À convite do Almanaque, seis escritores avaliam as dores, os medos e as idiossincrasias, em meio à pandemia da covid-19, mas sem perder a reflexão, o humor ou a poesia nossa de cada dia. Confira:
Ode ao vidro de lotérica
Em tempos de pandemia, faz mais sentido o que Bram Stoker escreveu em Drácula, de 1897 – "a morte viaja depressa". Obviamente, na história do mundo, a morte já viajou em incontáveis formatos e velocidades. Ainda assim, a viagem mais perigosa me parece ser aquela da ordem da perversão – Voo sem conexões, direto para dentro da mente das pessoas. Leva uma falsa sensação de segurança, ilusão de controle, irracionalidade travestida de razão. Informações distorcidas ou completamente inventadas que vão na contramão de todas as evidências, de toda a lógica e consciência social. Voo raso. Golpe baixo.
Ambas (morte e informação) chegaram até nós com tempo hábil para que a prevenção fosse colocada em cena. Porém (alerta de ironia), quem diria que qualquer iniciativa nesse sentido seria ridicularizada pelo principal representante desta complexa nação? Conexão mínima com o bom senso aponta que tal postura não é nenhuma surpresa. Efetivamente, faltam soluções que protejam a vida agora e depois, em todas as suas mais básicas demandas. Falta amparo. Sobra descaso, desrespeito e intenções escusas. O ridículo se pretende aleatório, mas não o é.
Entramos, então, em um espiral de teorias da conspiração, polarizações e perda perigosa da noção de prioridade. Pensando bem, o trabalho em detrimento da vida tampouco é novidade. Ou seja, as questões em pauta não são inéditas, apenas expõem a falta de preparo de instituições, organizações e (des)governos no mundo todo. Escancara a fragilidade da vida, desigualdades e hipocrisias. Evidencia o poder do laço social tanto para o bem quanto para o mal, dentro do conceito de ética.
Na dúvida, Kafka sugere que “na luta entre você e o mundo, apoie o mundo”. Um modo interessante de pensar já que estamos agora todos à mercê de dois inimigos mortais da vida como a conhecemos: um é invisível e apenas é o que é – e o outro é tudo o que não deveria ser.
Aproveitemos que as lotéricas têm vidros blindados e façamos nossas apostas.
Lara Klinger, 29, é psicóloga e trabalha como educadora social na Fundação de Assistência Social (FAS). Autora premiada nas categorias contos e crônicas, nos concursos literários de Caxias do Sul em 2017, 2018 e 2019.
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As calçadas vazias
Houve um tempo em que não havia muros na esquina da Plácido de Castro com a Pedro Tomasi. A grande fábrica repercutia em noites solitárias, em que o céu testemunhava o vazio das ruas. Improvável, a multidão; era só o barulho das máquinas e fuligem das chaminés. Dormia a vizinhança e o horizonte prevalecia nos quatro pontos cardeais.
A caminhada se dava sem razão aparente, como a banalidade das coisas que constituem as histórias individuais. Não havia preocupação com tiros ou encontros desagradáveis, mesmo com a fraca iluminação – as árvores não tinham galhos dilacerados e as folhas, ainda que empoeiradas, estavam ao alcance das mãos.
A imaginação acelerava. Pequenos sonhos construídos, objetos voadores confundiam-se com estrelas, versos, fragilmente memorizados, eram depois registrados nos guardanapos, em ilhas no oceano urbano.
Houve a lembrança e a poesia. Mas, por esses dias, a olhar pela janela, às vezes vejo calçadas vazias e a fábrica faz tempo que deixou de jogar fuligem sobre as roupas. Tirante o lirismo da cena, estabelecida a confusão entre o direito de ir e vir como direito de liberdade, embora não absoluto, e a consciência coletiva, humanitária, as calçadas repentinamente voltam a ser ocupadas, marcadas com o que, logo mais, poderão ser manchas em nossas memórias, não aquelas manchas que sugeriam histórias no entorno da grande fábrica, mas talvez situações que se mostrem irrecuperáveis; outras, que terão que ser curadas.
Houve, então, aquele tempo em que não existiam muros, e encontrar alguém, mesmo numa rua de pouco movimento, era uma alegria. Agora, diante de mentiras, traições e juízos falsos, tudo volta a ocorrer como uma queda de braço entre o que se instala como real e o que é ilusão, mesmo que, logo ali na esquina, esta deixe de ser identificada como tal. Ao contrário do erro.
Nesse cenário de dor, desvalorização da ciência e da verdade, temo que estejamos errando e sendo enganados. Da janela, vejo as calçadas vazias... e, entre todas as possibilidades que imaginei para o futuro, a ignorância não fazia parte.
Dinarte Albuquerque Filho, 56 anos, é jornalista e poeta. Mestre em Letras – Literatura (UFRGS). Autor de Leituras na Madrugada (2014), entre outros.
