reconhecidos por unir seu trabalho a causas sociais, poucos se engajaram de forma tão intensa quanto Andrigo Martins. Ao longo do último ano, contudo, após uma trajetória de 10 anos ligado a diversas ONGS e entidades assistenciais, realizando atividades formativas dentro do movimento hip hop, Andrigo optou por se desvincular da maioria destes projetos para focar em seu trabalho criativo. Fechou o estúdio que mantinha no centro e deixou temporariamente de lado as ruas para desenhar em casa, mergulhado nas possibilidades do mundo virtual, em especial com as charges. Também se dedica a escrever um livro infantil e à criação de um canal no YouTube, que terá conteúdos voltados para o ensino das artes visuais.
– Tenho recebido feedbacks muito legais, com algumas charges alcançando boa repercussão e gerando mais procura pelo meu trabalho. Teve uma delas, sobre o caso do menino acorrentado a um barril (ocorrido em Campinas, em março), que teve mais de 100 mil compartilhamentos – recorda Andrigo.
No grafite, entre os trabalhos mais recentes realizados em Caxias está uma série de desenhos pintados no Instituto Cristóvão de Mendoza, no início do ano passado. O convite partiu da direção após uma parceria de Andrigo com o Grêmio Estudantil da escola, que reúne alguns ex-alunos de oficinas ministradas por Andrigo no programa Mais Educação.
– Foi um período em que o Grêmio estava buscando grana para revitalizar a instituição e eu me coloquei à disposição para fazer alguns grafites. Começou com um Paulo Freire e uma Frida Kahlo. No ano seguinte, 2020, fui chamado para fazer um trabalho comercial, com alguns trabalhos dentro e da instituição. Essa ligação com as escolas e com a educação vai ser para sempre – comenta.
Segue lá!
Sábado (27) é comemorado o Dia Mundial do Grafite. E para acompanhar o trabalho dos artistas que participam da reportagem, siga: @andrigo.martins.1, @ririeta, @studioflop, @gomes_one e @stang.one