Hoje vive-se a liberdade ampla, geral e irrestrita? Muitos têm dúvida. Em 1967, com certeza não. À sombra dos fuzis, que aparecem no filme do inventivo Ruy Guerra, havia de um lado o exército perfilado e, de outro, homens e mulheres armados de alegria e que estampavam ternuras no cartaz. No meio dessa desordem em progresso uma geração cantou: "Que mocidade que eu plantei pra mim?", verso de Mamãe Coragem, cantada por Gal Gosta, com uma doce voz de desatar a dor represada. A canção faz parte do LP Tropicália, marco do movimento estético que versava miscigenando música, artes plásticas, literatura, teatro e cinema, e declarava o fim das barreiras de um gênero daí em diante mutante, a MPB.
É dessa geleia musical, mezo rock, ma non troppo, que vem o repertório a ser apresentado pela Orquestra Sinfônica da UCS, domingo, às 19h, no UCS Teatro, em Caxias do Sul. O concerto é uma homenagem aos 50 anos da RBSTV Caxias.
"O movimento é moderno", já cantava Caetano, em Tropicália (1968), mas como não tinha porta era preciso passar por cima da muralha. Como movimento organizado, no entanto, não durou dois anos, entre 1967 e 1969. Mas rompeu com as barreiras, isso é fato, confirmado pelo jornalista Nivaldo Pereira, baiano de nascimento, e, por isso mesmo, justifica-se a assinatura do roteiro do concerto.
— Vemos isso, por exemplo, na criação afro-baiana-pop-rock de Carlinhos Brown ou nas traduções que Vitor Ramil faz do mundo atual sem deixar de evocar sua pampeana Satolep. Ou nos discos de Zeca Baleiro e Chico César, a usufruir do direito de tocar tudo e ser tudo — defende.
Nivaldo vê a Tropicália como um movimento que provocou um choque cultural na música brasileira.
— Talvez esse fosse um caminho natural da nossa música no tempo, mas devemos reconhecer o brado tropicalista, em sua quadra histórica, de querer um Brasil fora das caixas ideológicas e para além de redutores nacionalismos.
Qualquer semelhança com o nosso tempo não é mera coincidência, não. Faz ainda sentido, ou não, os versos de Panis et circenses: "E essas pessoas na sala de jantar?/ São ocupadas em nascer e morrer", na voz de Rita Lee, lá dos idos de 1967? Essa apatia transgeracional seria o tal sintoma da vida em transe a que anunciava Glauber Rocha no manifesto cinematográfico também de 1967? Nada é coincidência.
Infelizmente, de tempos em tempos, é como se estivéssemos na tal da Roda Viva, entoada por Chico Buarque: “Faz tempo que a gente cultiva/ A mais linda roseira que há/ Mas eis que chega a roda viva/ E carrega a roseira pra lá”. A canção de Chico pode não ter recebido o selo do movimento oficial, mas esteticamente e ideologicamente é uníssona ao Tropicalismo. Seja porque estavam à toa na vida, seja porque cantavam sobre a alegria, seja porque mandavam em disparada tudo para o inferno, seja dentro ou fora do movimento, havia unidade dessa gente toda que fez história no Brasil.
Esse nosso Brasil varonil de tempos em tempos teima voltar a ser dos fuzis. Não por acaso, o concerto termina com a carta-bomba do Cazuza, o poeta oitentista mais rocker, que disparou: "Brasil mostra a tua cara quero ver quem paga/ Pra gente ficar assim. /Brasil, qual é teu negócio/ O nome do teu sócio/ Confia em mim". Se o sócio veio em uma das três caravelas já nem se sabe mais, porque já não se trata mais de Pau-brasil, mas do pau que o Brasil tem levado há gerações. E o papel da arte? Geraldo Vandré e Théo de Barros, em Disparada nos ensinam:
“Então não pude seguir valente em lugar tenente. E dono de gado e gente, porque gado a gente marca. Tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente. Se você não concordar não posso me desculpar. Não canto pra enganar, vou pegar minha viola. Vou deixar você de lado, vou cantar noutro lugar.”