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No triunfo da peste, o retorno do arauto
Uma idosa de costas, sentada na maca, com a camisola aberta atrás; paramédicos seguram seus braços. A cena, registrada por Fabio Bucciarelli, em Bérgamo, é uma síntese da quarentena. A fragilidade dela corre o mundo como um grito silencioso e anônimo, não foi preciso mostrar seu rosto nem esticar um microfone. O Jornalismo tem essa face: pode nos confrontar com o que transcende as estatísticas, trazer realidades para perto – arauto do perigo iminente. As costas arqueadas dessa mulher comportam o paradoxal peso de um vírus e toneladas de menosprezo: “gripezinha”. Seria pouco dizer que ela poderia ser a sua avó. Empatia é algo mais do que se colocar matematicamente num grupo de risco, ou exatamente no lugar dos parentes. A divisão entre um núcleo idealizado e “os outros” constrói um abismo ideológico por onde passam os medos. Foi assim que triunfou o escárnio como catarse. Agora, em meio à crise, essa mentalidade ameaça tomar para si poderes de vida e morte, decidindo quem fica ou quem sai sem perceber que o vírus não escolhe sobrenome, e se atrapalha com as idades.
Os dias começam e terminam enquanto acessamos notícias. Tenho lido muita informação bem escrita, admirado profissionais que estão bem longe de receber palmas como as que surgem (talvez para abafar panelaços) na monotonia das sacadas. O momento abre os olhos para a importância dessa profissão que escolhi. Era 1992, o diploma ainda uma exigência, e tínhamos a intenção de “mudar o mundo”. Talvez tenhamos sido cúmplices, por escassa mobilização, dos ataques sucessivos. Nos dois últimos anos, a censura voltou em forma de assédio, interrupções e ameaças. O fato é que, em meio à crise, precisamos ainda mais de informação. Ante pronunciamentos burlescos, como os sujeitos saberão que não é seguro pendurar a máscara na orelha e voltar para as ruas?
Professora da UCS, tenho tido, nas aulas a distância, o alento de turmas conectadas com o reencantamento da profissão. Nos sentimos muito próximos na tarefa de estender o link para a videoconferência como quem se dá as mãos. O desafio de pensar um Jornalismo mais humano, que há muito está no centro dos nosso debates, se fez urgente em meio a essa virose que escancara um adoecimento social. Se não conseguimos mudar o mundo, ao menos estamos trabalhando por ele.
Alessandra Rech, 45, é jornalista e escritora. Doutora em Literatura Brasileira e professora da UCS. Autora de Mirabilia, Prêmio Vivita Cartier 2015, entre outros.
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Poema em dor maior
rebentou aqui um acorde em dor maior
rasgando o vento frio da serra gaúcha
soprado pelos olhos de mar
um acorde sem pretensão de encantar
porque encantamento seria utopia
em romper o silêncio cortante que engole as ruas
seria um claustro maior do que o do menino que acena do prédio ao lado, cerrado de vidros e concreto
rebentou aqui um acorde despertando o burguês, cômodo em seu confinamento bem sucedido
um acorde em dor maior que fere mais do que qualquer bandido, rótulo indicado socialmente
rebentou um acorde lamento, maior do que lágrima em não abraçar pai e mãe
maior do que toque não desferido
um sustenido roto, pelos privilégios que emparedam
pelos ganhos não divididos
um som com cheiro de chuva, que lava dias de claustro
rebentou aqui um poema em dor maior pela brutal ignorância
vívida em corações ressequidos
um acorde choro da criança, que grita para ser ouvida
e se sente inaudível, incompreendida
como as cornetas da revolução a combater o inimigo invisível
como os cometas que cortam o céu e deflagram a nova cruzada
como encruzilhada
rebentou aqui um
acorde!
alarme que não titubeia
um acorde que empunha a palavra como a cura crua, ainda omissa
que desembainha a lança regada as conjunções dos signos
um acorde caduco, matuto acorde que crê
reconhecer que se aprende com os mortos a sete palmos
rebentou aqui um acorde com garras
a ecoar na selva de pedras, expressão clichê
entre jardins artificiais, imponentes que sobreviverão as intempéries
mais do que nós, em cinzas
mais do que nós, em carne putrefata
mais do que nós, em amarras financeiras, politicas amarras
rebentou aqui um acorde, entre o suor dos corpos a cavar covas
em que a dor maior é constatar a pequenez, do pobre que só visa o lucro
em que o astuto é imerso em fétida burrice
um acorde liberto, reflexo do astro rei
que nasce imponente e se põe ao badalar do sinos
rebentou aqui um acorde dissonante, lavado na falta de voz
uma foz muda, um mudra sem dedos
enfermidade maior do que se pode curar
Nil Kremer, 40, é poeta, atriz, arte- educadora, professora de língua portuguesa, e formada em Letras pela UCS. Autora de Kamikaze (2016), entre outros. Nos últimos três anos foi coordenadora da Mostra Literária da Rede Recria.
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Contagiar é preciso
E tem aquela do vírus liberal na economia e conservador nos costumes. Esse vírus mora num morcego, com milhões de vírus iguais. Ele odeia morar no morcego – todos os vírus tratados da mesma forma, independentemente de seu esforço. Um absurdo. Assim como a maioria dos organizamos inferiores, esse vírus acredita em meritocracia.
