As fotografias acima e abaixo são documentos simbólicos. Nem é preciso lupa para perceber a marca dos pneus tapando os olhos da bonequinha com rosto de gatinha, mais conhecida como Elichat. A criação é do casal Lucas Leite e Júlia Pellizzari. Eles são artistas, e assim como os gatos, são inofensivos, apenas querem encontrar um espaço para expressar sua ternura em meio à cinzenta e desbotada Caxias, das suas idiossincrasias.
As marcas de pneu sobre os olhos é por conta da abordagem da Guarda Municipal de Caxias, que no dia 16 de maio, conduziu o acadêmico do curso de Licenciatura em Artes, da UCS, para registrar boletim de ocorrência na Polícia Civil, pois ele pintava o chão da Praça das Feiras.
Vivem-se dias estranhos nessa Caxias. Eventos aparentemente desconexos explicam mais sobre a cidade do que sonha vossa vã filosofia. Nem é preciso perder muito tempo rememorando muitas situações. Em se tratando de valor cultural vamos resumir a dois. Na semana passada, uma patrola passou por cima de uma das bancas que vendia artefatos de perigo iminente, como livros, revistas e jornais.
Leia mais
Artista de Caxias conhecido por personagem Elichat reclama de abordagem da Guarda Municipal
E no dia 16 de maio, Lucas foi levado para averiguação porque, além de pintar, portava armas como 1 rolo de pintura pequeno, 1 trincha, 1 rolo de fita crepe, 1 colher, 1 avental, um frasco pequeno de tinta preta, 1 lata de tinta branca, 5 lápis cor cinza e 13 pincéis. Caxias vive dias estranhos porque pune quem abre janelas para a fruição artística e dispara munição cultural por aí.
A explicação para a patrolada por cima da banca de jornais é a de que estava irregular e já que a prefeitura vai reformar a Praça Dante Alighieri, o negócio era resolver logo. Ou seja, antes de dialogar para resolver, é melhor patrolar e tornar pó o problema. A mesma explicação serve para a criminalização da intervenção artística do acadêmico de Lucas Leite, que foi indiciado por ferir o artigo 65 da Lei Ambiental 9605/98.
Diz o texto da lei: "Pichar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano". Antes de mais nada, Lucas não pintou monumento, nem edificação, foi no chão que interviu. Mas talvez seja o termo "conspurcar" que supostamente pode incriminar Lucas, pois, segundo o dicionário, trata-se de "sujar, manchar", entre outras definições. É a tal generalização de quem desconhece o valor pictórico ao categorizar de "mancha" a pintura.
— Quem trabalha com arte de rua está sempre lutando para legitimar sua expressão. Minha subversão é lúdica, porque usa os espaços ociosos que nunca deram problema. Mas tem chamado a atenção que de um tempo pra cá eles têm intensificado essas abordagens. Uma semana antes de me autuarem já tinham abordado outros dois artistas — revela Lucas.
Para tentar colocar um pouco de ordem no caos, a Coordenação e o Diretório Acadêmico dos Cursos de Artes Visuais da UCS, manifestam sua contrariedade ao fato e, mais do que palavras ao vento, promovem debate e reflexão sobre arte urbana e seus desdobramentos, hoje, no Campus 8, da UCS. Das 16h às 19h, o artista plástico Lucas Leite terá a liberdade de pintar o chão do campus para que seja impressa não apenas no chão, mas nos anais da história de Caxias, que em 2019 ainda se questionava em Caxias ações de intervenção urbana.
E a partir das 19h30min, no Auditório Marelli, também no Campus 8, haverá um debate com os artistas Lucas Leite e Júlia Pellizzari, o advogado Alex Caldas, o arquiteto e professor Eriton Aver Moraes e o jornalista Carlinhos Santos. O diretor executivo da Secretaria Municipal de Segurança Pública, Paulo Siqueira, disse que não poderá participar, pois tem reunião em Porto Alegre, na Secretaria Estadual de Segurança Pública. A mediadora do encontro será a professora e coordenadora dos cursos de Artes da UCS, Silvana Boone.
Até a noite desta segunda não estava confirmada a presença de representantes da Secretaria Municipal da Cultura. O secretário Joelmir da Silva Neto limitou-se a escrever uma mensagem, ao ser questionado se participaria: "Não tem evento da secretaria lá".
— Nossa intenção é não deixar o assunto esfriar e promover um debate sobre o que é arte urbana e o que isso significa para a sociedade — justifica Silvana Boone.
Por mais verbos com o sentido de dialogar, ouvir e ponderar, do que vigiar, patrolar e punir. O convite para essa data, que promete ser histórica, pretende alcançar do poder público ao cidadão de bem que ligou ao 153 e denunciou a intervenção artística.
AGENDE-SE
O quê: Intervenção artística com Lucas Leite, seguida de debate sobre arte de rua
Quando: terça-feira, a partir das 16h (o debate começa às 19h30min)
Onde: Campus 8, da UCS
Quanto: Entrada franca
Leia também
VÍDEO: Grupo instrumental Etos, da Serra, lança primeiro EP
Agenda: Festival Varilux de Cinema Francês se inicia nesta quinta, no Ordovás
Pela primeira vez no Brasil, Mafalda Milhões defende democratização de bibliotecas
Escritor Pippo Pezzini vence o prêmio Vivita Cartier com "Mais Solitário que canceriano longe de casa"