Não é exagero: o sótão do contabilista aposentado Ruben Festugato, 90 anos, parece ter saído das páginas de um livro de fantasia. Basta subir alguns degraus na estreita escada de madeira para ficar diante de paredes forradas de CDs. Do chão ao teto. De um lado a outro. Para se ter uma ideia, o acervo é formado por 20.943 CDs, 2.969 discos de vinil e 365 fitas cassete. Um verdadeiro oásis da música em pleno centro de Caxias do Sul, com títulos que transitam do clássico ao popular.
Tudo começou por volta de 1985, quando Festugato se aposentou e decidiu ocupar o tempo livre com a paixão por música e viagens. Grande parte da coleção, por sinal, foi adquirida em passagens por Uruguai, Argentina, Itália e Portugal.
— Pensei, "não quero entrar em depressão". Então comecei a investir meu dinheiro em discos e viagens. Tenho uma sobrinha que mora em Milão, na Itália, e cada vez que vou pra lá volto com a mala cheia de discos — conta, bem humorado.
Três décadas mais tarde, o resultado enche os olhos: os mais de 24 mil álbuns que compõem a discoteca de Festugato estão organizados por ordem de chegada, devidamente numerados. A catalogação do acervo, que mescla páginas datilografadas e anotações a mão, consta numa porção de fichários dispostos em ordem alfabética no alto de uma estante. São obras de 95 países, de Beethoven a Villa-Lobos, de Irmãos Bertussi a Frank Sinatra.
— Só parei de comprar CDs porque não tenho mais espaço pra guardar. Só por isso! Mas quem é apaixonado por música, pode vir me visitar — brinca Festugato, que diariamente reserva algumas horas para desfrutar da coleção.
Paixão primitiva
Colecionar não é um hábito contemporâneo. Pelo contrário: o colecionismo — nome dado à prática de guardar, organizar e expor itens por categoria — tem origem pré-histórica. Ou seja, as primeiras "coleções" surgiram antes mesmo da escrita, quando os seres humanos se organizavam em pequenos grupos na luta pela sobrevivência nas savanas africanas. Nesse contexto primitivo, o ato de colecionar estava relacionado tanto ao medo da fome e da penúria quanto a um hábito definidor de identidade.
A prática, porém, ganhou novos significados com o passar dos séculos. Para o psicanalista Caetano Fenner Oliveira, trata-se da "última autorização social para um adulto poder brincar":
— Faz sentido que (o colecionismo) esteja aumentando numa época em que a privacidade é ameaçada e a intimidade não mais preservada. O sujeito contemporâneo fica com um desejo de "isso é algo apenas meu". Aqui entra aquele componente identitário, de buscar no externo um amparo à subjetividade escondida. Depois dos 18 anos, colecionar objetos é nossa última fronteira lúdica — resume Oliveira.
Ao longo da semana, a reportagem do Almanaque visitou outros cinco colecionadores — quatro em Caxias do Sul e um em Flores da Cunha. Os acervos, que variam de selos e moedas antigas a latinhas de alumínio e bicicletas, revelam memórias e episódios marcantes de seus apaixonados proprietários. Confira:
Paraíso dos pedais
— Primeiro vem Deus e a família. Depois, a música, as bicicletas e os amigos.
O chapeador Joni Duarte, 54, não titubeia ao listar as coisas mais importantes de sua vida. E as bicicletas ocupam lugar de honra. Também pudera: são mais de 60 magrelinhas cuidadosamente enfileiradas em sua oficina, localizada no bairro Santa Fé — uma paixão que iniciou ainda na adolescência e foi ganhando corpo ao longo dos anos, por meio da compra, troca e restauro dos charmosos veículos de duas rodas.
A coleção conta com modelos de vários países. Entre as brasileiras, destaque para marcas como Caloi e Odomo, além da linha completa das Monaretas fabricadas entre 1969 e 1985. No caso das estrangeiras, Duarte exibe marcas consagradas como Bianchi (Itália), NSU (Inglaterra), Goricke (Alemanha) e Schiwnn (Estados Unidos).
