Há cerca de 30 anos, as principais gravadoras brasileiras decretavam o fim da produção de discos de vinil no país. O movimento acompanhava a modernização do setor, influenciada pela onda da digitalização, com o advento dos pequenos e modernos CDs. Daquele tempo para cá o salto foi ainda maior, passando por outras plataformas até a popularização do streaming digital, com aplicativos como o Spotfy. Além de possibilitar o acesso a uma infinidade de obras musicais, a plataforma tem sido importante na difusão das produções independentes, que ganham espaço perante os milhões de assinantes cadastrados. A distribuição digital torna-se, hoje, regra para qualquer banda que almeje o sucesso mas, paralelo a isso, muitos artistas estão vendo o LP como uma opção e têm apostado neste formato, voltado a um público mais segmentado. Para a alegria dos saudosistas, o bolachão parece despontar no futuro do cenário musical brasileiro. Este caminho pode levar à popularização do formato, que mexe com o fetiche da experiência única e inconfundível que só a versão analógica é capaz de proporcionar.
LADO A - Alternativa à supersaturação
Para muitos amantes da música que viveram os anos de produção analógica, o gosto pelo formato nunca morreu. O suporte marcou a adolescência do artista Ernani Cousandier e este foi um dos motivos que o levou a optar pela versão LP do primeiro álbum de sua banda, Os Bardos da Pangeia. A versão atual do grupo bento-gonçalvense foi formada em 2017 com o objetivo de desengavetar antigas composições do fundador, agregando arranjos inovadores e cheios de personalidade. A partir de um projeto inscrito junto ao Fundo Municipal de Cultura de Bento Gonçalves, a banda conseguiu viabilizar todo processo de produção digital das músicas, lançadas em dezembro do ano passado, incluindo a prensagem de 300 exemplares em vinil.
— Sempre colecionei discos e, apesar da morte declarada no sentido de linguagem, o formato virou novamente um objeto de culto, é um diferencial em uma época de supersaturação — avalia o bardo, que reconhece a importância das plataformas digitais, onde o grupo também está inserido com o álbum A Máquina está Grávida.
Aproveitando o apelo estético que surgiu naturalmente a partir de seus integrantes — além do talento e da experiência de Cousandier como ilustrador e desenhista de histórias em quadrinhos há mais de 30 anos — Os Bardos da Pangeia também usufruíram do espaço físico que os bolachões oferecem, em capas e encartes com tamanhos ideais para a impressão de imagens complementares ao sentido musical da banda.
O quinteto, que conta ainda com os músicos Rafael Teclas, Will Monteiro, Marcos Trubian, Bruno Neves, e Marcelo Donini, optou pela distribuição independente do novo produto. O alvo tem sido lojas especializadas que vendem para clientes de fora e, a nível regional, a compra pode ser feita diretamente com os músicos, pelo valor médio de R$ 50 a R$ 60, dependendo da forma de entrega. De acordo com Cousandier, o preço abaixo do mercado (que, para lançamentos, costuma girar em torno de R$ 90) foi conseguido pelo fato da produção ser financiada.
LADO B - Fetiche à disposição
As versões analógicas sempre fizeram a cabeça dos guris da caxiense Catavento. No primeiro álbum, lançado em 2014, Lost Youth Against the Rush, a banda apostou no formato fita cassete, como uma alternativa nos primeiros passos que a banda dava no mercado musical. Com aprovação no Financiarte de Caxias do Sul, o grupo local conseguiu disponibilizar ao público a versão vinil do segundo álbum, CHA, lançado dois anos depois, em 2016.
— Eu sou colecionador, sempre gostei e pilhei o pessoal da banda, mas sabia que era um investimento alto e que só poderia acontecer com patrocínio, afinal, no Brasil, disco ainda não é algo que dê dinheiro — conta o tecladista, Johnny Boaventura, falando sobre o projeto que custou R$ 18 mil para a produção de 600 discos, que chegam ao consumidor com valor médio de R$ 50.
O artista consegue, hoje, entender o mercado dos discos de vinil de forma tridimensional, a partir de sua experiência como consumidor, como músico e também como vendedor de discos, com estoque que gira em torno de oito mil exemplares, comercializados pela internet, para todo Brasil e também ao exterior.
— Muitos países nunca deixaram de ouvir vinil, existe uma procura muito grande de fora e a Europa consome muita música brasileira — observa, lembrando de obras clássicas, dos anos 1960 e 1970, que estão ganhando reedição em vinil por conta da demanda do público, além de outras bandas brasileiras que, há cerca de dez anos, iniciaram um movimento de lançamentos em disco.
Johnny reconhece que o primeiro LP da Catavento surgiu mais como uma satisfação pessoal dele e dos companheiros de estrada do que como uma estratégia de mercado propriamente dita. Apesar disso, ele acredita no potencial que o formato tem para legitimar a banda perante públicos segmentados, funcionando como um importante complemento ao formato digital, disponível online.
A banda, que ganha projeção nacional — inclusive com show agendado no Lollapalooza deste ano —, vem colhendo os frutos do impulsionamento conquistado a partir dos primeiros trabalhos e do edital Natura Musical, que trouxe ao mundo seu terceiro álbum, Ansiedade na Cidade. Lançado em agosto do ano passado, o disco está disponível no Spotfy e, fisicamente, apenas em CD. Por enquanto. Querendo ou não, o vinil tem conquistado espaço e a versão LP já está nos planos da banda após o interesse de vários selos e pedidos do próprio público. Como recusar?
O prazer do bolachão na agulha
Para Patrick Torquato, importante nome da cadeia musical brasileira, os discos de vinil estão caminhando para a reconquista do mercado nacional. O profissional, que integra o time de professores da programação da Tum Tum Semana da Música, em Caxias do Sul, identifica o formato como uma alternativa promissora.
— Acredito que o vinil vá crescer cada vez mais e a gente vai chegar em um momento, em dois ou três anos, em que ele saia a R$ 35 para o consumidor; assim a gente vai conseguir, de fato, ter um mercado muito ativo — analisa Torquato, comparando a projeção com fenômenos como o da volta da câmera analógica, que voltou a ser objeto de consumo.
— Não é nem sobre qualidade, apenas, é sobre fetiche, sobre as pessoas quererem parecer diferentes e tal — comenta o DJ, que utiliza o vinil em suas discotecagens e também é colecionador de discos.
Na visão dele, o gosto pelo formato envolve uma série de fatores, ligados não apenas à musica, aos estilos, mas à experiência como um todo.
— Quando a pessoa ultrapassa o consumo objetivo, ela passa a consumir de um jeito subjetivo, alimenta ela de outro jeito. De maneira geral, as pessoas se alimentam de miojo e a gente já não consegue não provar do prato de um chef que pesquisa, que esmera, que vai atrás de algo mais aprofundado. Tem "matar a fome" e tem "saborear a comida", são coisas bem distintas —.
Leia mais:
Confira a programação cultural para este final de semana
Festa da Uva terá show de jazz em italiano
Caxiense Henrique Zattera lança projeto com quatro músicas inéditas