Em 8 de outubro de 1985, um Maneco “mais magro e sem cabelos brancos” discursava na abertura da 2ª Feira do Livro de Caxias do Sul, no calçadão da Praça Rui Barbosa (hoje Dante Alighieri), quando foi alertado pela irmã: “termina logo que tua filha está nascendo”. O livreiro apressou a fala e de imediato correu para o hospital, onde acompanhou a chegada da caçula Elisa.
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O episódio, embora já distante, é narrado como se tivesse acontecido há poucos dias, com riqueza de detalhes e tons de comédia teatral. E também ilustra a paixão pelo ofício exercido religiosamente desde janeiro de 1970, quando a população caxiense era de 174 mil habitantes.
Irreverente, dono de um raciocínio aguçado para as vendas (“negócio é negócio”, dizia ainda criança, ao fazer trocas com colegas de aula) e sempre gesticulando enquanto conversa, Arcangelo Zorzi Neto é o 10º dos 14 filhos do casal de agricultores Ana Simionato e José Zorzi. Passou a infância na colônia — mais precisamente na comunidade de Travessão Paredes, no interior de Nova Pádua, à época, pertencente a Flores da Cunha.
Com o sonho de continuar os estudos, mudou para Caxias do Sul no final de 1968, aos 12 anos. Contrariando a irmã mais velha, que alegava falta de recursos, decidiu se matricular no Colégio do Carmo — e precisou trabalhar à noite, fazendo limpeza na república onde morava e ajudando a produzir polígrafos, para pagar as mensalidades.
O primeiro emprego como livreiro viria alguns meses mais tarde, a convite de Idalino Zorzi, irmão que assumiu a gerência da recém-inaugurada filial da Sulina na cidade.
— Eu era um guri, mas já atendia na papelaria e ajudava a vender livros. Foi aí que peguei o gosto. Trabalhei seis anos e meio na Sulina, depois por três anos e meio na São Paulo. As pessoas chegavam e procuravam por mim, queriam minhas sugestões — recorda o empresário, hoje aos 63 anos.
Abrir o próprio negócio foi questão de tempo: obteve o registro da sua loja em junho de 1980. A primeira sede, localizada na Rua Sinimbu, entre Garibaldi e Visconde de Pelotas, foi montada com móveis usados cedidos pela Livraria São Paulo, que há pouco passara por reformas.
O forte envolvimento com escritores, colegas do ramo e comunidade acadêmica logo geraria frutos. Maneco integrou o grupo responsável pela retomada da Feira do Livro de Caxias do Sul, em 1984 — quatro edições do evento chegaram a ser realizadas nos anos 1970.
— Participei de todas as feiras, desde quando eram apenas duas ou três banquinhas na frente da Catedral, com chuva e com sol — orgulha-se.
Em 1991, o empresário deu início a um novo capítulo na já recheada trajetória, criando sua própria editora. Com foco em autores locais e na valorização do dialeto vêneto, publicou “seguramente mais de 500 títulos”, do experiente José Clemente Pozenato ao então estreante Uili Bergammín Oz, passando por Flávio Luis Ferrarini e Rejane Rech:
— Ser livreiro é ajudar na formação de uma sociedade. Penso ter contribuído não só para difundir o livro em Caxias, mas também para incentivar que novos autores pudessem publicar.
Mesmo diante do reconhecimento da comunidade e dos pares, o atual presidente da Associação dos Livreiros Caxienses (Alca) é cauteloso quando questionado sobre o futuro da profissão. Maneco, que chegou a comandar nove livrarias pela Serra, atualmente conta apenas com a matriz, localizada na Rua Marechal Floriano.
Evita colocar a internet como inimiga, embora prefira “ler no papel”. Não titubeia ao afirmar que, se tivesse novamente 23 anos de idade, não se aventuraria a abrir uma livraria — sobretudo num país em que apenas 17% dos municípios contam com estabelecimentos do tipo, segundo o IBGE.
— O mundo está totalmente diferente. E não é só culpa da facilidade em comprar pela internet, mas muitas pessoas não valorizam o livro. Enquanto isso, vou resistindo, mantendo a esperança de que as livrarias sobrevivam. Eu quero morrer sendo livreiro — desabafa.
Entre as estratégias pela sobrevivência, não descarta diversificar a gama de produtos. Uma das alternativas, que podem pintar já nos próximos meses, é a inauguração de uma adega.
— Livro combina com vinho. Vou decidir o futuro ao longo do ano — projeta, sem abandonar o tom brincalhão que soube sobreviver aos cabelos brancos e à era do e-book.