Os olhos de Ernesto já não funcionam como antigamente. Beirando os 80 anos, ele encontra dificuldade para se conectar com paixões como os livros e as fotografias. Mas o personagem é também dono de outra capacidade visual, muito mais aguçada, sagaz, aberta para o novo. Visão de mundo: e é ela que conduz o longa gaúcho Aos Olhos de Ernesto, atualmente disponível em plataformas de streaming como Net Now, Vivo Play, Oi Play e Looke. O roteiro adentra o mundo particular de Ernesto, idoso uruguaio que mora sozinho num antigo apartamento de Porto Alegre; ao mesmo tempo que narra sua jornada ávida pela descoberta e pelos reencontros.
A cineasta Ana Luiza Azevedo (veja entrevista abaixo) escreveu o texto em parceria com Jorge Furtado. A produção conta ainda com outros nomes do “dream team” da Casa de Cinema de Porto Alegre, como Nora Goulart, Fiapo Barth e Giba Assis Brasil. Além dessa, Aos Olhos de Ernesto carrega em si diversas potências. Uma delas é a da homenagem, já que o protagonista foi inspirado num personagem real (o fotógrafo italiano Luigi Del Re), de quem parte da memorabília foi parar no set, dando vida ao apartamento que serviu para a maior parte das filmagens. Esse cenário, aliás, e tão bem construído que se torna um personagem orgânico da história.
Outra potência do longa está em seu elenco. Para dar vida a Ernesto, Ana Luiza escolheu Jorge Bolani, conhecido por sua atuação em Whisky, clássico do cinema uruguaio. Ele mergulha profundo na mistura de sobriedade com intensidade que caracteriza o personagem. Na história, Ernesto enfrenta as dificuldades trazidas pela falta da visão, ao mesmo tempo que não quer deixar sua casa para viver com o filho (vivido por Júlio Andrade) em São Paulo. Tentando manter sua autonomia, Ernesto inicia uma amizade com Bia (em ótima performance de Gabriela Poester), jovem que também luta pela sobrevivência enfrentando seus próprios demônios. Assim como acontece com Bia e Ernesto na ficção, a rica troca existente entre Gabriela e Jorge fica visível em cena, acrescentando verdade à narrativa.
Para falar sobre terceira idade sem cair em clichês, é preciso boas doses de criatividade e poesia. Aí reside mais um trunfo do filme, que elege trechos da obra do escritor uruguaio Mario Benedetti para incorporar no texto. Seja em formato de música, livro ou poesia falada – há uma cena gravada numa batalha de slam –, a visão do poeta ilumina caminhos aos personagens. E ao espectador.
Mas talvez a principal força de Aos Olhos de Ernesto seja mesmo seu discurso humanista. Sem entrar na caixinha dos filmes políticos, o longa de Ana Luiza Azevedo apresenta uma história potente de celebração à troca de saberes, à tolerância. Ernesto é a personificação do poema Por que Cantamos, de Benedetti – sabiamente escolhido para compor o filme. Ele é alguém que milita pela vida.
:: Entrevista: Ana Luiza Azevedo
Pioneiro: Quais foram tuas principais inspirações para compor esta história?
Ana Luiza Azevedo: Começou pela história do Luigi De Re (fotógrafo italiano já falecido que que viveu em Porto Alegre). Eu estava filmando meu outro filme, Antes que o Mundo Acabe, e o Fabio Del Re, filho do Luigi, era o fotógrafo still do filme. O Fabio me contou o que estava acontecendo, que o Luigi era uma pessoa muito autônoma, mas estava ficando cego. Isso estava gerando um conflito interno. O Luigi se correspondia com uma irmã, que morava na França, e ele também estava perdendo essa possibilidade de ler e responder as cartas. Essa história ficou na minha cabeça. Aí comecei a pensar esse personagem, que está num momento de vida em que tu não escolhe as tuas limitações, elas são impostas, mas que tu tem como determinar de que forma deseja conviver com essas limitações.
O protagonista é uruguaio e boa parte do filme é falada em espanhol/portunhol. A escolha foi em função de o Rio Grande do Sul estar mais próximo dessa cultura?
A questão do ser estrangeiro era um outro elemento que eu queria trabalhar. Ter teu passado em outro lugar também acaba dificultando a velhice. Isso sempre me sensibilizou, especialmente a situação das pessoas que se exilaram por conta das ditaduras e que adotaram outros países não voluntariamente. É como se tu nunca pertencesse ao país onde está morando, porém, o outro já não é mais teu também. Esse era o sentimento que eu queria trabalhar. Tem um dado do exilado que é um apego muito grande por suas origens, memória, sua língua, sua cultura. E isso me interessava colocar também nesse personagem.
Como se deu a escalação de Jorge Bolani para o papel de Ernesto?
Ele é o melhor ator uruguaio em atividade, mas eu não tinha certeza se ia conseguir trabalhar com ele. É muito ocupado, faz muito teatro. Então nós fomos ao Uruguai para convidá-lo, já tínhamos mandado o argumento e ele adorou a história do filme. Ele é ótimo em cena, além de ser uma pessoa maravilhosa, muito generosa. Ele domina muito o trabalho dele de atuação, mas está sempre sedento para continuar aprendendo, e muito generoso com outros atores e equipe. Foi um presente poder trabalhar com ele.
Como a obra de Mario Benedetti se conectou ao teu roteiro?
Eu gosto muito da cultura uruguaia, sempre me interessei muito, tanto pela música como pela literatura, especialmente Benedetti. Quando comecei a construir essa história, ela me falava muito de coisas que o Benedetti escreveu. Eu queria construir esse personagem como um personagem político, assim como muitos uruguaios dessa geração, que tiveram uma atuação política. Eu não queria ter um discurso político, mas que isso estivesse na formação dele. Então, trazer o Benedetti num personagem que cultiva a cultura uruguaia e tem esse passado de engajamento político foi natural...
Como você descreveria o Ernesto?
Ernesto é um homem que tem uma vida interior muito rica, sempre se interessou muito pela leitura, pela música e isso para ele era suficiente. A solidão nunca foi pesada a ele, até o momento que começa a perder a visão. Essa limitação o deixa na iminência de perder as coisas que ele mais ama fazer. A solidão começa a ser um dado importante, porque ele corre o risco de perder sua própria autonomia. Mas ele tem muita dignidade na sua velhice e aprende com uma menina bem mais jovem que ele a se arriscar, a viver plenamente os 78 anos dele.
Você acha que essa visão mais humanista do filme pode ser interpretada como uma força de resistência aos tempos que vivemos hoje?
Eu acho que sim. Não é que falte humanidade, tem muita coisa bonita acontecendo, especialmente de solidariedade, neste momento. Mas na vida pública em geral está faltando muita humanidade sim. De maneira geral, parece que as pessoas esqueceram da importância de olhar o outro, de tentar entender o outro, independente de ele ser diferente de ti. Essa intolerância com que a gente está tendo que conviver dificulta os sentimentos de humanidade entre nós.