"Certeza é fogo/ Apaguei com gasolina/ Deixa queimar/ Vamos explodir/ Eis o meu papel de mina". Os versos acima são assinados por Pôlli Abreu, caxiense de 25 anos que idealizou na cidade um espaço capaz de acolher ideias que precisavam, de fato, explodir para o mundo, a partir dela e de outras mulheres também cheias de ebulições internas. Assim é o Slam das Manas, braço feminino surgido a partir do Slam Poetiza, com atuação há cerca de um ano na cidade. A poesia falada é o terreno onde o slam atua, com personagens sempre carregadas de experiências a compartilhar. Uma boa oportunidade para entender mais sobre essa prática artística estará no Festival Música de Rua (neste domingo, as gurias sobem ao palco às 14h20min e às 16h20min), que se apropria não somente dos sons da rua, mas dos verbos e discursos também.
– O intuito é o desenvolvimento dos sujeitos que estão ali, a troca de ideias. E quem vai no Slam das Manas, vai sabendo que vai receber pautas das mulheres e pautas LGBTs. É um exercício para a vida, de interação, de comunicação – explica Pôlli.
O movimento slam nasceu nos anos 1980, nos Estados Unidos. Enquanto por lá essas manifestações tinham um formato parecido com o dos saraus de poesia, bem menos agressivo do que as batalhas de rap que fervilhavam nos subúrbios; no Brasil as rimas cheias de vivência dos slams acabaram por encontrar muita identificação no meio do hip hop.
– Eu achava que poesia era uma coisa mais elite, não sabia direito o que era. Até que eu comecei a prestar atenção nas letras de rap que estavam sempre como trilha de fundo lá em casa. Vi que a poesia rimava, e o rap rimava. Entendi que era a mesma coisa, ou pelo menos era parecido – lembra Jamille Santos, 17, um dos nomes mais conhecidos do slam em Caxias.
A diferença básica do slam com relação às batalhas de rap é que não há improviso – geralmente os textos são criados antes – tampouco os tradicionais ataques entre os MC’s competidores. No slam, e principalmente no Slam das Manas, a regra mais evidente é somar, nunca diminuir alguém.
– Eu gosto de me concentrar e ficar ouvindo, de conseguir enxergar essa unidade que nós somos, criando laços. O contato é o que a gente precisa – defende Elizê Evangelista, 21, que durante o Slam das Manas costuma usar a palavra somente no momento do verso livre, dedicado aos participantes que não querem competir.
Pôlli conta que o Slam das Manas surgiu a partir de uma provocação interna. Ela percebeu que algumas pautas, como assuntos relacionados ao universo feminino e LGBT, acabavam não tendo tanta atenção por uma fração do público que frequentava o Slam Poetiza, o que acabava desmotivando pessoas que tinham muitas inquietações para compartilhar. O Slam das Manas surgiu com a intenção de acolher esses discursos.
– A minha intenção é melhorar a relação entre as pessoas, fazer com que elas se enxerguem e se escutem, é bonito ver que a galera vai e quer conhecer outras realidades. Considero o Slam das Manas um espaço de educação – comemora Pôlli.
Cada participante é livre para definir as suas pautas. E no momento que a rima do outro envolve quem escuta, a bandeira vira coletiva. Jamille, que no ano passado foi representante do Estado na batalha nacional de slam, diz que gosta de colocar o dedo na ferida. Entre os assuntos mais recorrentes de seus textos estão temas ligados ao universo da mulher negra e a questões raciais, como o genocídio da juventude negra.
– Tem gente que fala que se não tirar um sorriso de alguém no final de uma poesia não fica satisfeito. Sou o contrário, se não tirar um olhar de ódio ou um questionamento, não valeu – provoca Jamille.
Até mesmo o feminismo, conceito que tem ganhado abordagens cada vez mais diversas, acaba sendo “alvo” para as reflexões críticas das slamers (quem faz slam).
– Muitas das cartilhas que se segue no feminismo são europeias, de mulheres com outros alcances culturais, outras referências de educação. A intenção não é reproduzir uma ideia pronta, é estar agindo, mostrando qual é a sua ideia no mundo – defende Pôlli.
