Trata-se de uma competição de filmes, mas o clima de disputa entre os profissionais da área do audiovisual deu lugar à união por uma causa maior durante a 47ª edição do Festival de Cinema de Gramado. Isso por conta do preocupante cenário que o cinema brasileiro vem enfrentando — com desmanche na Ancine e censura a produções com temáticas julgadas pelo governo federal como impróprias, por exemplo. Esse tom de “estar junto e resistindo” foi defendido pela maioria dos artistas que passou pelo festival neste ano. Muitos, inclusive, manifestaram suas posições no palco do Palácio dos Festivais, caso de Miguel Falabella, que leu uma carta aberta em apoio ao audiovisual brasileiro, assinada por mais de 60 entidades ligadas ao setor, na quinta à noite.
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É claro, então, que a noite de premiação também teria momentos em sintonia com esse clima de união e força. Talvez o principal deles tenha ocorrido fora do Palácio dos Festivais. Quase como uma extensão do ato protagonizado por produtores gaúchos dias antes, a noite da premiação teve protesto com participação de profissionais ligados a praticamente todos os filmes brasileiros na competição. Dezenas passaram pelo tapete empunhando cartazes de filmes nacionais e fazendo um apelo em forma de grito de guerra: "pelo cinema, pela cultura, por uma arte livre e sem censura". Havia também uma bandeira do arco-íris e outra com a inscrição "Pelo cinema LGBT". O grupo foi vaiado por boa parte do público que lotava bares e baladas eletrônicas no espaço que circunda o tapete vermelho, na Rua Coberta de Gramado. O público das festas reagiu jogando gelo nos artistas. Isso tudo gerou muita indignação e acabou motivando diversos discursos durante a premiação.
— Isso é uma quebra, uma fissura que não tem volta. Sejam simpatizantes (a Bolsonaro) mas não sejam coniventes com a barbárie. Mais empatia, mais bom senso — disse o diretor gaúcho Emiliano Cunha, três vezes premiado pelo filme Raia 4, que relatou ter sido agredido durante o ato, mesmo estando com a filha pequena no colo.
Vários filmes escolhidos vencedores na noite do sábado também acabaram tendo peso político, caso dos curtas Sangro (animação sobre a vida de um soropositivo), Marie (protagonizado por duas atrizes trans) e o longa O Homem Cordial (no qual o protagonista defende uma criança negra acusada de um furto sem provas). O maior ganhador de kikitos da noite, o cearense Pacarrete, igualmente dialoga com a situação atual, trazendo um olhar bem sensível à temática da valorização da arte. O longa de Allan Deberton revela a luta de uma bailarina aposentada (Pacarrete, personagem real) para ter sua arte valorizada numa pequena cidade do interior nordestino. Marcélia Cartaxo venceu a categoria de melhor atriz — para alegria geral do público presente — e discursou em favor da cultura.
— É uma honra receber esse prêmio. Dedico à Pacarrete, mulher, artista, exemplo de resistência. Todo artista precisa resistir. Viva o cinema brasileiro, viva o nordeste, viva "os paraíba" — defendeu ela, ovacionada pelo público.
Allan Deberton, que discursou ao receber kikito de melhor filme e melhor diretor por Pacarrete, também fez uma fala política, escolha praticamente inevitável.
— Enquanto nossos corações se abalam porque tem um vilão por aí querendo nos destruir, o que me deixa feliz é que mais do que nunca estamos unidos. Fiquei profundamente triste quando chegamos aqui com essa manifestação e fomos atingidos por gelo. Estar aqui, na verdade, foi revigorante porque eu sinto que essa energia que nos junta é uma energia que nunca vai acabar. Vamos ser sempre bravos. Vamos ser sempre Pacarretes — sentenciou o diretor, que dias atrás teve o projeto Transversais (alinhado com questões LGBT e selecionado por edital de tevês públicas) abortado pelo presidente da República.
Vencedores do 47º Festival de Cinema de Gramado
Longas Brasileiros
:: Melhor Filme: Pacarrete, de Allan Deberton
:: Melhor Direção: Allan Deberton, Pacarrete
:: Melhor Ator: Paulo Miklos, em O Homem Cordial
:: Melhor Atriz: Marcélia Cartaxo, em Pacarrete
:: Melhor Roteiro: Allan Deberton, André Araújo, Natália Maia e Samuel Brasileiro, por Pacarrete
:: Melhor Fotografia: Edu Rabin, por Raia 4
:: Melhor Montagem: Joana Collier e Fernanda Krumel, por Hebe
:: Melhor Trilha Musical: Sascha Kratzer, por O Homem Cordial
:: Melhor Direção de Arte: Tulé Peake, por Veneza
:: Melhor Atriz Coadjuvante: Carol Castro, em Veneza e Soia Lira, em Pacarrete
:: Melhor Ator Coadjuvante: João Miguel, em Pacarrete
:: Melhor Desenho de Som: Rodrigo Ferrante e Cauê Custódio, por Pacarrete
:: Prêmio especial do Júri: 30 Anos Blues
:: Júri da Crítica: Raia 4, de Emiliano Cunha
:: Melhor filme do Júri Popular: Pacarrete, de Allan Deberton
Longas estrangeiros
:: Melhor Filme: El Despertar de Las Hormigas, de Antonella Sudasassi Furnis
:: Melhor Direção: Juan Cáceres, por Perro Bomba
:: Melhor Ator: Fernando Arze, em Muralla
:: Melhor Atriz: Julieta Díaz, La forma de las horas
:: Melhor Roteiro: Bernardo e Rafael Antonaccio, por En el Pozo
:: Melhor Fotografia: Rafael Antonaccio, por En el Pozo
:: Prêmio especial do júri: para as meninas Isabella Moscoso e Avril Alpizar do filme El despertar de las hormigas, por suas excelentes atuações.
:: Menção Honrosa: para a direção de arte de Dos Fridas
:: Júri da Crítica: El Despertar de Las Hormigas, de Antonella Sudasassi Furnis
:: Melhor filme Júri Popular: Perro Bomba, de Juan Cáceres
Longas Gaúchos
:: Melhor filme: Raia 4, de Emiliano Cunha
Curtas Brasileiros
:: Melhor Filme: Apneia, de Carol Sakura e Walkir Fernandes
:: Melhor Direção: Diogo Leite, por O Menino Pássaro
:: Melhor Ator: Rômulo Braga, em Marie
:: Melhor Atriz: Cassia Damasceno, em Mulher que Sou
:: Melhor Roteiro: Renata Diniz, por O Véu de Armani
:: Melhor Fotografia: Sebastian Cantillo, por A Ética das Hienas
:: Melhor Montagem: Daniel Sena e Thiago Foresti, por Invasão Espacial
:: Melhor Trilha Musical: Carlos Gomes, em Teoria Sobre Um Planeta Estranho
:: Melhor Direção de Arte: Gutor BR, por Sangro
:: Melhor Desenho de Som: Gustavo Soesi, Um Tempo Só
:: Prêmio especial do júri: para as atrizes Divina Valéria e Wallie Ruy, em Marie, por nos permitirem vivenciar deslocamentos corporais inesperados e por imaginarem um futuro travesti num país que mais mata trans no mundo.
:: Júri da Crítica: Marie, de Leo Tabosa
:: Melhor Filme Júri Popular: Teoria Sobre Um Planeta Estranho, de Marco Antônio Pereira
:: Menção Honrosa: a Ester Amanda Schafe, de A Pedra, pela vigorosa interpretação e pelo talento promissor que revela.
:: Prêmio Aquisição Canal Brasil: Marie, de Leo Tabosa