No apartamento da Rua Marquês do Herval em que viveu até o fim dos seus dias, a professora, poeta e trovadora caxiense Amália Marie Gerda Bornheim, morta em setembro do ano passado, mantinha um acervo de mais de 4 mil livros, expostos em estantes que circundavam a sala onde gostava de se dedicar à leitura. Parte considerável dos exemplares pertenceu ao irmão, Gerd Alberto Bornheim (1929-2002), um dos mais reconhecidos filósofos brasileiros, nascido em Caxias do Sul. Sem herdeiros, Gerda registrou em testamento a intenção de doar a coleção à Biblioteca Central da Universidade de Caxias do Sul (UCS), onde desde novembro as obras aguardam pelo trâmite técnico para ficar à disposição da comunidade.
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O passeio pelo acervo é uma perdição para quem gosta de mergulhar na intimidade das mentes mais fascinantes. Além das predileções por Jean-Paul Sartre e Martin Heidegger, filósofos cuja obra Gerd foi o introdutor nas universidades brasileiras, há romances de todas as épocas em diversos idiomas, como francês, italiano, espanhol e alemão (Gerd viveu em exílio na Europa entre 1970 e 1974), muitos nunca traduzidos para o português. Um passada de olhos pelas prateleiras também desperta a atenção para as obras completas de Machado de Assis e de Luís de Camões, uma vasta coleção de autores franceses e alemães, antigos compêndios de psicologia e muitas antologias poéticas.
Embora ainda precise ser feito um estudo sobre a eventual raridade de algumas obras, muitos exemplares chamam a atenção por serem edições bastante antigas, algumas datando da primeira década do século passado. Também é interessante perceber a atenção com que os irmãos liam cada livro – há páginas inteiras sublinhadas e rabiscadas – e o grande zelo com a conservação. A maioria dos exemplares mais antigos tem folhas de louro entre a capa e a primeira página, para espantar as traças. A coordenadora administrativa da biblioteca, Michele Baptista, ressalta que esse acervo, assim como outras coleções especiais, recebem tratamento especial visando a melhor conservação.
– É importante capacitarmos cada vez mais nossos bibliotecários para dar o devido tratamento a esse tipo de acervo, que é o primeiro que recebemos por testamento, mas não queremos que seja o único. É preciso saber reconhecer qual a importância de cada obra e qual a forma de higienização correta. Livros mais antigos, por exemplo, precisam estar na temperatura adequada, para facilitar a resistência do papel, e em ambiente limpo e com menor circulação de pessoas, para que não seja mexido e folheado o tempo todo. A pesquisa também só pode ser feita pelo usuário acompanhado de um funcionário – explica Michele.
Por ora armazenados em prateleiras numa sala no térreo da biblioteca, os livros serão higienizados, tratados e catalogados pela equipe da biblioteca. Primeira coleção que a UCS recebe através de testamento, a expectativa é de que ainda no primeiro semestre o acervo passe a integrar o setor de Coleções Especiais e Obras Raras, que permite apenas a consulta local.
Dedicatórias e cartões-postais
Tanto Gerd quanto a irmã poetiza tinham o hábito de usar cartões-postais como marcadores de páginas. Parte do fascínio em descortinar o acervo está na possibilidade de encontrar pérolas que remetem a episódios da vida dos irmãos, como o cartão recebido por Gerd após ter sido afastado de suas atividades como professor na UFRGS, em 1968, cassado pelo regime militar. No postal, remetido de Heidelberg, na Alemanha, um ex-aluno chamado Valério pede desculpas pelo atraso (a carta é de 1969), mas lamenta o ocorrido:
“Podes imaginar o quanto isso abateu a Vera e a mim, que nas tuas aulas aprendi a perguntar filosoficamente. Nesse momento obscuro para ti e para todos nós, manifestamos o nosso pesar e a nossa solidariedade”, diz um trecho da mensagem.
A passagens marcantes misturam-se dedicatórias singelas, como a que Gerd, com caligrafia exemplar aos 11 anos, oferece o romance Um Rio Imita o Reno (1939), de Vianna Moog, à mãe. Entre os livros que pertenceram à Gerda – que são a maior parte do acervo, já que boa parte da biblioteca do irmão foi doada à Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) – muitos têm dedicatórias de amigas também escritoras, que se referem à poetisa como colega da causa literária. Também há exemplares ofertados pelas editoras à época do lançamento, tendo em Gerda Bornheim uma leitora especial, digna de receber o exemplar como cortesia.
Rumo à digitalização
A Biblioteca Central da UCS deve passar por um projeto de digitalização do acervo de coleções e obras raras ainda este ano. Além de favorecer a pesquisa a estudantes de outras universidades, que poderiam pesquisar pelo site, sem precisar se deslocar até a universidade, o processo também ajuda na conservação dos exemplares. Atualmente, o setor de coleções conta com mais de 30 mil títulos, entre livros, teses e periódicos.