Três edições do Slam das Manas foram realizadas em Caxias até agora, duas em espaços públicos e uma em um bar. A intenção é interagir cada vez mais com diferentes setores. Além da estreia no Festival Música de Rua, neste domingo, o coletivo também esteve presente no Fórum de Estudos: Leituras de Paulo Freire, na sexta.
– A gente não está ocupando, está criando nosso espaço – observa Jamille.
Apesar da aspereza dos temas tratados, o formato dos encontros costuma ser sempre horizontal, com as pessoas dispostas em círculo, lado a lado, absorvendo a troca de energia com quem está com a palavra, geralmente locado no centro do círculo. Essa construção do ambiente é importante para fazer valer a ideia de acolhimento.
– Quando eu entro, parece um outro plano, parece que me põe no lugar onde eu deveria estar. É a importância de estar aqui e agora. É ouvir o outro e se sentir, prestando atenção no momento. Ali, você sente no olhar das pessoas que elas estão realmente presentes – conceitua Pôlli.
Nas rodas de slam, enquanto uma pessoa fala, as demais se conectam com aquelas palavras. É como ler um livro de forma coletiva, tomando a voz do outro para si, numa experiência lírica que envolve muito mais do que somente intimidade com as palavras, envolve coragem, força e aquela certeza de que o verbo é fagulha que precisa incendiar no ar. E ver a chama aumentar é tão bonito... Deixa queimar/ Vamos explodir.
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O despertar da poesia
Cada slamer tem uma história para contar quando o assunto é o despertar para a criação artística. Pôlli Abreu começou a escrever com mais frequência quando fazia um curso do cooperativismo, no qual precisava elaborar análises políticas constantemente. Quando Jamille Santos era criança, gostava de escrever sobre o que sonhava à noite e acabava criando releituras. Já Elizê Evangelista queria ser cantora e escreve músicas desde pequena. Em comum, as três carregam a sensação de pertencimento sentida ao presenciar a intensidade do slam.
A Bruna Eduarda Oliveira Cardoso (Dudah), 14 anos, ainda não arriscou escrever os próprios textos. Mas também encontrou no slam um terreno para se conhecer melhor, para se desafiar. A guria veio com a família de São Leopoldo para Caxias há cerca de dois anos. No início, demorou um pouco para se enturmar. Pensando em facilitar a socialização da filha, Jocelaine de Oliveira Drunn, 35, a matriculou no Centro Assistencial Joana D’arc, pertinho da casa onde vivem, no bairro Santa Fé. Foi ali que a adolescente teve contato com o mundo do slam, por meio de vídeos mostrados na aula de composição literária.
– Quando eu entrei aqui, parece que eu me achei – aponta a adolescente.
Fã do trabalho da slamer paulista Mariana Felix, Dudah começou a reproduzir em sala de aula seus slams preferidos. Assim chamou atenção de alguns professores e colegas, que a incentivaram a pegar o microfone quando o projeto Hip Hop nas Escolas (capitaneado por Chiquinho Divilas) visitou a instituição da qual é aluna, a Escola de Ensino Fundamental Ruben Bento Alves.
– Eu não ia, estava com muita vergonha. Achei que ia todo mundo me julgar, mas no final bateram palmas – lembra ela.
A menina declamou uma poesia que não era sua, sobre o preconceito contra religiões afro. Apesar de não ter religião, diz que escolheu esse tema porque já viu colegas da escola sofrendo por frequentar terreiro.
– As pessoas chamam de macumbeiro e eu não acho certo – justifica.
Dudah mandou tão bem ao pegar o microfone na mão como slamer pela primeira vez que foi convidada para participar da apresentação RAPjador, durante o Festival Música de Rua, neste domingo. Está bem nervosa para enfrentar uma plateia grande e diversa, mas a animação supera a ansiedade. Ainda não será dessa vez que a guria vai mostrar um texto autoral, mas se depender da vontade dela, isso deve acontecer bem em breve.
– Esses dias fui numa festa e tinha uma menina do Slam das Manas, ela me convidou para ir nos encontros delas. Falou que eu ainda não fazia poesia própria, mas se eu fosse com elas ia começar a fazer, porque elas também começaram assim como eu – anima-se Dudah.
