Quando o uruguaio Ignacio Martínez estreou na literatura com a coletânea de contos infantis El libro de todos, em 1984, muita coisa era diferente de hoje: escutava-se música em vinil ou cassete, via-se filmes no cinema ou em VHS, conversava-se à distância somente por telefone e lia-se apenas no papel.
No intervalo de 35 anos, os aparelhos digitais e a conexão pela internet transformaram nossa maneira de comunicar com o mundo e interagir com a produção artística. Mudanças que, para Martínez, não abalaram a paixão por contar boas histórias.
Aos 64 anos, com mais de 120 livros publicados, além de 40 textos para teatro, ele foi o convidado especial dos últimos dias da 35ª Feira do Livro de Caxias do Sul. Em sua passagem pela cidade, visitou as crianças da Associação Criança Feliz, no bairro Fátima, e participou de bate-papo na Casa da Cultura abordando os livros como território livre para sonhar.
No intervalo entre uma atividade e outra, recebeu a reportagem do Pioneiro para falar sobre o papel da literatura nos tempos atuais. Em meia hora de conversa, Martínez, agraciado oito vezes com o Prêmio Nacional de Letras, concedido pelo governo do país vizinho, revelou porquê escreve para crianças e relembrou sua relação de amizade com Eduardo Galeano (1940-2015), autor de As Veias Abertas da América Latina.
Atualmente membro do Conselho de Direitos Autorais, órgão independente do Ministério da Educação e Cultura do Uruguai, Martínez também defendeu a importância dos editais de financiamento público à produção artística.
Sete Dias: Como nasceu a paixão pela literatura?
Ignacio Martínez: Começou quando eu era criança, na escola, e continuou em casa, onde sempre havia muitos livros. A palavra escrita sempre foi uma amiga minha e do meu irmão, que hoje é diretor de biblioteca. Creio que, se na minha casa tivesse havido armas, talvez eu fosse militar. Mas não, me amaram e me deram livros. Isso ajudou para que eu me voltasse à literatura, para a criação de textos, poesias, peças de teatro, contos, novelas.
Por que escrever para crianças?
O mundo está num momento tão grave, que às vezes sinto que escrever para adultos é uma perda de tempo, não adianta mais. Temos que trabalhar com a geração que está vindo, para que sejam melhores que nós. Não quero desestimular nenhuma criação para adultos, mas me sinto mais comprometido com as crianças e com os jovens.
Mudou-se a maneira de contar histórias para o público infantil dos anos 1980 para hoje?
Não, mas apareceram novos temas. Eu creio que o escritor tem uma função muito importante que é mostrar sua arte e convidar a pensar. Não para ensinar ou transmitir moralismo. Não acredito em didatismo na literatura. Quem lê não precisa saber de estrutura do idioma ou de significação das palavras, assim como ninguém precisa entender de fusas, semifusas e colcheias para ouvir música. O que importa é que a música nos envolva, que a palavra nos comova.
Como a internet pode ajudar na formação de leitores?
A internet, pelo menos no Uruguai, não tem apresentado problemas ao livro impresso. Temos um programa educativo que presenteou com um tablet todos os estudantes dos seis aos 18 anos. Nesse tablet, há uma biblioteca com milhares de livros. Me parece muito importante que a tela também seja um veículo para leitura. Não me preocupa se as pessoas leem na tela ou no papel. O importante é que leiam.
O Brasil vive um momento delicado para a criação artística, com recente ameaça de recolhimento de livros na Bienal do Rio e ataques a artistas em redes sociais. Como percebe esse momento?
Vejo, não só no Brasil, que há uma reação de um sistema injusto, violento e mentiroso, querendo que as pessoas não vivam a liberdade. E os livros são territórios de liberdade. Isso explica porque essas forças retrógradas querem dominar o mundo dominando primeiro nossas cabeças. O livro, portanto, é um inimigo, assim como o teatro ou a música.
Muitas vezes, nas livrarias brasileiras, é mais fácil encontrar autores norte-americanos e europeus do que latino-americanos. O que é preciso fazer para que a literatura do continente circule melhor? Creio que essa é uma função dos governos. A indústria privada dos livros é assim: quer vender e lucrar. Por isso precisaríamos convocar um simpósio de ministérios da Cultura e pensarmos como atender esse grande mercado de quase 600 milhões de habitantes do México para baixo. Eu venho de um país que, me honra dizer, está em primeiro lugar na produção de livros per capita. Mas ainda há muito por fazer na região. Sobretudo, para democratizar a produção e a publicação.
Você é favorável ao financiamento público para a produção artística?
Sim, absolutamente. Deveriam existir editais públicos para a produção artística, como há em alguns países. Em Cuba, a obra completa de Martí (José Martí, 1853-1895) é mais barata que uma garrafa de uísque. Não tomo por exemplo por ser Cuba, mas por ser uma das mais lindas propostas de trabalho literário.
No Brasil, quando falamos em literatura uruguaia, logo pensamos em Eduardo Galeano, com quem você teve uma longa relação de amizade. Qual a influência de Galeano na sua obra?
Eduardo Galeano é um dos melhores filhos da nossa América. A melhor forma de homenageá-lo é difundir seus livros. Ele me influenciou muito como escritor e como pessoa, influenciou toda uma geração. Galeano era um comunicador excepcional, que fez da palavra uma linguagem poética, falando de temas complexos de maneira sensível.
Para finalizar, que autor brasileiro recomenda?
Os amigos que escrevem para crianças, como Carlos Urbim, que já morreu. Jorge Amado também é extraordinário, assim como a poesia e a canção. Falo em Chico Buarque, Caetano Veloso, Maria Bethânia. Isso é algo que o Brasil conseguiu como ninguém: fazer da poesia uma canção, um vínculo que sensibiliza a todos, onde a música não serve apenas para sacudir-se, mas também para sentir.