Esse vírus, liberal na economia e conservador nos costumes, acorda numa manhã e percebe que sua existência carece de significado. Aquilo não é vida – e nisso ele concorda com muitos especialistas e biólogos. Ele quer pensar fora da caixa, expandir os horizontes. Quer vencer pelo próprio esforço, crescer, ser bem sucedido. Quer sair da zona de conforto – no caso dele, o morcego.
Ele vai até o espelho, ajeita sua transcriptase reversa, sacode suas glicoproteínas – respiraria fundo, se tivesse um pulmão ou mesmo uma simples mitocôndria – e pula para fora do morcego.
Olha para os lados: arranha-céus, uma grande muralha, placas de publicidade em mandarim. Diabos! Está na China. Uma ditadura comunista. Esse lugar sujo, cujo governo que quer destruir o ocidente por meio do marxismo cultural. Então se dá conta, horrorizado, que é um vírus chinês. Logo ele, fã da Escola Austríaca. Logo ele, que leu Mises no original. Ele tenta pular de volta para o morcego, mas o bicho já está longe.
O vírus se lembra, então, que ouviu rumores que no Brasil o povo tinha elegido, em 2018, um governo liberal na economia e conservador nos costumes, como ele. É isso! Vai ao Brasil procurar seus semelhantes. Tenta chamar um Uber, mas não há pessoas ou carros nas ruas. Por algum motivo as maravilhas da nova economia parecem ter entrado em colapso. Então salta no ar e pega uma monção (enquanto sobrevoa o Pacífico, lá do alto, percebe que a Terra não é plana, como acredita a maioria dos vírus e bactérias, mas essa é outra história).
O vírus não está para brincadeira e chega direto em Brasília. As ruas estão vazias. Deserto total. Ele precisa desesperadamente de um organismo para infectar, ou vai morrer nesse calorão. Até que de longe ele vê algo que parece se mexer. Flutua até lá no vento. Não conhece aquele bicho. É feio, bem mais feio que o morcego. Parece meio burro também. O vírus sente repulsa, mas aquela besta é sua única opção. Decide pular para dentro assim que a criatura abrir a boca. E ela abre:
- É só uma gripezinha.
E então ele entra. Lá dentro, bilhões de vírus como ele, que chegaram antes. É recebido com festa. Abraça a todos e decide que não quer mais sair da zona de conforto. Vai ficar ali, vivendo em comunidade. No meio da algazarra, ainda ouvem a criatura dizer:
- Testei negativo, talquei?
Todos gargalham.
Cristiano Baldi, 43, é professor e escritor. Autor de Correr com Rinocerontes (2017).
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Abril
Da janela do terceiro andar, neste exato momento, vejo idosos e muita movimentação de carros na minha rua. E isto que é um bairro pacato. Me parece que o discurso de algum charlatão surtiu efeito. Melhor dizendo, um fantoche de um charlatão que vive na Virgínia. Esse fantoche, infelizmente, chamamos de presidente.
Quando soube das carreatas em favor da abertura do comércio, alguns amigos disseram que fui generoso demais em achar que eram pessoas que estavam em negação coletiva diante de um diagnóstico traumático. Talvez não seja tão generoso agora, no exercício que vou propor:
Por enquanto, os números dos jornais são abstratos demais. Que sejam 100 mil mortos, 200 mil mortos, 300 mil mortos... tudo parece igual para o “ativista da carreata”. Enquanto números ou traços quebrados representados em gráficos, os mortos não têm forma, não têm faces, não ocupam espaço, serão sempre os outros, entidades passíveis das mais diversas e mesquinhas relativizações. Os mortos ainda não estão dentro de comboios de caminhões do exército. Os mortos não estão ocupando grandes espaços públicos, frigoríficos improvisados. Toda a vez que lhes derem um número, imagine o espaço físico que esse número de mortos ocuparia. Faça perguntas: quantos caixões ocupariam um estádio de futebol? Quantos caixões cabem dentro de um caminhão do exército? Cem mortos hoje? Cento e cinquenta ontem? estes mortos representam quanto da população do seu condomínio? Qual a cifra percentual da população do seu bairro são os mortos do dia? Olhe para um espaço vazio da sua casa, um cômodo, um quintal, o que seja, e imagine quantos mortos cabem ali. Se não quiser imaginar mortos, imagine doentes então. Imagine camas hospitalares no seu hall, dentro do seu comércio, da sua empresa. Se quiser também imaginar os sons ciciantes de sistemas respiratórios debilitados, o compasso dos respiradores mecânicos, vá em frente, melhor ainda. Se quiser imaginar os familiares do doente na sua sala de estar cravejada de swarovski, fique à vontade. Vá se acostumando com a ideia de que, em breve, estes números ganharão rostos, formas, e seu exercício de imaginação poderá ganhar contornos muito realistas.
O quão preparado você estará e onde você estará quando Abril chegar?
Maikel de Abreu, 38, é escritor e técnico em enfermagem. Autor de Couro legítimo, e outros contos (2011), entre outros.