— É uma paixão que eu não consigo explicar, mas acho que vem da admiração que tenho pela capacidade do ser humano ter inventado um veículo que consegue nos carregar sem combustível. Se a gente parar para pensar, isso é fantástico — reflete o colecionador.
Questionado sobre a bicicleta favorita, Duarte desconversa. Uma raridade, porém, faz os olhos brilharem. Trata-se da octogenária AGB Super Elastic-Rad, modelo feminino, fabricada na Alemanha em 1933. Detalhe: todas as peças são originais, incluindo uma elegante lanterna dianteira movida a carbureto.
— É a mais antiga que eu tenho. Não sei se algum outro colecionador tem esse modelo no Rio Grande do Sul.
Um quarteto de coleções
Carlos Montanari é um sujeito inquieto — e recebe a reportagem orgulhoso de suas principais coleções. Afinal de contas, não é todo dia que abre seu apartamento, no bairro Nossa Senhora de Lourdes, para exibir os frutos de quatro décadas de colecionismo. Aos 63 anos, o administrador aposentado mantém um acervo diverso: cédulas e moedas antigas, carteiras de cigarro, selos postais e cartões telefônicos.
O hobby começou ainda na adolescência, quando Montanari passou a guardar embalagens de cigarro, mesmo sem nunca ter fumado ao longo da vida. A coleção, que soma mais de 1 mil unidades, entre marcas nacionais e estrangeiras, está organizada em pastas, caixas de papelão e até mesmo em mostruários de lancheria.
— É um amor que parece estar no sangue, porque eu sempre gostei de colecionar e me divirto com isso — declara o aposentado.
Tamanha paixão fica evidente quando Montanari mostra a invejável coleção de moedas, iniciada há 25 anos. Armazenada cuidadosamente em pastas e álbuns, é possível encontrar exemplares de todos os países da América, África e Europa. No caso das brasileiras, o colecionador guarda com carinho oito álbuns que contam a história monetária do Brasil, com moedas do Império ao Plano Real:
— Eu tenho de quase todos os países. Só não tenho as moedas de alguns países pequenos, como as ilhas do Pacífico.
Mas os números surpreendentes não param por aí. O colecionador também contabiliza mais de 4,5 mil cartões telefônicos nacionais e estrangeiros e quase 10 mil selos postais, oriundos de vários países e períodos históricos.
Santuário do faroeste
Criado por Gian Luigi Bonelli em 1948, período em que a Itália se recuperava dos traumas deixados pela Segunda Guerra Mundial, Tex Willer é um típico herói do Velho Oeste norte-americano: chapéu de couro, revólver no coldre, lenço no pescoço e muita coragem para combater as injustiças.
É exatamente esse universo de duelos em frente aos "saloons" que encanta o estudante de enfermagem Carlos Eduardo Bernardi. Aos 18 anos, o jovem contabiliza mais de 1,3 mil revistas do personagem. O hobby iniciou no Dia dos Pais de 2017, quando Cadu — indeciso sobre como presentear o pai — passou em frente à antiga rodoviária de Flores da Cunha e adquiriu o exemplar 453 das edições mensais de Tex.
— Meu pai acabou nem lendo a revista. Eu li, gostei, e a partir daí comecei a coleção — recorda o rapaz.
Na estante de casa, Cadu guarda a coleção como quem protege a galinha dos ovos dourados: cada revista é mantida num saco plástico — tudo para evitar danos com a passagem do tempo. Entre as raridades, quatro exemplares Tex Ouro número 20, publicados em 2005, além do número 91 das edições mensais, publicado em 1983.
— Eu não escondo o ciúme que sinto pela coleção. Não é todo mundo que deixo folhear as revistas — confessa Cadu, enquanto admira a prateleira forrada de gibis.
Dos chaveiros às latinhas
Localizado no bairro Cruzeiro, em Caxias do Sul, o Bar do Tio Iba é um daqueles espaços que já surpreendem à primeira vista. Basta um rápido olhar pelo interior do estabelecimento para testemunhar a imponência de duas curiosas coleções: chaveiros e latinhas de alumínio. Juntos, os objetos decoram as paredes e o teto.
