Por todo o sempre, Caxias do Sul será cenário da vida imigrante e lugar de prosperidade e oportunidades. Também será conhecida como a Caxias da fé, que é solidária ao próximo. E como esquecer do trabalho em jornadas de três turnos, como se buscasse romper o limite das 24h? Lá no início da Avenida Júlio de Castilhos, tem o monumento símbolo da saga imigrante, mas não parece haver consenso sobre o que o casal vislumbra. Porque, da mesma forma que a cidade se revela pujante, parece não dar conta das pequenas contradições da vida moderna.
Um dia na vida de Caxias é suficiente para assistir a cenas de doçura, mas também de virulenta violência. O choque entre o amor e a morte parece nem mais suscitar espanto. Porque o feminicídio transita por aí banal, matando o amor. A vida urgente, de quem está por um triz, perde espaço para disputas retóricas nas plenárias e palanques da cidade. Caxias pulsa, resiste, cresce, amplia seus limites geográficos, reaquece a economia, reconfigura o modo avançar.
Percebe-se como parte deste DNA Caxiense um certo gosto pelo contraditório, pela dicotomia, pela fervorosa paixão Ca-Ju de ser. Quem nunca ouviu de um caxiense "raiz" que a cidade só cresceu desse jeito porque "Caxias" é o cara que olha para o quintal do vizinho e promete deixar sua grama mais verde ainda. Isso é um problema? Não, é só o sintoma de uma cidade que defende suas causas com vigor e amor.
Há quem reclame da falta de opções de alimentação nas madrugadas. Sim, a maioria desconhece os lugares que servem um bom jantar às cinco da manhã. Da mesma forma, há quem dispare nas redes sociais sua indignação pelos moradores de rua, mas nunca saiu de casa para abraçar o desabrigado, servir um jantar, e por assim dizer, cumprir o "amar ao próximo", como ensinou Jesus Cristo.
Um dia na vida de Caxias revela nesta reportagem como pulsa a cidade durante as 24h. É um recorte da vida como ela é, resguardando os limites da intimidade das famílias, e trazendo à luz da cena personagens ocultos, e quase sempre anônimos. Apesar da tensão e da pressão, os que vivem ou trabalham em Caxias aprenderam a amar a cidade, mesmo que em muitos momentos seja como aquele casal que sequer sabe por que ainda está casado. Mas, no final das contas, é por amor.
Mercado sem crise
Jair Machado estaciona sua casa de lanche sobre rodas, ao final das tardes, na Rua Dr. Montaury, quase em frente à Casa da Cultura, em Caxias. É daqueles movimentos que de tão repetitivos tornam-se invisíveis. Porque o Super Dog já se confunde com a paisagem. Mas a resistência de Jair, que há pelo menos 10 anos vai noite adentro para oferecer um cachorro quente aos clientes dessa Caxias que não para — seja por causa do trabalho ou dos divertimentos que a noite oferece — segue livre da crise econômica.
— Crise não existe em Caxias do Sul, pode até existir para alguns, mas para a alimentação não existe — afirma Jair Machado, 35.
A rotina é de segunda a segunda, mas concentra o maior público nos finais de semana.
— Na sexta, eles vem cedo, até a meia-noite ou 1h da madrugada, porque a maioria trabalha no dia seguinte. No sábado, já é o contrário, o movimento começas às 23h e vai até de manhã. Eu geralmente vou para casa na manhã de domingo, às 6h30min.
Conexão Caxias - Farroupilha
Micael Piazza trabalha há oito anos na Soprano, na unidade que fica na entrada de Farroupilha. Diariamente Micael atravessa Caxias, durante o início da tarde, para chegar à cidade vizinha e entrar na empresa às 15h, de onde só sairá depois da meia-noite. Ele lidera os segundos e terceiros turnos da empresa, que gradativamente têm ampliado sua jornada desde a metade de 2016. Mas como é a vida de quem trabalha no contra turno da maioria das pessoas?
— A gente tem de se adaptar, porque a gente perde um pouco da vida noturna e da vida social. Mas tem coisas boas, porque temos a manhã para ir ao banco, ou até para ir a um médico, sem que precise de atestado — defende Micael Piazza, 29.
Muitos casais acabam por se encontrar à noite em casa, para jantar e descontrair. Mas com Micael é um pouco diferente:
— Nós almoçamos juntos, e nos finais de semana é quando saímos juntos para aproveitar as atividades de lazer.
Conexão Bento - Caxias
Nesse vai e vem de trabalhadores que rompem fronteiras para cumprir suas jornadas, está o enfermeiro Bruno Andreis.
— Meu plantão é das 19h às 7h, e eu venho de Bento para cá de van. Quando termina meu turno a van me leva para casa, e se eu não estiver de plantão no outro trabalho, eu descanso um pouco e durmo das 8h às 14h _ revela Bruno Andreis, 29 anos, que além de ser enfermeiro do Pompéia, trabalha na Transul Emergências Médicas.
— É desgastante — confessa, olhando para o relógio e percebendo que já haviam passado 4h de atividade intensa, sem que notasse a hora correr.
— Nossa demanda é muito intensa. É difícil parar — resigna-se.
A pressão é grande, mas Bruno explica que os profissionais da saúde precisam atender as pessoas com respeito e dedicação, mas não podem envolver-se com seus dilemas.
— Aqui é tudo muito rápido, procuramos o diagnóstico logo, porque o quanto antes o paciente tiver uma resposta melhor.
Puxar peso na madrugada
Há quem procure uma academia para, no intervalo do treino, fazer aquela selfie no meio da galera. Mas também é verdade que muitos procuram terminar nos horários mais calmos da noite e agora, da madrugada. Não é de hoje, que academias da cidade oferecem essa alternativa. Na Engenharia do Corpo, por exemplo, cerca de 40 pessoas treinam entre a meia-noite às 6h.
_ O público alvo é de pessoas que saem do segundo turno, estudantes que saem da faculdade e que acham o horário do vespertino e da noite muito corrido, então o pessoal busca pela madrugada, por ser mais calmo _ explica Fabiano Dutra, supervisor do turno da noite.
Chapa quente
O mercado de serviços de alimentação 24h em Caxias é tão, mas tão insignificante que as entidades de classe e sindicatos sequer tem um levantamento oficial. Mas quem transita por Caxias, e quer comer alguma coisa depois das 23h encontra mais porta na cara do que opções para matar a fome. Uma das alternativas, realmente 24h em Caxias, é o Zanuzi, na Visconde de Pelotas.
— Quem procura um lanche pode até comer na rua, mas aqui resolvemos dar a opção de lanches, mas ampliar e servir pizzas, filés e a la minutas — explica Edemar Escain Maciel, 35, que já ascendeu profissionalmente, saindo da portaria e trabalhando agora no caixa.
Leia a seguir uma crônica sobre Caxias 24h