Discurso falado, discurso impresso
Mulher, mãe, moradora de ambientes periféricos, questionadora, amante da música, da leitura e das palavras. Essas características ajudam a definir a caxiense Claudia Palhano, 26 anos, e também a levaram a sentir identificação imediata com as intenções do Slam das Manas.
– As poesias do slam foram só mais uma forma de expressão e identificação que eu conheci e com as quais eu senti muita afinidade. Ele foi construído por gurias que têm as mesmas necessidades, partilhamos das mesmas pautas – justifica.
Mas Cláudia levou a experiência com a poesia para além do slam. Junto com a amiga Bruna Toledo e com a contribuição de várias outras mulheres, ela migrou pautas do universo feminino que vivencia para as páginas de uma fanzine (revista produzida artesanalmente e distribuída de forma independente). Batizada de Cuidado Piranhas, a publicação conta com diversas colagens e textos autorais que sempre refletem óticas femininas.
– A gente se sente muito liberta fazendo. São diversas as pautas que estão ali integrando esses movimentos, o próprio fato de a gente se sentir acolhida para estar falando e ver o trampo circulando, a gente precisa disso. Até porque uma das maiores barreiras que existe é a interna – reflete.
Claudia celebra o fato de várias mulheres se envolverem na confecção da zine, reforçando o aspecto coletivo da criação. Ela também revela que o discurso de apoio às manas é colocado em prática a cada feirinha realizada, com parcerias que garantes presenças femininas nos mais variados âmbitos. Nesse contexto, o protagonismo nunca é só de uma ou de outra, mas de uma cena que cresce amparada no desejo de união.
– Compreendo a necessidade de a gente se fortalecer enquanto mulher e essa é uma barreira que a gente tem que romper, procurando indicar mina, procurando trabalhar com mina. Ninguém fala melhor da gente do que a gente mesmo. Os homens já têm essa cultura de parceria. A gente está aprendendo a ser e isso é muito positivo – aponta.
Linguagem própria
No Brasil, os universos do hip hop e do slam têm muita proximidade. Ambos costumam ocupar espaços urbanos e tratar de pautas socialmente relevantes. No entanto, é interessante perceber como as mulheres estão muito mais presentes na produção das rimas de slam do que como MC’s, pelo menos aqui na região. Fato é que o ambiente do hip hop é ainda considerado muito machista.
– Mas olhar de fora e atacar é muito mais fácil do que estar vivendo aquela realidade. O hip hop ser espaço machista, sim ele é; mas é preciso se perguntar o porquê. Pensa no pessoal da periferia, vendo aquela realidade de violência, tráfico, sobre o que eles vão falar? – pondera Jamille Santos.
No Slam das Manas, as competições de poesia falada são exclusividade das mulheres e das pessoas identificadas com o universo LGBT. Isso não quer dizer que os homens não são bem recebidos, pelo contrário, eles são incentivados a participar do momento do verso aberto (fora da competição) e a caminhar lado a lado das minas no campo da construção de ideias. A intenção das gurias do Slam das Manas nunca foi atacar outras linguagens ou expressões, e sim criar uma própria, na qual sintam-se representadas e protagonistas.
– É um baita momento da história, um momento em que a margem está tomando voz, reconhecendo seu lugar. Como é bom escrever, se apropriar das nossas palavras, falar com respeito e exigir respeito – festeja Pôlli Abreu.
Programe-se para curtir o Festival de Música de Rua
Neste sábado, na Rua Coberta de Bento
:: 15h: DJ Muzak
:: 15h30min: Ricardo Pita & Convidados.
:: 16h30min: Tuyo.
:: 17h30min: RAPajador.
:: 18h10min: Trebbiano.
:: 19h: DJ Musak.
Neste domingo, no estacionamento da UCS, em Caxias
:: 14h30min: Slam das Manas.
:: 15h: RAPajador + Dudah.
:: 15h30min: Cuarteto Ricacosa.
:: 16h20min: Slam das Manas.
:: 16h40min: Ricardo Pita e Convidados.
:: 17h30min: Renato Borghetti.
:: 18h20min: Tuyo.
:: 19h10min: Keila.
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