O responsável pelo acervo é Benhur Luis Ferreira, 38, que não esconde o sorriso ao contabilizar as coleções:
— São 1.242 latas. Brasileiras e de outros países. Chaveiros são mais de 1 mil, mas não sei quantos ao certo... Quando comecei a tocar o bar, que é do meu sogro, já tinha boa parte dos chaveiros. Eu reativei a coleção e comecei a guardar as latinhas.
Já são 10 anos de hobby. E o resultado é um mosaico com famosas marcas de refrigerante e cerveja: das coloridas edições de Natal de Coca-Cola às tradicionais embalagens de Heineken. Entre os chaveiros, escudos de futebol e marcas de carro chamam atenção.
— Muita coisa daqui eu fui ganhando de amigos e clientes. Às vezes o pessoal chega de viagem e me traz alguma latinha diferente — relata o empresário, enquanto contempla a própria coleção.
Quadros e memórias
Quem entra na acanhada oficina de bicos injetores comandada por Elizeu Braun, no bairro Madureira, não imagina que no cômodo ao lado funciona um museu — mas não se trata de um museu comum, com visitação aberta e objetos históricos de interesse público. O aposentado, natural de São Leopoldo e morador de Caxias desde 1983, mantém uma coleção de quadros artesanais que contam sua própria história.
No interior das mais de 30 molduras amarelas é possível encontrar os mais diversos itens: parafusos, moedas, brincos, cadeados, isqueiros e até mesmo um mata moscas. A montagem do inusitado acervo começou nos anos 1980, quando Braun circulava de moto pelas ruas de Porto Alegre e deparou com um objeto reluzente na sarjeta: uma pulseira dourada entalhada com seu nome.
— Foi uma surpresa quando recolhi a pulseira e vi meu nome. Desde então, passei a recolher os objetos que me saltam aos olhos. Tudo que está fora do contexto me chama a atenção — diz o aposentado de 65 anos.
E a coleção surpreende a cada quadro: objetos cortantes que furaram os pneus de suas motos, as chaves de seus quatro fuscas, as lupas utilizadas na oficina mecânica e até mesmo um retalho de uma calça rasgada durante um acidente de trânsito. Se é verdade que a vida imita a arte, o pequeno museu de Elizeu Braun atualiza os versos de Belchior em Como Nossos Pais, com lembranças emolduradas na parede da memória.
Hobby ou transtorno?
É possível explicar cientificamente as motivações de um colecionador? Existe um limite entre o lado prazeroso de guardar selos, moedas e discos e a compulsão de querer armazenar cada vez mais objetos? Essas perguntas podem ser um tanto complexas, mas nem por isso deixaram de ser objeto de estudo da psicologia.
A professora universitária Raquel Boff é categórica ao traçar um divisor de águas entre hobby e transtorno: prazer e sofrimento. Especialista em terapia cognitivo-comportamental, a psicóloga ressalta que os colecionadores são movidos pelo prazer e pelas boas lembranças trazidas pelos itens colecionados _ o que não ocorre no caso dos acumuladores:
— Na minha experiência clínica, nunca atendi um colecionador que tenha se tornado um acumulador. Colecionadores têm prazer em mostrar suas coleções e conseguem, inclusive, vender ou trocar itens. Já os acumuladores têm grande dificuldade em se desfazer daquilo que guardam, têm vergonha de mostrar os objetos.
E como explicar a disparidade de gênero entre os colecionadores? Embora não existam estatísticas sobre o assunto, é mais raro encontrar mulheres que colecionam. Raquel não acredita que haja um motivo psicológico para isso, mas sim um condicionamento social.
— Homens são incentivados desde pequenos a determinados comportamentos, enquanto mulheres são incentivadas a outros. Parece conversa ultrapassada, mas ainda hoje os papéis de gênero determinam comportamento — reflete a professora.